O império de Fela

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‘Voz da África’ que entrou para a história da Nigéria ao contestar a ditadura de seu país, Fela Kuti tem sua biografia lançada no Brasil

Roberto Nascimento – O Estado de S.Paulo

O calvário de Fela Anikulapo Kuti começou em 1974, quando a ditadura nigeriana se deu conta de que o afrobeat era uma ameaça ao establishment. Com uma receita politizada que incorporava as tramas instrumentais de James Brown à polirritimia do oeste africano, a cria musical de Fela tornara-se febre entre as massas do país, denunciando a prefeitura de Lagos, enaltecendo o “eu” africano e expondo as hipocrisias de nigerianos que se submetiam à mentalidade colonialista.

A popularidade dos discos Afrodisiac e Gentleman, ambos de 1973, foi o estopim. Um ano depois, Fela, nascido em 1938, foi preso por 50 policiais e passou dez dias na cadeia. Pagou fiança, voltou para casa e somente então descobriu o quanto queriam amordaçá-lo: na mesma noite, a polícia bateu à sua porta e plantou um baseado em seu quarto. “Olhei pro papel. Pensei rápido, cara, rápido mesmo”, conta Fela na biografia Fela – Esta Vida Puta, do cubano Carlos Moore, cuja tradução está sendo lançada no País esta semana. “Pulei em direção ao policial, peguei o fumo, enfiei-o na boca e pulei na cama, cara. Engoli a ponta! Peguei a garrafa de uísque ao lado da cama, pus na boca e empurrei a maconha goela abaixo. E aí comecei a esculachar os caras: “Qual é o problema de vocês, seus desgraçados? Olha, eu tô tentando salvar este país, porra. Vocês querem me colocar em cana? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz? É porque eu fumo? Porra…”

Cantando em inglês e iorubá, sobre composições que duravam de 15 minutos a uma hora, duração decididamente antipopular, Fela foi a voz da África oprimida por quase três décadas mesmo sem ser “marketável” como Bob Marley. A batida descrita é apenas o primeiro dos incidentes que culminaram em um ataque à sua comuna, a República de Kalakuta, em que o Exército nigeriano, liderado pelo ditador Obasanjo, jogou sua mãe de 78 anos do segundo andar e ateou fogo ao local. O episódio, que resultou na morte da mãe, levaria o músico a contemplar o suicídio mas também serviria de inspiração para composições demolidoras como Unknown Soldier, igualada somente por Zombie, em que ridiculariza soldados fantoches; e V.I.P, cuja sigla significa vagabundos no poder.

Através de uma trama polifônica, adaptando depoimentos de Fela, amigos e mulheres a uma narrativa linear, Moore busca retratar a complexidade do maior ícone cultural africano do século 20, homem que gravou mais de 70 discos, ajudou a derrubar um ditador, casou-se com 27 mulheres e liderou uma comuna no coração do gueto de Lagos. “Eu quis mostrar o Fela total”, conta Moore, referindo-se às declarações homofóbicas e machistas de Fela no livro, entre elas, “faz parte da ordem natural das coisas as mulheres serem submissas ao homem”, “o único tipo de sexualidade que é contra a natureza é a homossexualidade” e “eu nunca bati nos meus filhos, juro. Mas de vez em quando é preciso dar uns pafpafpafs nas minhas esposas”.

Moore explica: “Eu reproduzi a visão dele com exatidão. Queria fazer com que as pessoas pensassem. O que ele fala dos gays, o que ele fala das mulheres é o que 99% dos homens pensam, mas não têm coragem de dizer. Fela tinha coragem”, completa.

Lançado originalmente nos anos 80, o livro serviu de base para o musical Fela!, hit da Broadway em 2009. Moore foi amigo pessoal de Fela, que morreu em 1997, vítima de aids, e está processando os produtores da peça por terem usado trechos de seu livro sem o compensarem financeiramente.

O escritor teve acesso à intimidade de Fela. Entrevistou todas as 27 mulheres. Viu o músico chorar. “Foi muito difícil. As pessoas não acreditavam. Ele era um cara muito duro, machão, batia de frente com a polícia, falava para todo mundo ser forte, se desprender do medo”, conta.

A miséria do nigeriano e sua luta obstinada para desmascarar a corrupção do governo foram presenciadas em primeira mão por Moore, que foi chamado por Fela depois que, de acordo com o próprio, o músico consultou-se com o espírito de sua mãe.

“As batidas eram horríveis. Muitas pessoas não queriam visitá-lo porque tinham medo de sofrer um ataque do Exército enquanto ele estava lá. Eles vinham armados, atacavam com baionetas, estupravam, matavam”. A nova edição sai no País com um prefácio de Gilberto Gil.

http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110604/not_imp727885,0.php

 

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