Militante social e professora de Direito da FGV consideram que a Justiça acaba por utilizar argumentos morais e não técnicos em julgamentos que envolvem ações de homens contra mulheres
por Rodrigo Gomes, da RBA
Duas decisões recentes da Justiça reacenderam a discussão sobre a atuação do Poder Judiciário em casos de violência contra as mulheres. Os desembargadores do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo inocentaram um fazendeiro da acusação de estupro contra uma adolescente de 13 anos alegando que ele não tinha como saber que ela era menor de idade, em virtude do seu comportamento. Já no TJ de Minas Gerais, dois desembargadores consideraram que certas fotos e formas de relacionamento por parte de uma mulher demonstram “não ter ela amor-próprio e autoestima”.
“O Judiciário, como parte da sociedade, reflete esse problema em que a violência do homem perante a mulher é diminuída. Isso tem de ser combatido. Será que se fosse o contrário, a vítima de violência fosse homem, seria assim?”, analisou a professora de Direito da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) Angela Donaggio.
No caso paulista, que corre em segredo de justiça, um fazendeiro da cidade de Pindorama foi preso em flagrante, em 2011, com duas meninas, uma de 13 e outra de 14 anos. Somente com a primeira ficou comprovada a relação sexual. Ele chegou a ficar preso por 40 dias, mas foi libertado.
Após ter sido condenado em primeira instância, ele foi absolvido pela 1ª Câmara Criminal Extraordinária do TJ paulista, no dia 16 de junho. A consideração é de que as meninas se prostituíam e que o fazendeiro não teve condições de avaliar acertadamente a idade das garotas.
Na argumentação, o relator do caso, acompanhado pela maioria do colegiado, argumenta que “não se pode perder de vista que em determinadas ocasiões podemos encontrar menores de 14 anos que aparentam ter mais idade”.
E prossegue: “Mormente nos casos em que eles se dedicam à prostituição, usam substâncias entorpecentes e ingerem bebidas alcoólicas, pois em tais casos é evidente que não só a aparência física, como também a mental desses menores, se destoará do comumente notado em pessoas de tenra idade”.
No caso mineiro, Rubyene Oliveira Borges processou o ex-namorado, Fernando Ruas Machado Filho, por ele ter divulgado fotos íntimas dela para familiares e amigos. Em primeira instância, ele foi condenado a pagar uma indenização por danos morais de R$ 100 mil.
O réu recorreu e a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais reduziu a indenização de R$ 100 mil para R$ 5 mil. O julgamento ocorreu em 10 de junho deste ano e o acórdão foi publicado no dia 24 do mesmo mês.
O relator do processo, desembargador José Marcos Rodrigues Vieira, já havia proposto redução ao valor do dano moral para R$ 75 mil, mas reforçou que não se pode considerar a vítima culpada pela situação. “Pretender-se isentar o réu de responsabilidade pelo ato da autora significaria, neste contexto, punir a vítima.”
Porém, o revisor do processo, desembargador Francisco Batista de Abreu, discordou de Vieira e caracterizou a vítima como alguém de “moral diferenciada”, a quem não caberia o cuidado com a mesma. “Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida. (…) A exposição do nu em frente a uma webcam é o mesmo que estar em público.”
O magistrado argumentou ainda que o relacionamento amoroso entre os dois não poderia ser considerado, já que havia sido de um tempo curto e que no momento da realização das fotos não havia mais um relacionamento constituído. “Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério”, afirmou.
Angela ressalta que, no TJ de Minas Gerais, o desembargador Vieira fez uma avaliação técnica sobre o caso. Mas o relator fez uma análise moral, apegando-se a discorrer sobre o que seriam fotos sensuais ou que tipo de relacionamento pode ser considerado um namoro ou não.
“Em praticamente todos os trechos do voto se busca desmoralizar a autora da ação. E o objeto do julgamento não é esse, mas sim a responsabilidade do réu em divulgar as fotos íntimas”, afirmou. Angela admite que não se pode inibir valores morais e ideologia pessoal, mas o julgamento deve ser pautado na norma jurídica.
Para ela, uma decisão que reduzisse o valor da indenização, somente, ainda seria aceitável. “Mas uma decisão baseada em argumentos dessa natureza é muito triste de se ver. Deve ser extremamente frustrante para a autora da ação ser vítima da divulgação das imagens e receber essa decisão”, afirmou.
Para a militante da Marcha Mundial de Mulheres Sônia Coelho, a inversão de culpa nesses casos reforça os valores machistas e abre caminho para a perpetuação da violência. “Uma das principais consequências é que as mulheres ficam constrangidas em denunciar novos casos de violência, além da descrença que isso causa sobre o Poder Judiciário”, afirmou.
“Os agressores acabam por se sentir muito à vontade com isso. É quase um ambiente de compreensão, de solidariedade”, complementa Sônia.
Sônia lembra que os casos não são isolados, mas ocorrem em muitas instâncias do Judiciário e locais do país. Ela lembrou do caso do pai que engravidou a própria filha, então com 12 anos, na cidade de Beberibe, no Ceará. O juiz Whosenberg de Morais Ferreira considerou que a menina tinha plena consciência dos atos e havia seduzido o pai.
“Infelizmente, ainda é muito aceita a ideia de que o homem age por amor, por ciúme ou por emoção nos casos de violência contra a mulher. E assim as mulheres são consideradas culpadas dos atos que elas foram vítimas. A mulher já é historicamente reprimida no espaço social, mas também o é no espaço institucional e judiciário”, conclui a militante.
Em ambos os casos relatados, ainda cabe recurso.