‘Voz da África’ que entrou para a história da Nigéria ao contestar a ditadura de seu país, Fela Kuti tem sua biografia lançada no Brasil
Roberto Nascimento – O Estado de S.Paulo
O calvário de Fela Anikulapo Kuti começou em 1974, quando a ditadura nigeriana se deu conta de que o afrobeat era uma ameaça ao establishment. Com uma receita politizada que incorporava as tramas instrumentais de James Brown à polirritimia do oeste africano, a cria musical de Fela tornara-se febre entre as massas do país, denunciando a prefeitura de Lagos, enaltecendo o “eu” africano e expondo as hipocrisias de nigerianos que se submetiam à mentalidade colonialista.
Cantando em inglês e iorubá, sobre composições que duravam de 15 minutos a uma hora, duração decididamente antipopular, Fela foi a voz da África oprimida por quase três décadas mesmo sem ser “marketável” como Bob Marley. A batida descrita é apenas o primeiro dos incidentes que culminaram em um ataque à sua comuna, a República de Kalakuta, em que o Exército nigeriano, liderado pelo ditador Obasanjo, jogou sua mãe de 78 anos do segundo andar e ateou fogo ao local. O episódio, que resultou na morte da mãe, levaria o músico a contemplar o suicídio mas também serviria de inspiração para composições demolidoras como Unknown Soldier, igualada somente por Zombie, em que ridiculariza soldados fantoches; e V.I.P, cuja sigla significa vagabundos no poder.
Através de uma trama polifônica, adaptando depoimentos de Fela, amigos e mulheres a uma narrativa linear, Moore busca retratar a complexidade do maior ícone cultural africano do século 20, homem que gravou mais de 70 discos, ajudou a derrubar um ditador, casou-se com 27 mulheres e liderou uma comuna no coração do gueto de Lagos. “Eu quis mostrar o Fela total”, conta Moore, referindo-se às declarações homofóbicas e machistas de Fela no livro, entre elas, “faz parte da ordem natural das coisas as mulheres serem submissas ao homem”, “o único tipo de sexualidade que é contra a natureza é a homossexualidade” e “eu nunca bati nos meus filhos, juro. Mas de vez em quando é preciso dar uns pafpafpafs nas minhas esposas”.
Moore explica: “Eu reproduzi a visão dele com exatidão. Queria fazer com que as pessoas pensassem. O que ele fala dos gays, o que ele fala das mulheres é o que 99% dos homens pensam, mas não têm coragem de dizer. Fela tinha coragem”, completa.
Lançado originalmente nos anos 80, o livro serviu de base para o musical Fela!, hit da Broadway em 2009. Moore foi amigo pessoal de Fela, que morreu em 1997, vítima de aids, e está processando os produtores da peça por terem usado trechos de seu livro sem o compensarem financeiramente.
O escritor teve acesso à intimidade de Fela. Entrevistou todas as 27 mulheres. Viu o músico chorar. “Foi muito difícil. As pessoas não acreditavam. Ele era um cara muito duro, machão, batia de frente com a polícia, falava para todo mundo ser forte, se desprender do medo”, conta.
A miséria do nigeriano e sua luta obstinada para desmascarar a corrupção do governo foram presenciadas em primeira mão por Moore, que foi chamado por Fela depois que, de acordo com o próprio, o músico consultou-se com o espírito de sua mãe.
“As batidas eram horríveis. Muitas pessoas não queriam visitá-lo porque tinham medo de sofrer um ataque do Exército enquanto ele estava lá. Eles vinham armados, atacavam com baionetas, estupravam, matavam”. A nova edição sai no País com um prefácio de Gilberto Gil.
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