para Combate Racismo Ambiental*
Dez horas em ponto. Oito de maio. Camponeses atingidos por Belo Monte já estão na Casa de Governo, em Altamira. Na parede, um retrato de Dilma. Ela sorri na foto. Não sei do quê, pois aqui há razões para riso de sobra, mas os motivos para sorriso são poucos, muito poucos.
Alguns dos camponeses saíram de madrugada de casa, a 50 km ou mais, e andaram de moto ou a pé até a estrada principal, tomando, aí, o caminhão de linha. A Norte Energia, que fica em bons hotéis na cidade, chega um pouco depois. O INCRA, a algumas quadras dali, aparece mais tarde, na figura de uma senhora idosa, de cabelos grisalhos, mas ainda com muita energia para o trabalho. Ela não faz rodeios: ‘o INCRA está sucateado, vocês sabem disso!’. Os representantes da Casa de Governo, embora em casa, estão ocupados noutra reunião; e se justificam, dizendo que as demandas são muitas. A reunião se inicia sem eles. E o encontro agendado há um mês para dez sai perto de onze, com quase uma hora de atraso.
Os carroceiros também estiveram ontem (7) nesse mesmo local, e saíram indignados. Estudo da empresa apresentado no dia 29 de abril conclui que os profissionais (130 famílias) de veículos a tração animal são atingidos pelo progresso. E que a reordenação de sua atividade é obrigação exclusiva da Prefeitura local, com algum apoio da Norte Energia.
O momento é difícil para os carroceiros! A perda é muito grande! Até junho de 2011, cada um deles fazia entre seis a oito fretes por dia e ganhava, em média, 2.200,00 por mês. Hoje ele faz de um a dois fretes por dia e ganha 400,00/mês. Some-se a isso o custo de vida. O quilo de farinha saltou de dois para sete reais. A carne passou de seis reais para quatorze. Ainda pesa sobre eles o jargão maldito da Norte Energia de que ‘cidade moderna não tem carroça’. Só essa é que faltava!
Diante desse quadro, alguns já abandonaram o trabalho, e deixaram a carroça apodrecendo no quintal. Outros venderam a carroça, com cavalo e tudo. O futuro é incerto! Se as coisas continuarem assim, essa categoria, histórica em Altamira, tende à extinção.
Distante da Casa de Governo, do outro lado de Altamira, a Norte Energia convoca reunião no loteamento Jatobá (em construção), preocupada com os reclamos crescentes das 240 famílias ali residentes, as únicas transferidas até hoje das 4.100 reconhecidas como atingidas na cidade. O número real, porém, passa de sete mil famílias.
O MAB até pensara em ver meios de contratar uma equipe técnica para avaliar as casinhas de concreto. PHD tem lá o seu valor! Agora não mais precisa, pois os problemas estão escancarados: canos estourados, infiltração, mofo no teto, mau cheiro que vem do ralo, pequenos comerciantes sem lugar para instalar seu ganha-pão, assistência à saúde totalmente improvisada, escola distante. Essas casinhas poderão ter vida útil ainda menor do que os cinco anos divulgados. Equivalem, portanto, a um abrigo provisório. Somem-se a isso as contas de água e luz, e outros gastos que as famílias antes não tinham. Nesse novo quadro, ao invés de técnicos são necessários mais militantes para que a revolta justa desemboque num processo de indignação popular organizada.
Esses problemas das casas não é novidade! Nem são exclusivos de Belo Monte! Desde o início aqui, o Movimento dos Atingidos por Barragens e outros vêm defendendo reassentamento, com urbanização completa, moradias de qualidade e diferenciadas, equipamentos coletivos de políticas públicas em pleno funcionamento e garantia dos meios de subsistência das famílias. A novidade agora é que os próprios moradores, alguns antes iludidos com a casa virtual, sentem na pele o peso da casinha de concreto; têm medo, dor e, o melhor, começam a reagir.
O interessante de tudo isso, porém, é que o povo não perde o humor, ainda que mordido de indignação e raiva. A espera na Casa de Governo, naquela sala com ar condicionado, chega a ser até divertida: uma piada, um caso, um riso espremido ou às gargalhadas.
Raimundo, sem terra, quase sem teto, agregado de uma fazenda no Assurini, é anedótico, transformando o próprio drama em folclore. Ele repete a história do diálogo que tivera com a empresa em outra ocasião. Após explicar o seu caso, detalhe por detalhe, dizendo que sua casa à margem direita do Xingu corre perigo com as rachaduras por causa dos estouros diários de bombas no canteiro de Belo Monte, o funcionário da empresa apenas lhe responde: ‘pelo que sei, a bomba está no padrão!’.
Raimundo conta e até se contorce de tanta indignação e riso. Depois reflete, com ar sereno e matuto: ‘então, nesse caso, minha casa, os indígenas, os pescadores, os camponeses da área do lago, os moradores da cidade, tudo está fora do padrão!’.
O agregado ironiza: ‘a gente é que está errado, pois veio morar no lugar da futura barragem. Um estorvo ao progresso, que agora tem que ser arredado e encostado num canto. É assim que esses ‘doutores’ tratam a gente!’.
Raimundo, então, vai à desforra. Não é muito, mas é o que já dá conta de fazer, apelidando o funcionário da empresa de Colchão mal amarrado, isso porque é gordo, com um corpo inteiriço feito rolete, com a banha por sob a camisa formando curvas salientes.
Há empregados de grandes empresas que corporificam, em plenitude, a ideologia do dominador – como o menino empobrecido e explorado que morre de alegria por ser-lhe permitido lavar o carro do primo rico -, o que torna ainda mais difícil ao atingido separar o empregado do papel que ele representa na empresa. Alguns funcionários chegam a ser tão arrogantes como se fossem eles os donos de Belo Monte.
Na parede da sala de reunião, Dilma continua sorrindo na foto. Não há nenhuma razão pra isso! A não ser no caso de Raimundo, que ri da própria desgraça e do funcionário da Norte Energia, em quem descarrega toda ira que sente da empresa.
Mesmo que Dilma possa ter tido acesso prévio a resultado de pesquisa do Datafolha, publicado em 9/5, mesmo assim ela não tem motivos para sorrir. Ela tem 37% das intenções de voto, mas Aécio cresce, agora com 20%, e Eduardo Campos tem 11%.
Um quadro político complexo já quase às vésperas das eleições, ainda mais com Copa pela frente, com possibilidades de reedição das manifestações de junto de 2013, com o oportunismo da Direita extremamente reacionária infiltrada pelo meio.
A complexidade não é porque as chances de Dilma diminuem, mas porque o ‘projeto político’ dos que estão no páreo é ainda pior do que o desenvolvimentismo. Sei o que Aécio significa para Minas Gerais: um atraso de vida! Sei dos grupos reacionários, uns verdes e outros vestidos de fé, em torno de Marina. Por isso receio um segundo turno entre Dilma e Campos.
Fico refletindo, enquanto o encontro não começa: será que essa mulher sabe a terça parte do que ocorre aqui? Será que os meninos de recado, alguns deles bajuladores, lhe repassam as informações corretas? Será que os inimigos da classe trabalhadora e do povo, respirando sofregamente a lógica do capital, sedentos em abocanhar tudo, pressionam com seu lobby e torcem a realidade? Será uma relação tática com os Barbalho, com os Sarney, com o Agronegócio, com empresas mineradoras e do setor elétrico ou será que esse governo também, apesar da bonita história de luta da Presidenta, se rendeu de vez ao neoliberalismo?
Os esquerdistas a elegem como a inimiga central. Mais uma traidora! Mas quem reflete sabe que a questão é mais complexa, pois o papel do Estado na sociedade capitalista é legitimar os interesses da classe dominante, da qual os governos se tornam gerentes. Eles (governos) jogam no time do inimigo, apitam a favor dele, expulsam o trabalhador quando lhe acerta a canela, mas, definitivamente, nenhum governo é o inimigo central.
Ah se essa foto ouvisse! Ah se Dilma em pessoa viesse para ver de perto o que ocorre aqui, em Belo Monte! A questão social e ambiental está entregue às baratas. Ah se suas informações não fossem apenas da formalidade virtual, tão linda, tão convincente, feita e desfeita num clique de nada e, ao mesmo tempo, tão irreal!
Ah se Dilma viesse! Queria estar perto para ver! No mínimo, ela ganharia um apelido de Raimundo, o sem terra, o quase sem teto por causa de Belo Monte. E torceria para ser um apelido bem engraçado.
Quando a reunião na Casa de Governo se inicia, fica polêmica do início ao fim. O Colchão mal amarrado, como diz Raimundo, não cumpre seu dever de casa: em um mês faz apenas 14 laudos, agora tem mais um mês somente para fazer 39. Não fará! E ainda procura convencer e tranqüilizar os camponeses de que o IBAMA não dará a Licença de Operação sem que todas as condicionantes sejam cumpridas. Doce enganação! Isso não vale nem para a mente fantasiosa, que crê em lobisomem ou vê cegonhas buscar bebês. O IBAMA também é um detalhe no capitalismo, pois seu papel é enquadrar a formalidade política dentro da decisão econômica, que é previamente tomada, e não o contrário.
No capitalismo, tudo é transformado em oportunidade de lucro. A prioridade para a obra civil da barragem em detrimento do social e ambiental vira venda de energia em tempo recorde. Os atrasos viram aditivos. A violência, a prostituição, o direito do atingido, tudo é tratado na perspectiva do lucro; não importa se abrindo ou ‘curando’ feridas, o capitalista sempre ganha dinheiro. Se não ganha, abandona o negócio.
Numa nação soberana a Política determina o econômico, mas na sociedade capitalista o econômico é que determina o político. Os candidatos de todos os partidos recebem patrocínios milionários das empresas e, depois, elas cobram sua fatia. Nesse contexto, faz sentido o Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva Soberana para a Reforma do Sistema Político, que irá ocorrer entre os dias primeiro a sete de setembro deste ano. Não vai resolver todos os problemas, mas é um passo importante.
O descaso prepotente da Norte Energia e a omissão dos governos, em suas várias instâncias, vão criando um clima caótico, e de grande revolta na região do Xingu e Transamazônica, que poderá dar em barbárie ou força popular organizada. Em qualquer dos casos, empresa e governos poderão sentir desde simples cócegas na anca até profundos abalos.
É verdade que Belo Monte parou o povo por um tempo, mas é igualmente verdade que não conseguirá pará-lo eternamente. A conjuntura no momento mostra isso. O povo está se mexendo. Sofrimento e paciência têm limites.
Carlos Drummond de Andrade, poeta mineiro, desolado com a penúria que a Vale impõe à sua terra natal, desabafa no poema Confidência de um Itabirano: ‘Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!’.
Não é só Itabira, saudoso Drummond! São os Aimorés em Minas, os Araras no Xingu, a Floresta, o Rio, o Minério, o Povo. Tudo vai se tornando meras fotografias. A linda cachoeira da Volta Grande agora anda estampada em carros doados a associações, sindicatos e prefeituras da região de Belo Monte. A história quebrada e inundada vai para o museu. Bichos e plantas, que merecem ser salvos, vão para uma Arca de Noé, e aguardam a bonança após o dilúvio. O que é imagem viva vira fotografia morta. Onde era o murmurar das águas, o tremular das folhas, já sinto o barulho estridente dos dólares esverdeados seguindo pelos fios por sobre o Xingu, dividido entre antes e depois da hidrelétrica, dividido entre acima e abaixo do muro, inchado no lago e esquelético até a casa de força.
Quando a crueza dos fatos já não cabe na pequenez dos signos gráficos, é tempo de poesia, no seu sentido mais original. É quando os discursos prontos se rasgam. É quando se queimam os relatórios crivados de mentira, e os PBAs. É quando se dispensam os risos ensaiados e postiços. É quando se evitam reuniões totalmente desnecessárias. É quando se abre a Arca de Noé, com pássaros e bichos livres. É quando o canteiro de obra se torna celeiro da rebeldia organizada. É quando o loteamento de gente engaiolada acorda do concreto frio, pesado. É quando o Operário e o Atingido se abraçam na mesma causa da mesma energia popular. É quando é tempo de flores das mais perfumadas, a liberdade.
Então vamos lá, fazer o que será!
Ela sabe sim pe. Claret, sabe muito bem o que se passa na Amazônia,pois o projeto dela, da ambientalista e do rapazinho de nariz curvo são os mesmos; Enriquecer ainda mais os ricos as custas dos povos da Amazonia. Não se iluda não é uma escolha entre o ruim e o pior.