O copo usado de extrato de tomate

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Alexey Dodsworth Magnavita* – Brasil Post

Nos anos 1970, lembro-me como se fosse hoje, na casa de uma de minhas parentes havia dois tipos de copo. A utilização de um tipo ou do outro dependia da taxa da melanina alheia. Funcionava assim: se eu estivesse com um coleguinha cuja pele tivesse a cor mais escura e ele pedisse água, a ele era oferecido o copo de extrato de tomate que, quando vazio, era lavado e utilizado como copo d’água. Aos meus coleguinhas de tez mais clara, eram oferecidos os copos usuais, da casa.

Ficou chocado? Esse tipo de procedimento não era exclusivo dessa minha parente, era algo bastante corriqueiro entre muitas (não todas, mas muitas) famílias de pele clara que moravam em Salvador. O racismo, obviamente, tinha a ver com a cor da pele, não com ideais enlouquecidos de “raça pura”. Eu, que vivi grande parte da vida numa bolha familiar italiana em Salvador, sou totalmente mestiço de europeu com indígenas e negros, mas minha pele clara me autorizava a beber água num copo que não fosse um recipiente usado de extrato de tomate.

Havia também a questão do uso dos elevadores. Perdi a conta de quantas vezes fui estudar na casa de um amigo e, acompanhado de um colega negro, fomos avisados pelo porteiro (em geral, um porteiro negro e entristecido) da necessidade de meu colega negro usar o elevador de serviço. “Ordens do condomínio”, dizia-nos ele. O mais bizarro nisso tudo não era apenas a orientação condominial. Era o fato de que nem eu e nem meu colega nos indignávamos, nos revoltávamos. Nada. Procedíamos como se tudo aquilo fosse “tudo bem”. Ponham no desconto o fato de que, até o começo dos anos 80, eu e meus coleguinhas tínhamos menos de dez anos de idade.

Mas então chega a pré-adolescência e, com ela, uma adorável capacidade de questionar. Isso é bem interessante. É como se algo se acendesse em nossos cérebros, talvez catapultado pelos hormônios efervescentes, e a gente começa a se perguntar se determinadas coisas são certas ou erradas, não importa o que nossas famílias nos ensinem. E foi então que descobri que o apartheid dos copos não era um consenso em minha imensa família italiana. Havia os que faziam a divisão melanínica das louças, e os que repudiavam tal ato. Foi então que me dei conta que eu me incomodava quando me submetia a oferecer o copo de extrato de tomate ao coleguinha negro. Foi então que me toquei que eu sentia algo estranho (ruim) quando meu colega era obrigado a usar o elevador de serviço – que, a priori, serve para transportar o lixo. Essas más sensações provavelmente se acometem sobre a maioria das pessoas, quando diante de atos racistas, creio eu. Tenho minhas razões para acreditar que a maioria das pessoas é boa, ainda que um pouco preguiçosa e com tendência a agir “do jeito que sempre foi” porque assim é mais fácil viver.

Então chegaram os deliciosos anos 80 e, com eles, a primeira iluminação: nos outdoors de Salvador, todos os modelos eram brancos dos cabelos negros. Em muitos casos, loiros dos olhos azuis. Vou repetir o nome da cidade: Salvador. Na terra mais negra de todo o Brasil, as lojas locais se valiam de modelos cujo visual não representava o público consumidor. Nestes mesmos anos 80, dei-me conta da principal ofensa utilizada contra pessoas negras: “macaco”. O mais impressionante é que alguém poderia humilhar um negro no meio da rua, chamando-o de “macaco” pra baixo, e ninguém fazia nada. Nada. Era “normal”.

Saltemos no tempo, estamos em 2014. Hoje, dia em que escrevo essas linhas, é Dia da Consciência Negra. Há quem diga que esse tipo de “dia especial” não é mais necessário. Há quem, na falta de uma piada mais engraçada e caindo no engodo da falsa simetria, diga que é preciso criar o Dia da Consciência Branca. Há quem diga que os negros têm “privilégios”. Há quem diga que não existe mais racismo.

Não muito tempo atrás, tive uma discussão virtual com um cara negro. Ele, da altura de seus vinte e poucos anos de idade, ou seja, nascido no fim dos anos 80, quando a lei antirracismo já havia sido aprovada, insistia que o racismo não existe mais. Desfilou o rosário de sucessos que era a vida dele, advogado formado pela USP etc. Disse-me que era tratado “como se fosse igual” (esse “como se fosse” não me escapou, e muito me espantou, quase ao nível do choque elétrico). Insistiu que o problema do Brasil não é com a cor, e sim com a classe social. Fez-me rir. Se uma criança de rua loira dos olhos azuis for pedir esmola na Avenida Paulista, no outro dia vira matéria de jornal. Se for adulto, então, vira o Mendigo Gato e recebe proposta de trabalho. Ainda assim, o cara foi aplaudido por vários não-negros presentes no grupo virtual: “é isso mesmo, racismo é coisa superada, não existe mais, parabéns garoto negro, você aprendeu a cartilha”.

Vejam vocês como o destino é uma criatura irônica: meses depois, enquanto corria na esteira de minha academia, quem vejo entrar? Exatamente o garoto negro do debate virtual. Ele não me reconheceu, mas eu o reconheci muito bem. Três coisas me chamaram a atenção. Um: ele era o único negro presente em toda a academia naquele horário de pico (excetuando-se os faxineiros e um professor). Dois: ele estava muitíssimo bem vestido, estalando dinheiro. Três: ele era popular, conhecia quase todo mundo e as pessoas eram muito agradáveis com ele.

Estaria ele certo? Não existe racismo, e sim preconceito de classe social? Ele parecia a prova viva disso. Parecia. Até que eu quase caí da esteira ao perceber o que estava acontecendo.

Reza a boa educação do fitness que, após usar um aparelho, você o limpe com um pano embebido em álcool, para que ninguém se refastele em seu suor. Em minha academia, quase ninguém procede assim, pois o ar condicionado é forte e os aparelhos não ficam evidentemente suados após serem utilizados.

Mesmo assim, depois que esse cara usava um aparelho, quem vinha em seguida sempre passava o pano com álcool. Sempre. E apenas, única e exclusivamente quando ele usava. Fiquei quinze minutos prestando a atenção. Vi um cara vermelho de tanto esteroide transbordando suor azedo deixar um oceano de água salgada num dos bancos da academia. O sujeito que utilizou o banco depois nem ligou para a líquido que escorria. Deitou-se ali mesmo, impregnando-se com o suor do bombado branco-avermelhado. Terá sido um ato racional? Esperava ele que os esteroides fossem transferidos de alguma forma?

Quanto ao rapaz negro para quem “racismo não existe”, ele não suava uma gota. Usava um aparelho, saía e a máquina continuava tão limpa quanto antes. Mesmo assim, todos – TODOS – os que vinham em seguida faziam questão de limpar o aparelho com um pano embebido em álcool. Ele não percebia que faziam isso com ele. Tenho para mim que nem mesmo as pessoas sacavam o que estavam fazendo. Eram as mesmas pessoas que o abraçaram quando ele chegou, que riam das piadas dele, que lhe davam tapinhas nas costas. As mesmas pessoas que o convidam para baladas, que curtem as coisas que ele posta em redes sociais. Tenho para mim que não era de forma consciente que elas agiam, ao passar pano com álcool nos aparelhos que o rapaz usava. É bem provável que essas pessoas não se pensem racistas, e de fato não são racistas no mesmo sentido de um maluco da Ku Klux Klan, e eu jamais evocaria tal similaridade neste caso. Ainda assim, elas estão tomadas por vieses implícitos.

Não existem mais (tantos) copos de extrato de tomate usados, a louça não é mais (tanto) um apartheid. Se alguém tentar segregar as pessoas impondo a elas o uso do elevador de serviço, será penalizado. A lei, nesse sentido, funciona. Mas ainda existem os panos com álcool, higienizando os lugares por onde os negros passam. Não dá pra criminalizar um procedimento sutil, inconsciente, e talvez nem seja essa a resposta para tais casos. O racismo ainda existe em nosso país, ocultado pelo medo de ir preso, mas a lei não é a única resposta, queria eu que fosse tão fácil acabar com um problema apenas com leis. A educação entra nessa conta, como parte essencial da equação. Com educação e pensamento crítico, poderemos alcançar um patamar mais elevado, livres de podres que se fazem reconhecer em atos falhos.

Mais do que nunca, o Dia da Consciência Negra desponta como uma lembrança incômoda de minha infância em Salvador, e vejo como tive sorte: saí relativamente ileso de uma cultura e de um contexto que poderiam ter me feito racista. Em grande parte, atribuo a isso a minha educação jesuíta no Colégio Antônio Vieira. Eram ainda os anos 80, não havia lei de cotas, mas os padres faziam questão de oferecer uma bolsa para cada filho de funcionário negro da escola e, na época, nenhum imbecil se arvorava a dizer que isso era “privilégio para pretos”. A consciência crítica contra o preconceito, fosse racismo ou homofobia, fazia parte da educação que recebemos. Num dia como o de hoje, mais do que qualquer outro, sinto saudades de um dos melhores colégio de Salvador – onde aprendi definitivamente a nunca, jamais, oferecer um copo usado de goiabada a quem quer que seja.

Ainda assim, admito, na atualidade, panos embebidos em álcool me assustam mais do que copos usados de extrato de tomate.

*Escritor, mestre em Filosofia e consultor da UNESCO no Brasil

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.

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