Leonardo Sakamoto
Uma mulher de 33 anos morreu, nesta segunda (5), no Guarujá (SP), em consequência de ferimentos causados por um linchamento que sofreu, na noite de sábado. Ela havia sido acusada de sequestrar crianças para rituais de magia negra – informação que circulou como boato nas redes sociais e páginas da internet. Por ela se encaixar com a “descrição” divulgada, e mesmo sem informações concretas sobre o sumiço de crianças ou qualquer comprovação de sua responsabilidade, idiotas resolveram fazer Justiça com as próprias mãos.
Posto uma discussão que já havia trazido aqui, mas é pertinente.
Estamos lendo cada vez mais casos de linchamento ou de justiciamento com as próprias mãos. O que me leva a crer que parte da população – cansada de esperar que o poder público cumpra seu papel e garanta condições mínimas de segurança – simplesmente enlouquece. E faz ressurgir seus instintos mais primitivos.
Vez ou outra são atiçados por jornalistas (sic), especialistas em segurança (sic), políticos e até homens e mulheres de Deus (sic).
Teoricamente em algum momento da história humana, nós abrimos mão de resolver as coisas por conta própria para impedir que nos devoremos. O sistema que criamos para isso não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje.
Tempos atrás, um homem foi espancado até a morte em Olinda (PE), por moradores que o confundiram com um suspeito de estupro. De acordo com a Polícia Civil, a vítima dormia em um terreno baldio quando foi linchado. Chegou a ser levado para o hospital, mas não resistiu.
Não teve direito à defesa ou à recurso. Tal como a mulher no Guarujá, foi julgado e executado pela estupidez humana. Se com o devido processo legal, inocentes amargam anos de cadeia devido a erros, imagine sem ele?
O Brasil não tem pena de morte. Oficialmente, é claro. Porque muitos governos e suas polícias fingem que não sabem disso. E, não raro, turbas processam, julgam e executam também.
Em mais um caso, outro homem foi espancado até a morte e teve a casa incendiada e o bar destruído após ser acusado de ter sido o responsável pela morte de uma adolescente em Marília (SP). A investigação, contudo, não apontou uma pessoa como a responsável.
O povaréu não quis saber e aumentou a bola de neve de rumores, fofocas e maldizeres, decidindo que ele era culpados. Ao final, questionado pela barbárie, um dos participantes da loucura declarou: “Se a gente fez, ele deve. Alguma coisa ele deve”.
Em 2011, a internet replicou imagens bizarras de uma mulher espancando um cachorro. Para ela, todo o rigor previsto em lei, é claro. O problema é que começaram a pipocar no Twitter, Facebook, blogs e afins uma miríade de pessoas, tão dodóis quanto a dita, sugerindo linchamento em praça pública, imolação em fogueira, separação de membros por cavalos em fúria, pisoteamento por bodes chapados em ácido e até assassinato.
Outros queriam a aplicação imediata da lei de Talião, o velho olho por olho, dente por dente. Ou seja, fazer dela a mesma peteca em que transformou cretinamente o au-au. O mais interessante é que os comentários da turba foram ditos e reditos, aprofundados e revisitados, sem o menor pudor. Era sangue o que o povo queria. Cada um desejava purificar a alma no sangue alheio.
Mesmo para os padrões covardes do anonimato na internet (tem gente que se protege atrás de um monitor pois, na vida real, sua coragem é menor que seu mouse), esse caso me assustou na época.
Ao criticar linchamentos públicos de “culpados” ou “inocentes” não defendo “bandido” ou “impunidade”, mas sim esse pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia.
Para muita gente, esse tipo de decisão sumária é linda, seja feita pelas mãos da população, seja pelas do próprio Estado, ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista. Sabemos da dificuldade de levar alguém a julgamento e, estando lá, conseguir uma condenação real por seus crimes – caso essa pessoa tenha, de fato, os cometido. Mas creio que todos os que lutam para que Justiça não seja uma palavra bonita numa capa dura de um livro não se sentem contemplados com o passamento de figuras folclóricas como Augusto Pinochet, Suharto, Erasmo Dias, Coronel Ubiratan, e tantos outros que se foram antes de responder pelo que fizeram perante seus semelhantes.
Não quero uma saída “Nicolas Marshall”. Quero apenas que a Justiça funcione. E, com isso, a sociedade consiga saldar as contas consigo mesma, discutindo-se, entendendo-se.
Não era bom marido?
Mau pagador de impostos?
Trapaceava nas cartas?
Vendia bebidas vencidas ou não lavava os copos com decência?
As porções servidas no bar não eram dignas?
Era avarento, invejoso, preguiçoso?
Lançava-se à luxúria?
Torcia para o time errado?
Dava “bom dia” de dentes cerrados? – ah, os dentes cerrados…
Entregava-se à bebida?
Não ia à missa todos os domingos?
Era econômico nos elogios?
Ou, quiçá, pior? Usava mão-de-obra escrava? Violentava crianças? Maltratava animais? Pau nele!
Pois bandido bom é bandido morto?
Para começo de conversa, diga-me com quem andas que te direi quem és.
Afinal de contas, matar é solução para pau que nasce torto, que não tem jeito, morre torto.
E, pior ainda na periferia, onde filho de peixe, peixinho é.
Revidar é nosso direito, pois quem com ferro fere com ferro será ferido.
Ou eles ou nós, pois o pior cego é aquele que não quer ver.
Já disse isso antes e volto a repetir: é gostoso desistir de pensar e, lugar-comum, ir com a manada, né?
Se algo causa impacto, é claro que será copiado. Não estou jogando a culpa no mensageiro ou dizendo que o mimetismo é a causa, mas nós jornalistas temos certa parcela de responsabilidade. E não falo por conta da banalização da violência. É a sua transmissão acrítica, como se notícias fossem neutras, não houvesse contexto social e todos os receptores da informação compartilhassem dos mesmos valores.
Então, você amigo internauta, amigo jornalista, não transmita ou repasse aberrações sem questionar. Lembre-se que o seu apoio a um ato idiota – seja objetivo ou por omissão – não muda sozinho a opinião das pessoas, mas unido a outros apoios ajuda a formar uma percepção sobre o assunto. Em suma, toda pessoa que ajuda a inflar monstros ao longo dos anos ou se omitiu diante disso tem uma parcela de culpa no show de horrores e de vergonha alheia.
Não somos nós que vamos a público cometer agressões. Da mesma forma que não é a mão de pastores ou deputados que seguram a faca, o revólver ou a lâmpada fluorescente que atacam gays e lésbicas. Mas somos nós que, muitas vezes, na busca por audiência ou para encaixar um fato em nossa visão de mundo, tornamos a agressão banal, quase uma necessidade para restabelecer a ordem das coisas.
Em tempo: Icushiro Shimada morreu no último dia 16 de abril, ao 70 anos, vítima de um infarto. Ele foi erroneamente acusado de abusar sexualmente de crianças no caso que ficou conhecido como Escola Base, em 1994. Ele, sua esposa (que faleceu por conta de um câncer em 2007) e mais seis pessoas foram ligadas a um crime que não aconteceu. O caso é considerado um dos maiores erros cometidos pela imprensa de todos os tempos.