Convenção 169 da OIT: “Quando a forma determina o conteúdo”, por Joaquim Shiraishi Neto

convenção 169Por Joaquim Shiraishi Neto*, em Combate Racismo Ambiental

Em tempo de grandes empreendimentos na região amazônica muito se discute sobre a necessidade da definição de regras “claras” e “objetivas” acerca do que chamam “regulamentar” a Convenção nº 169 da OIT, que trata dos povos indígenas e tribais (promulgada pelo Decreto nº 5.051, de 10 de abril de 2004), sobretudo a parte da Convenção relacionada aos procedimentos dos direitos de participação e consulta prévia relacionados a esses grupos.

É de se estranhar tal movimentação, que destoa das posições jurídicas tradicionais, pois não custa lembrar que, no Brasil, todo Tratado Internacional acordado é incorporado à ordem jurídica após a promulgação presidencial, tendo aplicação imediata, prescindindo de qualquer tipo de regulamentação para a sua vigência, validade e aplicação.

No caso específico da Convenção nº 169 da OIT, urge reafirmar que não se trata de qualquer Tratado, mas de um documento cujo conteúdo está prenhe de Direitos Humanos, igualando-o aos demais dispositivos do rol de direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988. Todavia, não custa recordar que essa Convenção é parte de um conjunto de dispositivos internacionais acordados pelo Brasil vinculados à proteção das chamadas minorias e por isso mesmo a sua leitura deve estar em parelha com outros Tratados, como é o caso da Convenção sobre o Genocídio (Lei nº 2.889, de 1.° de outubro de 1956).

Assim, não há o que se regulamentar da Convenção nº 169; deve-se aplicá-la de forma imediata, garantindo aos povos indígenas e tribais os direitos nela contidos. Contudo, não se pode esquecer que desde a sua promulgação, em 2004, o governo e a sociedade vêm somando esforços no sentido de incorporar a Convenção, delimitando a sua extensão e conteúdo, uma vez que no Brasil não há “povos tribais” no sentido estrito do termo. O significado “tribal” deve ser considerado “lato sensu” envolvendo os grupos sociais emergentes organizados em movimentos sociais (como: os seringueiros, quebradeiras de coco, faxinalenses, catadoras de mangaba, comunidades de fundo de pasto, dentre outros),[1] tal como dispõe o Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que “Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”.

Se não se impõe como juridicamente necessário regulamentar os dispositivos relativos ao processo de participação e consulta prévia contidos na Convenção nº 169, a questão que se coloca para a reflexão é: Quais as implicações da regulamentação e, consequentemente, os interesses em jogo?

A utilização do direito como instrumento de mediação em uma sociedade múltipla e complexa é enfatizada por diversos intérpretes. Tal interpretação ganha força com o desmantelamento do Estado Social brasileiro, que ruiu antes mesmo de ser implantado. Para essa compreensão, que alça o direito ao centro das relações, os instrumentos jurídicos teriam a capacidade de ampliar os espaços de participação e a resolução consensual dos problemas. Isso afastou os conflitos, tidos como prejudiciais à sociedade, que se descobre. Contudo, ignoram que esse direito embora tenha pretensão de universalidade, é o direito de uma única comunidade – daquela que sempre deteve o monopólio da produção jurídica –, o direito praticado usurpou deliberadamente o direito dos demais grupos sociais, não representando, portanto, o interesse dos ”povos indígenas e tribais”, que somente entraram em cena na última década (decorrente do intenso processo de mobilização política, a exemplo das quebradeiras de coco e das catadoras de mangaba cuja existência social foi reconhecida através da Lei do Estado do Maranhão nº 9.428, de 2 de agosto de 2011, e da Lei do Estado de Sergipe nº 7.082, de 16 de dezembro de 2010).

Dessa forma, acreditar na regulamentação da participação e consulta prévia como forma de fazer valer o direito fundamental contido na Convenção por meio desse direito, é pactuar com as regras previamente estabelecidas que sempre se mantiveram distantes de qualquer forma de participação e consulta, fora do controle da sociedade; significa acatar as interpretações hermenêuticas ditadas a priori, sem nenhum tipo de controle das suas definições.

Por fim, pactuar com o argumento da necessidade da regulamentação do direito de consulta prévia significa retornar às velhas práticas de usurpação da fala em prol da legitimidade. Quando a forma determina o conteúdo.

[1] Sobre esse processo, que se encontra referido a um campo jurídico de disputas, remeto a SHIRAISHI NETO, Joaquim. 2ª ed. Direito dos Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil. Manaus: edições UEA, 2007.

* Professor visitante do Programa de Pós em Direito da UFMA. Pesquisador da Fapema e CNPq. Bolsista Produtividade CNPq nível 2.

Enviado para Combate Racismo Ambiental através de Liana Amin Lima.

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