Intolerância contamina população de Guaíra e Terra Roxa, na fronteira com Paraguai; ao retomar territórios, índios tentam restituir aos filhos o direito à terra dos avós
por Tadeu Breda, da RBA
O coração de Amélia disparou ao perceber que um carro preto se aproximava lentamente até frear. “Não, nem conheço vocês”, responderia, assustada, depois que um dos ocupantes baixou o vidro escuro e lhe mandou subir. A jovem tentaria escapar segundos depois, ao perceber que a ordem ganhava rispidez e se transformava em ultimato, “Entra logo!”, mas não conseguiu.
“Estava de salto e não pude correr”, justifica. A voz é baixa, as mãos não param de amarrotar um pedaço colorido do vestido. “Então, um deles pegou meu cabelo, tapou minha boca e me colocou pra dentro.”
O sequestro se transformou numa longa sessão de agressões e abusos sexuais que Amélia, nove meses depois, ainda não conseguia verbalizar. Repetia apenas “Judiaram muito de mim” ou “Me judiaram bastante” para descrever o que passou nas mãos de três homens e as mãos que passaram sobre seu corpo de 19 anos, rodando pelas ruas da cidade com o som ligado no último volume.
“Tentei quebrar o vidro com meu sapato, chutando, mas um deles pegou minha perna e sentou em cima”, relata. “O outro me segurava e tapava minha boca pra eu não gritar. O que estava dirigindo tinha um revólver.”
Ao examiná-la, os médicos não encontrariam vestígios que pudessem ajudar na identificação dos agressores. A memória de Amélia, abalada pela violência, tampouco contribuiria com o trabalho da polícia: a jovem nunca havia visto os criminosos e, depois, jamais conseguiria descrevê-los com exatidão.
A mensagem que lhe deixaram, porém, Amélia não esquece: “Fala pra Funai que nós vamos acabar com eles”, disseram, ao soltá-la num matagal três horas depois. O recado convenceu os parentes e amigos – e as autoridades – de que o sequestro não se tratara de um delito comum.
Com a pele morena, cabelos negros lisos e longos, não raro adornados com penas coloridas, Amélia ostenta inconfundíveis traços indígenas, mas não se trata apenas de aparência. A jovem pertence à comunidade guarani que vive nos arredores de Guaíra e Terra Roxa, pequenos centros urbanos de uma região agrícola do oeste do Paraná, que faz divisa com Mato Grosso do Sul e fronteira com o Paraguai.
Mais que ser guarani, Amélia é irmã do cacique Inácio Martins, líder da aldeia Tekoha Marangatu, retomada pelos índios em 2004. Lá, a adolescente mora e estuda. Pelas manhãs, trabalha como estagiária na Coordenação Técnica Local que a Fundação Nacional do Índio (Funai) mantém em Guaíra desde 2012.
O rapto ocorreu exatamente no trajeto entre a aldeia e a sede do órgão indigenista, pouco depois das 7h, horário em que ela, todos os dias, deixa a casa para empreender uma caminhada de 40 minutos até o escritório.
“Eles sabiam quem eu sou.”
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Fundada há 63 anos, Guaíra não é um lugar tão pacato quanto sugere a população de 30 e poucos mil moradores. Ruas tranquilas, andorinhas em revoada e orelhões com a forma de animais autóctones invisibilizam um dos maiores índices de homicídio do país.
Dados do Ministério da Saúde apontam que 34 pessoas foram assassinadas no município em 2011. O número, compilado pelo Mapa da Violência 2013, elaborado pelo sociólogo Júlio Jacobo Waiselfiz, coloca Guaíra como a sétima cidade mais perigosa do Brasil, a segunda do Paraná, com uma taxa de 110,2 homicídios por 100 mil habitantes.
Guaíra também foi palco de uma das maiores barbaridades brasileiras. Em 2008, 15 pessoas morreram após homens encapuzados invadirem um bairro de periferia e abrirem fogo contra membros de um grupo criminoso. O episódio ficou conhecido como a “maior chacina da história do Paraná” e integra listas de crueldades ao lado dos massacres do Carandiru, em São Paulo, da Candelária e de Vigário Geral, no Rio de Janeiro.
O subtenente Romualdo Amorim, que trabalhou durante cinco anos como policial militar em Guaíra e atualmente comanda o batalhão de Terra Roxa, é categórico ao diagnosticar a origem dos assassinatos: “Nosso problema são a fronteira e o crime organizado”, define, munido da experiência de quem integrou forças especiais para repressão ao contrabando, roubo de veículos e tráfico de drogas e armas.
“Os assassinatos costumam ser provocados por acertos de contas”, comenta, lembrando que existe uma “alta concentração de barões do crime” no departamento paraguaio de Canindeyú e na cidade de Salto del Guairá, no outro lado do rio. “Membros de facções brasileiras vivem foragidos por lá.”
A violência de Guaíra convive com uma vocação econômica essencialmente agrícola, baseada, por enquanto, em pequenas e médias propriedades. Por onde quer que se chegue, a cidade se mostra rodeada de lavouras. No final de março, o entorno estava tomado por plantações de milho.
Juntas, Guaíra e a vizinha Terra Roxa colheram 390 mil toneladas do grão em 2012, segundo números do Censo Agropecuário elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O mesmo levantamento mostra que as duas cidades também produziram 120 mil toneladas de soja no período.
Recorrendo, majoritariamente, a sementes transgênicas, os agricultores da região cultivaram, em 2012, mais de 160 mil hectares de milho e soja, que lhes renderam cerca de R$ 250 milhões. Além das commodities, em Guaíra e Terra Roxa também se costuma plantar mandioca e trigo, e criar bovinos, suínos e galináceos. Há dois anos, os municípios produziram mais de 15 milhões de litros de leite.
A qualidade do solo do oeste do Paraná e a cada vez mais intensa conversão ao agronegócio colocou nas alturas o preço das propriedades rurais. Levantamentos do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), órgão do governo estadual que mantém um escritório em Guaíra para atender aos agricultores locais, mostram que o alqueire (cerca de 2,4 hectares ou dois campos de futebol) é comercializado por até R$ 100 mil na região.
“O oeste do Paraná tem a maior cadeia produtiva do frango e é um dos maiores produtores de milho e soja do país. E Guaíra, obviamente, está inserida nesse contexto”, define o prefeito da cidade, Fabian Vendruscolo (PT). “Nossas terras são muito produtivas. Por isso, uma demarcação indígena é tudo o que não queremos.”
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Não há informações precisas sobre quantos guaranis vivem nos municípios de Guaíra e Terra Roxa. ONGs indigenistas afirmam que esse rincão paranaense abriga cerca de 1.800 índios. O Censo do IBGE identificou em 2010 pouco mais de 700 e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, contabiliza ao menos 1.300.
Mais ou menos numerosos do que atestam antropólogos, recenseadores e autoridades governamentais, os guaranis estão espalhados por 13 aldeias: oito localizadas em Guaíra e cinco, em Terra Roxa. Todas são fruto de retomadas e ocupações: ainda não há um único hectare demarcado na região.
A maioria das aldeias foi fundada nos últimos quatro anos, em terras que os índios afirmam terem vivido pais e avós – e eles próprios, quando jovens ou crianças. Outras, segundo os indígenas, têm sido ocupadas permanentemente.
É o caso da aldeia Tekoha Porã, que fica na periferia de Guaíra e está prestes a ser engolida pelo avanço do asfalto. O cacique, Cláudio Barros, um senhor encurvado que quase não consegue mais caminhar, alega nunca ter saído dali. Tem 96 anos e relata haver testemunhado a passagem da Coluna Prestes.
Alguns proprietários rurais não mentem quando dizem, revoltados, que não havia índios à vista quando ocuparam as terras e começaram a plantar. Isso não significa, porém, que nunca houve população indígena em Guaíra e Terra Roxa. Ou que a presença guarani remonta apenas à época da colonização.
Um relatório produzido pelo antropólogo Ian Packer, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), sustenta que os guaranis do oeste paranaense sofreram um intenso processo de “esbulho territorial” ao longo do século 20 e que esse processo foi “conduzido sob a égide de um sistemático descumprimento da legislação indigenista e de um genocídio silencioso.”
Segundo Packer, as violações cometidas contra os índios da região foram “acobertadas” pelos dois regimes autoritários vividos pelo país nos últimos 80 anos: o Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a ditadura civil-militar, que se estendeu de 1964 a 1985.(Leia mais aqui.)
A leitura do relatório sugere que o conflito atual entre índios e agricultores do Paraná não pode ser compreendido sem levar em consideração as arbitrariedades outrora cometidas contra os índios. Com referências históricas, documentos e entrevistas com anciãos guaranis, Packer procura demonstrar que a presença indígena em Guaíra e Terra Roxa não é recente – nem a localização atual das aldeias, aleatória.
Para sustentar as conclusões, o antropólogo começa lembrando que uma das principais características do povo guarani é a mobilidade. “Há uma circulação constante de famílias e indivíduos”, explica Packer, que, no entanto, não fala em nomadismo. “São colonizadores dinâmicos”, prefere, salientando que taxá-los como nômades tem sido uma estratégia para anular relações com a terra e direitos sobre ela.
“Os grupos são autônomos para escolher seus lugares de ocupação e estabelecem seus assentamentos segundo critérios ecológicos, como a presença de recursos naturais e sociológicos, conforme suas redes de parentesco”, anota. “Manter certa distância entre si é também uma forma de evitar conflito entre núcleos familiares.”
A liberdade para se estabelecer em diferentes pontos de um amplo território explicariam as razões que levam os guaranis do oeste paranaense a transpor limites geográficos com Mato Grosso do Sul e Paraguai. “Para eles, são fronteiras artificiais, que lhe foram impostas num passado relativamente recente”, diz o antropólogo.
Packer lembra que a presença indígena em Guaíra e Terra Roxa é atestada por relatos de alguns exploradores enviados em missões oficiais do governo federal para mapear a região no passado recente. Um deles foi o tenente-coronel José de Lima Figueiredo, que percorreu as margens do rio Paraná em 1937.
Em seu livro de memórias, o militar faz referências à “existência de silvícolas”, denunciada por “velhas canoas” e “malocas”, e descreve a frustração que padeceu ao não conseguir estabelecer contato com alguns deles: “Mal chegávamos, fugiam para a mata, abandonando tudo que estavam fazendo”, escreve. “A fuga fora precipitada, pois encontrei uma cabaça com chimarrão ainda quente.”
Há ainda diversos registros documentais e testemunhais de uso de mão de obra indígena em condições análogas à escravidão para construção de postos militares, abertura de estradas e, principalmente, na colheita da erva mate.
No relatório, Packer sustenta que políticas indigenistas também serviram para retirar os guaranis do oeste do Paraná. Uma das estratégias do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), por exemplo, era conduzi-los à reserva de rio das Cobras, em Laranjeiras do Sul (PR), criada em 1901 para abrigar membros da etnia kaigang.
Criada em 1967 para substituir os desmandos do SPI, a Funai também ajudou no êxodo. Por exemplo, negando-se a emitir documentos aos guaranis nas próprias aldeias. Quando se viam precisados de declarações e certidões, tinham que requisitá-las nas reservas de Porto Lindo, em Japorã (MS), e Jaguapiré, em Tacuru (MS), onde eram então instados a permanecer.
Outro acontecimento que prejudicou os guaranis de Guaíra e Terra Roxa foi a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Conduzido pelos governos militares, o megaempreendimento teria provocado uma onda de regularização fundiária no oeste paranaense, procedimento necessário para indenizar agricultores que haviam se instalado nas terras prestes a desaparecerem graças à construção da barragem.
Com base em documentos oficiais, como um relatório do Departamento de Geografia, Terras e Colonização do Paraná, Packer denuncia a cessão ilegal de lotes aos posseiros. “O evento Itaipu serviu para que a anormalidade fundiária reinante na região em função do avanço descontrolado da colonização fosse regularizada às pressas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra)”, pontua.
Os índios, porém, foram preteridos nas compensações. Primeiro, por uma determinação do governo militar, que vetou qualquer demarcação nas faixas de fronteira por razões de “segurança nacional”. Depois, pela vigência dos “critérios de indianidade”, que desconsiderou a presença de guaranis e reduziu o número de famílias indígenas passíveis do benefício pelo alagamento das terras.
Apesar de localizar-se em Foz do Iguaçu (PR), Itaipu impactou diretamente a região. As inundações foram tão avassaladoras que desapareceram com as Sete Quedas, conjunto monumental de cataratas que despencavam as águas do rio Paraná por uma série de degraus rochosos a uma altura de 114 metros. Guaíra, que em guarani significa “lugar intransponível”, deve o nome ao extinto turbilhão.
Mais de 30 anos após a inauguração, porém, Itaipu rechaça haver contribuído para a expulsão dos guaranis. “As comunidades indígenas foram devidamente indenizadas e reassentadas sob a orientação da Funai”, explica a assessoria de comunicação da usina, em nota. “As áreas adquiridas representam muitas vezes o tamanho da área ocupada pelas comunidades quando da formação do reservatório.”
No entanto, o estudo de Packer faz referência a um memorando interno escrito em 1987 pelo então diretor jurídico de Itaipu, Clóvis Ferro, em que admite aos superiores hierárquicos que as compensações foram tímidas demais. “O pleito dos índios não é desarrazoado, de um lado; de outro, é evidente que o relatório sobre o qual se baseou Itaipu não é veraz”, argumenta. “Ao invés de Itaipu ter sido generosa, provavelmente terá subtraído muita área aos indígenas.”
Por tudo isso, e após anos de pesquisa, Packer rebate com veemência as acusações de que os guaranis de Guaíra e Terra Roxa sejam paraguaios ou sul-mato-grossenses. E critica a ideia de que jamais viveram no oeste paranaense. Pelo contrário, defende, são remanescentes das famílias que sobreviveram ao esbulho territorial iniciado em meados do século 20, processo que destrincha nas cem páginas do relatório.
“Parte delas jamais abandonou a região e manteve ocupações de quinhões de territórios, empregando a mão de obra nas propriedades que se estabeleceram sobre eles”, argumenta. “Outra parte retornou na última década depois de um período de exílio em que, fugindo das perseguições, se deslocaram para aldeias do Paraguai, interior do Paraná ou Mato Grosso do Sul.”
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“Rapaz, não posso conversar com você agora”, afirma, pelo telefone, o agricultor Roberto Weber. “Tenho que sair voando para levar um carregamento de agrotóxico.” Eu queria ouvir as opiniões de Weber sobre a questão indígena em Guaíra e Terra Roxa. E amanhã?, insisti. “Também não dá. Passarei a semana inteira viajando.”
Dez dias depois, de volta a São Paulo, eu tornaria a ligar. “Agradeço seu interesse, mas andei dando uma olhada no seu site e achei meio tendencioso”, justificou. “Conversar com você não vai me ajudar. Então, acho melhor deixarmos as coisas assim. Obrigado.” E desligou, inviabilizando terminantemente o diálogo.
Além de ser dono de terras no oeste do Paraná, Roberto Weber é presidente da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), entidade criada em março de 2013 como resposta dos produtores rurais ao que consideram uma “onda de invasões” às fazendas da região.
A Ongdip mantém estreita relação com o Sindicato Rural de Guaíra. Tanto que, quando tentei entrevistar seu presidente, Silvanir Rosset, recebi como resposta uma sugestão: “Ligue para o senhor Weber.” Ao saber que o colega havia se recusado a me atender, Rosset saiu-se com uma evasiva válida apenas no mês de abril, época em que eu estava na cidade. “Tenho que declarar meu Imposto de Renda.”
Eu fazia questão de prosear com Weber e Rosset porque são as duas principais vozes contrárias à demarcação de terras indígenas no oeste do Paraná. E são eles – Weber, sobretudo – que costumam dar as caras para defender a posição dos agricultores em assembleias e eventos sociais. E, claro, na mídia.
Em junho do ano passado, o Jornal Nacional deu destaque a um relatório da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) dizendo que a Funai pretende demarcar “terras sem índios” em Guaíra e Terra Roxa. A estatal viria a público imediatamente para admitir que assuntos antropológicos estão fora de sua alçada, mas ainda assim Weber apareceu diante das câmeras confirmando a tese.
“Está aumentando índio. Estão vindo do Paraguai. São paraguaios.”
A Band também se interessou pelo tema. Em março, uma equipe da TV Tarobá, afiliada da emissora, foi conduzida pessoalmente pelo presidente da Ongdip a aldeamentos localizados em suas terras. “Por medida de segurança, estamos apenas passando às margens de uma invasão”, explicou a repórter, resguardada dentro da caminhonete do agricultor. “A gente não pode parar porque os índios são agressivos.”
Além de concederem entrevistas a reportagens críticas à Funai e aos índios, Ongdip e Sindicato Rural estão à frente de campanhas para convencer cidadãos, empresários, lojistas, políticos e, claro, produtores rurais do oeste do Paraná sobre as “consequências desastrosas” da demarcação e os impactos sobre a economia local.
Aparentemente, estão conseguindo.
Na noite de 17 de março, conforme noticiou O Presente, um jornal de circulação regional, “centenas de pessoas” atenderam ao chamado das entidades e se reuniram em Guaíra para participar de um “fórum de esclarecimento das demarcações no Paraná”. Na realidade, como o periódico estamparia em manchete, tratava-se de um encontro de “lideranças” para se posicionar contra a concessão de terra aos guaranis.
A assembleia lotou o anfiteatro da Universidade Paranaense (Unipar). Weber e Rosset estavam presentes, ao lado dos prefeitos de Guaíra, Fabian Venduscolo (PT), e de Terra Roxa, Ivan Reis (PP). O deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR), membro da bancada ruralista no Congresso Nacional, também compareceu.
O comício ocorreria na esteira de uma temporada difícil para os índios que vivem nas aldeias da região. No ano passado, era comum ver pelas ruas de Guaíra, sobretudo perto do terminal rodoviário, faixas contrárias à reivindicação dos guaranis. “Invasão indígena não combina com ordem e progresso”, estampavam, sem esconder a assinatura do Sindicato Rural.
Carros circulavam com adesivos contrários à Funai, ostentando mensagens como “Minha terra, minha vida. Não à demarcação indígena injusta. Juntos Paraná e Mato Grosso do Sul”. Para-brisas e latarias também apareceram adornados com lemas do tipo: “Verdade, alimento e união: base de uma nação. Confisco não”, slogan acompanhado pela palavra “Funai” debaixo de um xis vermelho.
No dia 14 de março, Ongdip e Sindicato Rural realizaram um protesto na ponte Ayrton Senna, que, a partir de Guaíra, se estende sobre o rio Paraná, ligando os estados do Paraná e Mato Grosso Sul. É também caminho para o Paraguai. Na ocasião, as entidades aproveitaram veículos trafegando em velocidade reduzida para adesiva-los, caso os motoristas autorizassem. E distribuíram panfletos.
Um dos folhetos que mais circulou em Guaíra trazia a foto aérea de um lugar não identificado para ilustrar a “diferença” entre uma área indígena e uma fazenda. Enquanto a propriedade rural aparece bem cuidada e cultivada, provavelmente com soja ou milho, a reserva da Funai ostenta um viçoso matagal.
Apócrifo, o texto contrapõe a contribuição de produtores e indígenas para o bem-estar da nação. Enquanto o agronegócio cultivaria 57 milhões de hectares e colheria 180 milhões de toneladas de grãos, respondendo por 13% do PIB, os índios disporiam de 113 milhões de hectares onde não produziriam nada, não gerariam renda nem criariam empregos. “E você pensando que eles precisam de mais terra”, conclui o fôlder.
No verso, outros dados demostrando o “absurdo” das demarcações, com destaque para os “100 mil hectares” que o governo federal estaria querendo destinar aos índios no oeste do Paraná. O informativo afirma que a Funai “presenteará” aos guaranis toda a faixa territorial de 230 quilômetros entre Guaíra e Foz do Iguaçu. E continua, acusando que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ligado à igreja católica, e ONGs financiadas com dinheiro internacional “promovem a invasão de terras produtivas e legais” com o intuito de “manchar nossos campos de sangue.”
Além de ser propagada em faixas, panfletos e adesivos, o pleito dos agricultores ganhou as redes sociais. No Facebook, começaram a proliferar mensagens de ódio contra os guaranis. Uma delas, postada em 26 de março de 2013 na página da comunidade Agricultores Guaíra, dizia que os índios “vão tudo em contêiner de volta ao Paraguai”. Havia ainda conselhos aos moradores: “Vamos ensinar nossos cachorros a comer índio em vez de ração, um a cada dois dias já está bom”.
Em abril, um internauta garantia que os guaranis “só querem dinheiro, iPhone 5 e luxo”, e outro conclamava: “Fora Funai, fora índios, fora tudo que impede o Brasil de produzir e se desenvolver.” No dia 5 daquele mês, um jovem opositor da demarcação cravou: “Índios filhos da puta. Capa e depois mata um por um.”
A área de comentários do site de notícias Portal Guaíra também virou receptáculo de intolerância. “Pra que eles querem essas terras? Só sabem ficar enchendo a cara”, escreveu um leitor no início do ano passado. Outro recomendava: “Se querem mordomia, que trabalhem para isso.” Ou ainda: “São índios, mas querem viver como classe média. Não temos mais nem direito de ir e vir por medo desses bugres.” E também: “Lugar de índio é no mato, não em cidade e em terras produtivas.”
Os comentários ecoam, com maior ou menor grau de virulência, as mesmas teses defendidas pela Ongdip e pelo Sindicato Rural: os guaranis, na verdade, são paraguaios ou vieram do Mato Grosso do Sul, são invasores, são violentos, alcoólatras, não produzem nada, Guaíra nunca teve índio, a cidade será totalmente demarcada, seremos expulsos de nossas terras, perderemos tudo.
“Eu vejo os guaranis acuados”, relata uma moradora da cidade que repudia as manifestações anti-indígenas e que prefere não se identificar por temer represálias dos agricultores. “Eles não têm direito de ir ao mercado sem o povo ficar comentando. As crianças vão à escola e são discriminadas. Teve professor que mandou índio voltar pra casa e tomar banho. É tudo muito vergonhoso.”
“Falar em apartheid seria exagero, mas há uma intolerância generalizada. Até pessoas que não seriam afetadas pela demarcação se posicionam contra os índios”, analisa outro morador, que tampouco quis se identificar. Ele debita o clima de “histeria” às entidades rurais. “Conseguiram incutir preconceito nas pessoas.”
A campanha teve efeitos práticos para além da tela do computador.
Anatálio Ortiz, cacique da aldeia Tekoha Jevy, ocupada em 2010, conta que se acostumou a ouvir hostilidades nas ruas e nos programas de rádio. Quando caminha pela cidade, diz, não é raro que motoqueiros passem por ele a toda velocidade, xingando, ofendendo, gritando para que desocupem as terras e desapareçam.
O cacique também já ouviu várias vezes uma frase que, a princípio, pode até parecer simpática: “Vai sair demarcação pra você, índio, vai sair demarcação”, reproduz Anatálio, explicando: “Só que ele não tá falando de demarcação da Funai, tá falando de túmulo, cemitério, que vou morrer e finalmente terei minha terra.”
Ílson Soares, cacique da aldeia Tekoha Y’hovy, relata que foi seguido por uma caminhonete enquanto pedalava entre Guaíra e a terra que lidera, a dez minutos do centro da cidade. Andando de bicicleta, também já teve o desprazer de topar com um motorista que, ao vê-lo, sacou uma arma e deu tiro para o alto.
“Outro dia, eu caminhava pela rua. Dois adolescentes vinham na direção contrária. Quando cruzaram comigo, levantaram a camisa e me mostraram um revólver: Aqui pra você, índio!”, acrescenta Ílson.
Claro que o cacique não se acostumou às agressões, mas parece encará-las com cada vez mais naturalidade. “É tanta ameaça que, se ameaça matasse, a gente já estava tudo morto.”
Alguns guaranis, porém, perderam a vida de maneira trágica durante os períodos de maior tensão. É difícil estabelecer uma relação direta entre as mortes e o clima de enfrentamento, mas, segundo lideranças, a intolerância está na raiz de algumas fatalidades ocorridas na região.
O atropelamento de uma senhora indígena nas imediações da rodoviária de Guaíra é um exemplo. Em dezembro de 2012, às vésperas do réveillon, a idosa foi atingida em cheio por um veículo em alta velocidade. O motorista fugiu sem prestar socorro.
Para o prefeito Fabian Vendruscolo, tratou-se de um “infeliz episódio” que “poderia ter acontecido com qualquer um”. Os guaranis, que fizeram um protesto no local logo após o sinistro, lembram que alguns carros costumam passar perigosamente próximos dos índios quando caminham por ruas e estradas.
Em novembro do ano passado, um guarani conhecido como Bernardino Ortega foi assassinado com um tiro nas redondezas da aldeia Tekoha Porã, na periferia de Guaíra. Segundo relato dos indígenas, os atiradores dispararam à esmo contra o guarani e três jovens da comunidade acabaram atingidos de raspão.
A versão oficial afirma que Bernardino havia se envolvido numa briga de bar e que o homicídio foi uma decorrência dos desentendimentos que teve com outros clientes. Parentes garantem que vinha sendo ameaçado durante todo o dia.
Entre 2012 e 2013, ao menos três guaranis cometeram suicídio nas aldeias do oeste paranaense. Todos haviam sofrido algum tipo de hostilidade antes de tirarem a própria vida.
“Aqui, os níveis de suicídio indígena não são tão altos como no Mato Grosso do Sul, mas existem”, compara o subtenente Romualdo Amorim, comandante da Polícia Militar em Terra Roxa. “Quando você se desfaz deles, dizendo que não prestam pra nada, alguns internalizam a ofensa e não conseguem lidar com a humilhação.”
Um dos índios que decidiram acabar com a própria vida, ainda adolescente, era constantemente chamado de “invasor” pelos colegas da escola. Outro havia ouvido de uma assistente social que jamais conseguiria emprego e que seria melhor se morresse de uma vez. Um deles se enforcou nos arames farpados de uma cerca.
As hostilidades também atingiram funcionários do escritório local da Funai. Em fevereiro, Diogo Oliveira, um dos técnicos do órgão indigenista, preferiu pedir transferência após ser informado que sua cabeça estava a prêmio.
Antes de saber que havia se transformado em potencial fonte de renda para os pistoleiros da fronteira, Diogo havia sido ameaçado várias vezes na rua. Numa delas, conta, um motorista encostou ao seu lado, abriu o vidro do carro, mostrou uma arma e disse: “Tá vendo, vamos acabar com todo mundo.” Outra vez, um cidadão visivelmente transtornado entrou na sede da Funai e lhe advertiu: “Vou perder a cabeça com você.”
Outro indigenista, que prefere não se identificar por razões de segurança, decidiu mandar a enteada e os dois filhos para morar alhures, longe do conflito indígena. “Eu mesmo já pensei em sair de Guaíra, mas só vou embora quando a coisa azedar de vez.”
Para amenizar a perseguição, o servidor preferiu retirar o adesivo amarelo com a inscrição “Funai” da caminhonete que utiliza em serviço. “É para chamar menos atenção”, justifica, admitindo a ineficácia da estratégia: após dois anos na cidade, seu rosto e sua compleição física são conhecidos e reconhecíveis por todo mundo.
“Já cansei de ser xingado de Funai filho da puta”, diz. “Também costumam passar de carro gritando: Vai morrer, Funai! Um motoqueiro sempre faz isso.”
O funcionário conta que, quando costumava frequentar restaurantes, hábito que praticamente abandonou, um cidadão se aproximou para dizer em alto e bom som que não tinha medo nem dele, nem dos índios, nem da Funai. E contabiliza episódios em que foi destratado na farmácia e na padaria, e seguido pela rua.
Entre ameaças, agressões, hostilidades e algumas mortes, a tensão foi se agravando até o sequestro seguido de abusos sexuais sofrido pela jovem Amélia. A partir daí, os ânimos parecem ter se amainado. “Acho que perceberam que estavam indo longe demais e resolveram parar um pouco”, analisa o funcionário do órgão indigenista.
Entre os guaranis e os poucos apoiadores na cidade, porém, ninguém acredita que a sociedade guairense tenha tomado consciência sobre os direitos indígenas e mudado a opinião sobre as demarcações.
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O procurador da República Henrique Gentil Oliveira encontrou um cenário de “muito litígio” entre índios e produtores rurais quando desembarcou em Guaíra no mês de abril de 2013 para assumir um posto no escritório que o Ministério Público Federal (MPF) havia instalado na cidade dois anos antes.
Uma das primeiras atitudes foi conhecer a situação dos guaranis, já que uma das missões da procuradoria é assegurar o cumprimento das garantias constitucionais dos povos indígenas. Na companhia de um colega e de funcionários da Funai, entrou em contato com caciques e visitou todas as aldeias da região.
“Verificamos que os índios viviam em condições muito complicadas”, conta. “A maioria não recebia sequer água potável, não tinha eletricidade ou acesso à moradia. A alimentação era deficitária. Enfim, um quadro bem negativo.”
A partir das visitas, os procuradores produziram relatórios sobre cada uma das 13 aldeias de Guaíra e Terra Roxa. Em junho do ano passado, publicaram tudo na internet, motivando notícias sobre as condições degradantes em que vivem os guaranis. Também começaram a agir institucionalmente, com 45 procedimentos administrativos, para que direitos básicos fossem assegurados pelo poder público municipal, estadual e federal.
“Buscamos fornecimento de água, energia e cestas básicas, auxílios para moradia e inscrição nos programas de transferência de renda”, continua Henrique. “Houve progressos: boa parte das casas já tem acesso a água e luz elétrica, por exemplo, mas ainda hoje as condições de vida dos guaranis estão longe de ser aceitáveis.”
De acordo com o procurador, querelas jurídicas impedem que os índios se beneficiem de alguns serviços públicos, como a construção de escolas ou créditos para plantio. “Ao menos oito possuem litígio possessório”, contabiliza. “Como estão em áreas que formalmente pertencem a outras pessoas e há ordens de reintegração de posse, isso acaba sendo uma dificuldade.”
Assim como alguns moradores de Guaíra e os funcionários da Funai, Henrique acredita que o trabalho do MPF foi fundamental para distender os ânimos na cidade. Não só porque os governos começaram a prestar mais atenção aos guaranis, mas sobretudo porque a justiça federal passou a reprimir arroubos racistas.
“Esses crimes aconteciam diuturnamente, sobretudo na internet, e hoje verificamos que postagens preconceituosas já não ocorrem com tanta intensidade”, analisa o procurador. “A circulação de panfletos apócrifos também diminuiu muito.”
O MPF de Guaíra recebeu no ano passado mais de cem comunicações de crime de intolerância: gente que compilou mensagens de ódio dentro e fora das redes sociais e as encaminhou à procuradoria. Além de funcionários da Funai e ONGs, moradores revoltados com a campanha difamatória ajudaram a detectar possíveis criminosos.
“Instauramos vários inquéritos”, afirma Henrique, revelando que é preciso cautela ao tipificar o crime de racismo. “É delicado distinguir onde termina a opinião e onde começa o delito. Houve pessoas ouvidas pela Polícia Federal, e algumas foram denunciadas à justiça. Agora, estão respondendo a processo.”
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Em 17 de fevereiro, a Funai publicou no Diário Oficial da União portaria instituindo um Grupo Técnico (GT) de quatro membros para “realizar os estudos complementares de natureza antropológica, cartográfica e ambiental necessários à identificação e delimitação das áreas ocupadas pelos guaranis em Guaíra e Terra Roxa”.
A determinação retoma uma portaria anterior, editada em fevereiro de 2009, e que então já havia nomeado um conjunto de especialistas para analisar as reivindicações dos guaranis. Porém, nenhum relatório foi apresentado – e o processo não andou.
Em maio de 2013, uma orientação do governo federal, paralisando as análises demarcatórias no país, ajudou a jogar para ainda mais longe uma possível concretização das demandas indígenas. A decisão foi tomada pouco depois do assassinato de um terena em Sidrolândia (MS), há 500 quilômetros de Guaíra e Terra Roxa, mas afetou diretamente os guaranis no oeste do Paraná. Em fevereiro, a Funai só instaurou um novo GT porque foi obrigada por uma decisão judicial.
Composto por dois antropólogos e dois geógrafos, o grupo terá um prazo de 12 dias para realizar as pesquisas de campo e mais 130 dias para finalizar o relatório. As diligências começaram apenas em julho. Nos meses anteriores, porém, a iminência de sua chegada voltaria a acirrar os ânimos entre os agricultores da região.
A grande assembleia organizada em Guaíra pelo Sindicato Rural e pela Ongdip em 17 de março é um exemplo de como a nova portaria da Funai mexeu com os produtores. Outro indício é a articulação dos proprietários para contratar antropólogos que produzam estudos em sua defesa.
Ao menos seis especialistas trabalham na confecção do laudo, sob coordenação de Antônio Pimentel Pontes Filho, professor de Antropologia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e proprietário da Pontes Consultoria & Pesquisa, empresa com sede em Toledo (PR).
As pesquisas tiveram início em março e têm basicamente duas frentes. Uma, orientar e ajudar a compreensão dos produtores rurais sobre o processo demarcatório. Outra, reunir documentos, depoimentos e qualquer informação relevante para que comprovem a posse legal das terras que ocupam.
“Da mesma maneira que os índios dizem para a Funai que aquelas terras são deles, os agricultores me falam que eles é que são os donos da terra”, explica Pontes. “As famílias possuem documentos com mais de cinco décadas, chegaram lá décadas atrás, algumas há muito mais tempo, e agora estão se sentindo lesadas em seus direitos.”
O antropólogo conta que o objetivo é apresentar as perícias favoráveis aos produtores durante o prazo estabelecido na legislação para que o relatório da Funai seja contestado. Durante 90 dias, quaisquer pessoas ou entidades, inclusive órgãos governamentais, podem contrariar as conclusões do órgão indigenista, que então analisa e dispõe sobre as alegações.
Caso não obtenham sucesso, o material será reaproveitado em futuras ações judiciais. “É uma questão que normalmente se resolve nos tribunais”, prevê Pontes. “Eu vou sugerir aos agricultores o que eles podem ou não usar juridicamente, analisar se têm documentações que podem ser apresentadas pelos advogados.”
De acordo com o prefeito de Guaíra, Fabian Vendruscolo, os proprietários da região estão investindo “recursos de alta monta” na contratação do estudo. Porém, se recusou a falar em valores. O antropólogo responsável também se negou a entrar em detalhes financeiros sobre o trabalho – e se ofendeu com a pergunta.
“Os agricultores poderiam estar preocupados apenas em produzir, mas estão tendo que gastar dinheiro para se defender das demarcações”, reclama o prefeito, ele mesmo membro de uma família de fazendeiros cujas terras estão parcialmente ocupadas pelos guaranis.
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Gozando do segundo mandato à frente do governo municipal, Vendruscolo explica que as reivindicações indígenas estão atrapalhando a rotina de Guaíra. “As transações imobiliárias estagnaram. Está sendo difícil trazer investidores”, queixa-se. “O fantasma da demarcação mudou nossa realidade.”
Assim como os agricultores, o prefeito alega que antigamente não havia índios na cidade. “Nasci aqui e vou completar 50 anos vivendo aqui. Não tenho lembrança de vê-los. Se houve indígenas nos últimos cem anos, nós nem os considerávamos indígenas. Para nós, eram paraguaios que moravam em Guaíra”, argumenta.
Vendruscolo lembra que, caso demarque terras na região, o governo federal repetiria uma “injustiça histórica” com o povo do oeste paranaense.
“Há 30 anos fomos convocados pela União para perder as Sete Quedas”, lamenta, recordando que as inundações promovidas por Itaipu prejudicaram o turismo e a economia local, e despovoaram a cidade. “Nunca recebemos a devida compensação.”
O prefeito revela que desde então Guaíra está à procura de um “novo caminho para o desenvolvimento” e não aceita que o tão aguardado crescimento econômico esteja em risco devido à iminência da demarcação.
A aposta de Vendruscolo para catapultar a cidade é um projeto conhecido como Plataforma Logística de Guaíra. Incluído no plano diretor em 2008, durante sua primeira gestão, a plataforma prevê a construção de um porto comercial no rio Paraná, numa região que abriga o aeroporto municipal e a rodovia BR-272.
“É o lugar ideal para escoar a produção regional e ficará completo quando o governo federal trouxer uma ferrovia”, acrescenta. “Estamos dialogando com investidores desde 2007, mas um grupo de guaranis decidiu entrar na área e está ameaçando inviabilizar o projeto, que é estratégico para o município.”
Vendruscolo se refere ao Tekoha Jevy, uma das maiores e mais prósperas aldeias da região. Lá, os indígenas mantêm grandes plantações de mandioca e milho, além de roçados de abóbora e feijão. Quando visitei o território, que abriga cerca de 300 pessoas, havia uma enorme porção de terra arada e preparada, esperando apenas a inoculação das sementes. E estavam finalizando a construção de uma escola.
A possibilidade de que o porto naufrague por causa da ocupação indígena não é o único motivo de tensão para o prefeito. Vendruscolo garante temer “enfrentamentos civis indesejáveis” caso a demarcação deixe de ser apenas uma reivindicação dos guaranis e, ao contrário do terminal logístico, comece a sair do papel.
O prefeito anuncia que a desapropriação dos agricultores – com uso da Força Nacional, se necessário – jamais será aceita pela população. “Mais de 90% é contra. Se houver desintrusão, haverá conflito”, prevê, lembrando que o processo demarcatório deveria respeitar as propriedades. “Não se pode assegurar direitos para os índios retirando direitos dos proprietários.”
Vendruscolo, porém, diz que não deseja expulsar os guaranis. “Já são cidadãos do município”, adianta. “Enquanto a situação não se resolve, passamos a distribuir 160 cestas básicas por mês, incluímos 200 índios no Bolsa Família e colocamos 200 crianças indígenas nas escolas municipais.”
Na visão do prefeito, a melhor solução para o impasse se esconde na riqueza gerada pelas turbinas de Itaipu. “A usina poderia comprar terras e construir reservas”, propõe, lembrando que Guaíra é um dos 16 municípios lindeiros ao lago da hidrelétrica. “Itaipu já tomou atitudes semelhantes em Diamante D’Oeste (PR) e São Miguel do Iguaçu (PR). Como a usina tem duas áreas ocupadas na cidade, esse pode ser o meio correto para resolver a questão.”
Em nota, Itaipu adianta que não pretende seguir o conselho. “Temos dialogado com Funai, prefeitura, governo do estado e outras instituições no sentido de colaborar para uma solução pacífica da questão”, pondera. “Não cabe, no entanto, a Itaipu, enquanto entidade binacional, a responsabilidade de aquisição de áreas para formação de aldeamentos indígenas, o que é de competência dos governos centrais de ambos os países por meio de órgãos constituídos para tal fim.”
Pese à negativa da usina, o prefeito acredita que o maior entrave para a resolução do conflito indígena em Guaíra e Terra Roxa é a Funai. Talvez por isso já tenha se deixado fotografar na companhia de agricultores ao lado de uma faixa com o tradicional lema do ruralismo nacional: “Ou o Brasil acaba com a Funai, ou a Funai acaba com o Brasil.”
“O povo quer resolver o problema dos índios. E os índios aceitam propostas que não passem pela demarcação”, garante Vendruscolo, citando iniciativas frustradas da prefeitura em construir casas populares para 88 famílias guaranis no perímetro urbano da cidade. “Nada funciona, porque a Funai dificulta soluções amigáveis.”
“São palavras ao vento”, rebate Diogo Oliveira, antropólogo que trabalhou por dois anos no escritório que o órgão indigenista mantêm na cidade. O servidor afirma que a Funai nunca recebeu propostas objetivas da prefeitura durante todo o tempo em que esteve em Guaíra. “O que temos de concreto são 400 famílias guaranis em situação de vulnerabilidade, aguardando ser atendidas pelo Estado brasileiro.”
Há cerca de quatro anos, o choque de interesses entre brancos e índios no oeste do Paraná inaugurou novo capítulo de uma história que, para muitos, pode parecer recente, mas que remonta inevitavelmente ao passado. E cujo futuro, se pacífico ou sangrento, ninguém arrisca prever. Ou quase ninguém.
“Se houver demarcação, a coisa vai ferver. E pode até ter conflito”, arrisca um dos funcionários da Funai. “Mas depois os índios vão ter acesso à terra e parte desse deserto químico, essas plantações cheias de agrotóxico que vemos ao redor da cidade, vai virar uma mata. Com a floresta regenerando, talvez a população não veja mais os indígenas de maneira negativa. Principalmente as gerações mais jovens.”
E a fronteira?
Para o prefeito de Guaíra, Fabian Vendruscolo, pode ser uma grande irresponsabilidade demarcar terras indígenas na fronteira com o Paraguai. “As autoridades estão há anos tentando combater a entrada do contrabando, do tóxico e do armamento”, explica, sugerindo que, com a demarcação, os índios poderão entrar e sair do país sem qualquer problema. “Há 30 mil guaranis no departamento paraguaio de Canindeyú. Imagina o descontrole fronteiriço que uma demarcação pode ocasionar?” Vendruscolo não acusa diretamente os indígenas como potenciais agentes do crime organizado na região, mas pondera: “Na fronteira é tudo mais tenso e complexo.”
A legislação brasileira, porém, não veda a demarcação de terras indígenas em zonas de fronteira. Essa determinação foi ratificada em outubro de 2013 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante julgamento dos embargos declaratórios relativos à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O território ocupa uma ampla faixa fronteiriça entre Brasil e Venezuela.
Em 2009, o STF, por recomendação do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, impôs 19 condicionantes para aceitar a demarcação proposta pela Funai e homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005. Uma delas diz que “a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”.
Ao ratificar a validade das condicionantes, o ministro Luís Roberto Barroso, relator dos embargos, decidiu que os 19 itens são aplicáveis apenas à Terra Indígena Raposa Serra do Sol. “As decisões do STF não possuem sempre e em todos os casos caráter vinculante”, reconheceu. Mas ponderou: “Tendo a Corte enunciado sua compreensão acerca da matéria, é apenas natural que esse pronunciamento sirva de diretriz para as autoridades que venham a enfrentar novamente a questão.”
O procurador da República em Guaíra, Henrique Gentil Oliveira, acredita que o recente acórdão do STF basta para que novas demarcações ocorram em áreas fronteiriças – inclusive no oeste paranaense. “Seguindo essa linha, com Exército e Polícia Federal podendo entrar na área, não entendo que uma demarcação aqui na fronteira traria problemas para a segurança nacional.”