Favela tem que voltar ao mapa do Brasil

Morro_Agudo

Ativistas do projeto Wikimapa, criado pelo grupo Rede Jovem, usam seu celular não só para se comunicar com os amigos e usar apps, mas também para mapear a cidade. Pois o Google Maps e a maioria dos mapas oficiais não reconhecem – até não “veem” – a maioria das ruas que existem em vários bairros. O projeto foi criado pelas ativistas Natália Aisengart Santos e Patrícia Azevedo.

Vladimir Kultygin, Rádio Voz da Rússia

Segundo João Cláudio Platenik Pitillo, diretor de projetos na Faferj (Federação de Associações de Favelas no estado do Rio de Janeiro) professor de história, pesquisador do Laboratório do Tempo Presente da UFRJ e autor do livro “Aço Vermelho: Os Segredos da Vitória Soviética na Segunda Guerra Mundial”, a prefeitura do Rio de Janeiro pediu ao Google Maps para retirar as favelas de fotos de satélite, “enganando a opinião pública internacional”. Segundo o professor, “a ideia era vender uma cidade sem favelas” para a Copa do Mundo.

Essa medida vai junto com as famosas remoções e reintegrações de posse e com a “pacificação” dos Complexos do Alemão e da Maré, junto com outras comunidades no Rio. Estas comunidades, segundo Platenik Pitillo, “não possuem representação nos órgãos estatais” e “continuam marginalizadas”.

A Voz da Rússia conversou com Thaís Inácio, do projeto Wikimapa, sobre a presente tentativa de fazer das favelas uma comunidade ativa, permanente e segura das cidades e sobre os problemas que enfrentam os moradores desses bairros.

– As favelas são desconhecidas pela cartografia oficial. A que se deve essa ausência?

– As favelas foram formadas depois da criação do mapa oficial. A cidade foi transformada e colocaram coisas ali na favela. É um território que foi formado fora da legitimação, evidentemente as favelas não estariam no mapa. Nos anos 90 houve um projeto chamado Favela-Bairro que pretendia integrar a favela à cidade urbanizando-a e fazendo outras melhorias. E mesmo assim, os documentos oficiais, por razões burocráticas, não contemplaram isso. Há mais de 20 anos desse projeto, hoje em dia existe outra realidade. Em alguns momentos, a gente sentiu-se bem compromissada com esta questão, porque neste momento a prefeitura voltava atrás. Os mapas digitais, por exemplo.

No ano passado, a prefeitura pediu para retirar a palavra “favela” de alguns lugares que estavam já no mapa digital: favela do Matagal, favela da Rocinha. E agora nós temos a desconfiança de que tem a ver com os grandes eventos que o Brasil recebeu, que foi a Copa do Mundo de Futebol e a cúpula do BRICS. Mas a gente exige justiça, com certeza essa é uma atitude que dá passos para trás, porque o termo favela designa uma identidade cultural, ninguém que mora lá quer que se chame morro. Lá não é morro, lá é favela. A lei de não colocar no mapa, a lei de voltar atrás é uma atitude que a gente não pode compreender.

– O projeto abrange só o Rio de Janeiro e São Paulo ou tem outras áreas do país para abranger?

– É um projeto colaborativo. A gente tem alguns lugares marcados no resto do Brasil, mas a gente atuou no Rio de Janeiro, Baixada Fluminense, as áreas principais. No Rio de Janeiro, são favelas e muitos complexos que têm várias comunidades dentro. A gente também foi para São Paulo, mas lá trabalhamos em apenas uma favela. É um projeto colaborativo e aberto para qualquer pessoa. Elas podem também mapear para incluir informação. Existe a possibilidade de fazer isso em todo o país, é questão de mobilizar pessoas.

– São os próprios moradores das favelas que mapeiam as comunidades?

– Exatamente. Esse é um dos pontos principais do nosso projeto. É onde a gente acredita que deve ser feito esse mapeamento pelas próprias pessoas que moram lá, que conhecem histórias, que podem dizer o que é mais adequado para colocar ali. A gente procura trabalhar com a identidade mesmo. É difícil você conscientizar essas pessoas. Se elas não participarem desse processo, essa informação vai ser incluída de qualquer maneira, mas sobre outro ponto de vista. Então, para a gente é superimportante que sejam os moradores. É por ali que a gente trabalhou e segue trabalhando.

– Então, é um projeto não só de cartografia, de mapear, mas também cultural e social?

– Com certeza. É uma coisa transdisciplinar essa questão de estar no mapa. É cultural também. Não é só uma questão cartográfica porque a gente coloca seu bem no documentário que a gente fez, uma questão de que há um discurso. A cartografia está em uma representação desse discurso, uma dessas representações.

– Eu vi o trailer do filme Todo Mapa Tem um Discursoe tive a impressão de que o trabalho de wikirepórter consistia de várias atividades, é um repórter mesmo que entrevista os moradores. Poderia comentar o que faz um wikirepórter?

– Os wikirepórteres, como a gente fala desses moradores que participam do projeto, em primeiro lugar são moradores. Em segundo lugar, são jovens que a gente capacita, a gente tem algum viés com eles, a gente vai lá no próprio território, fala sobre fotografia, sobre vídeo, sobre a redação, sobre a questão de fazer mapa ou não, sobre a identidade deles, a gente conversa com eles e depois a gente deixa eles virem nesses locais para colocar no mapa o dia-a-dia deles, mapear os lugares e entrevistar os comerciantes, por exemplo sobre os dados que vão ser colocados no Wikimapa.

Eles podem levar isso a uma questão um pouco maior, outras questões não só informativas. Eles vão postar no nosso blog o que é o lugar. A gente se encontrava sempre, monitorava todo esse trabalho também, porque surgem muitas questões durante esse processo.

Alguns territórios estavam passando pela pacificação. É um movimento do governo de militarizar, colocar polícia dentro da favela. O projeto das unidades de polícia pacificadora, UPP, tem várias contradições. Mas de qualquer forma, no dia-a-dia deles interferia, porque eles não podiam tirar fotos de um lugar, não só pela própria UPP, mas pelo tráfico também.

É essa dicotomia, você está sempre sob esses dois poderes. É difícil trabalhar neste ponto, mas como eles são moradores, eles sabem resolver essas questões de uma forma orgânica. E era isso: eles mapeavam, escreviam para o blog, e foi um trabalho com duração de seis meses, um projeto que passa pela comunidade para incentivar esta postura e depois deixar que eles continuem.

– O que é, realmente, uma favela?

– Eu acredito que é esse território que se forma organicamente muitas vezes a partir de desapropriação que o governo faz em prol de alguma obra que ele quer fazer na cidade. Cada favela tem sua história, cada uma é diferente, a história da formação delas, a cultura que elas formam de diferentes maneiras.

A Cidade de Deus, por exemplo, foi uma iniciativa do governo, começou para ser um conjunto habitacional e virou uma favela por essa questão do tráfico, crime, por uma questão cultural também, porque eles quiseram se identificar também. Além das construções do conjunto habitacional foram criadas outras construções. Essa não oficialização de vários serviços que seriam da cidade.

É um conceito que é diferente para cada território. Aqui no Rio, e em São Paulo também, a gente vê. Porque elas são formadas pelo coletivo, elas começam a alargar. A Maré tem uma história que era a de uma senhora (Orosina Vieira) que resolveu morar no mangue, colocou uma casa lá, uma palafita, porque estava na água. Pode ser uma lenda, pode não ser.

– O projeto é só brasileiro ou faz parte de uma rede internacional?

– O projeto foi premiado fora do Brasil e dentro do Brasil várias vezes. A gente firmou parcerias com várias pessoas de outros estados do Brasil e também de fora do país. Essa é uma rede que não é oficial. Várias pessoas apoiaram o projeto quando a gente precisou. A gente tem vontade de cooperar, sim. A gente mobilizaria com prazer pessoas em outros locais.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Vanessa Rodrigues.

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