Marcelo Zelic, aponta conflito de interesses em trabalho de grupo sobre violações a grupos indígenas e afirma que reparação dos indígenas nunca virá
por Mauricio Savarese – Carta Capital
Mutilações, chicotadas, içamento pelos polegares, prisões ilegais… A ditadura civil-militar (1964-1985) tinha um vasto arsenal para agredir seus adversários. Servia para o militante de esquerda. Servia para o ativista católico. E também, conforme mostra um documento que reapareceu depois de mais de 40 anos, servia para os indígenas. As mais de 7 mil páginas do Relatório Figueiredo, produzido entre novembro de 1967 e março de 1968, podem ajudar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) a recontar como essas tribos e seus líderes foram torturados, roubados e mortos durante os anos de chumbo. À frente desse trabalho está Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais-SP e coordenador do projeto Armazém Memória.
“O tema das violações dos direitos dos indígenas é tabu no Brasil”, afirma. O trabalho dele seria fundamental para a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da CNV, apurar os ataques aos nativos entre 1946 e 1988. O texto foi entregue no ano passado. No entanto, o ativista aponta, na entrevista abaixo, um detalhe preocupante: o grupo da CNV tem entre seus integrantes o filho de um acusado de maltratar indígenas.
“O pai é citado no Relatório Figueiredo e seu nome incluído na Lista de Indiciados no Relatório Figueiredo sistematizada no Relatório Parcial nº 1, que entregamos à CNV em novembro de 2012, trazendo 39 nomes de pessoas acusadas de maus tratos, torturas, encarceramento privado e desaparecimento contra índios, provoca imediatamente um impedimento à sua participação como assessor ou colaborador direto na Comissão Nacional da Verdade. No mínimo existe conflito emocional e de interesse”, disse.
Procurada, Maria Rita Kehl disse negar o conflito porque o assessor não tem influência no relatório final (leia AQUI). Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Carta na Escola: Como foi feito o relatório Figueiredo?
Marcelo Zelic: O Relatório Figueiredo é um dos mais importantes documentos que apuraram denúncias de violações de direitos indígenas no Brasil. Realizado entre novembro de 1967 e março de 1968 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia, que presidiu a Comissão de Investigação do Ministério do Interior criada pelo General Albuquerque Lima, ele esteve desaparecido desde o AI5 e foi considerado, por mais de 40 anos, destruído pelo incêndio criminoso dos arquivos do antigo Serviço de Proteção do Índio (SPI) no Ministério da Agricultura em Brasília. Sua origem está nas denúncias sobre o roubo do patrimônio indígena apuradas na CPI da Câmara dos Deputados de 1963 e que abrangeu os estados do antigo Mato Grosso e Amazonas. Uma vez que a documentação central foi incendiada e o trabalho não mais poderia ser feito em Brasília, o promotor decidiu percorrer o País estendendo as investigações para vários outros Estados, o que levou à ampliação do foco das investigações. A partir do que ele apurou nas regionais e aldeias, foi possível ampliar a gama de delitos praticados, apresentando tanto os crimes contra a pessoa do índio, renda e propriedade, quanto desvios de verbas públicas.
CE: O que a Comissão da Verdade aprendeu com esse trabalho?
MZ: A falta de entendimento entre membros da Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre a importância de se apurar todas as graves violações de direitos humanos praticadas no período da ditadura tem levado a temática das violações dos direitos indígenas a ser tratada como se fosse de segunda categoria. Fizemos esta denúncia no último encontro da CNV com os comitês da sociedade civil no final de 2013. Apesar de o nosso primeiro relatório ter sido entregue à comissionada Maria Rita Kehl, responsável pelo tema em novembro de 2012 e a cópia integral do Relatório Figueiredo em abril de 2013, ainda não tivemos retorno algum sobre o que foi feito a partir de então com estas informações. Logo que a descoberta dessas 7 mil páginas veio a público surgiu uma inexplicável polêmica em torno da natureza do documento que colocava em dúvida a lisura dos trabalhos realizados pelo procurador Jader. Argumentou-se que o relatório, produzido a pedido de um general, perseguia “bons funcionários” da instituição. A crítica formulada, entre outros, por Inimá Simões, principal assessor sobre a temática indígena ligado à CNV, foi feita antes de a documentação ser estudada e revelou o fato por trás destas críticas: a presença do nome de seu pai no Relatório Figueiredo. Ele é citado por 22 crimes. Os de “infringir maus tratos aos índios” e escravizar um índio chamado Manuelzinho por dois anos são dois deles.
Sobre Inimá Simões não pesa nada. O problema que se coloca é que seu pai sendo citado no Relatório Figueiredo e seu nome incluído na Lista de Indiciados no Relatório Figueiredo sistematizada no Relatório Parcial nº1, que entregamos à CNV em novembro de 2012, trazendo 39 nomes de pessoas acusadas de maus tratos, torturas, encarceramento privado e desaparecimento contra índios, provoca imediatamente um impedimento à sua participação como assessor ou colaborador direto na Comissão Nacional da Verdade. No mínimo existe conflito emocional e de interesse, sendo que neste caso deve valer a mesma conduta cuidadosa que foi aplicada para ex-presos políticos e parentes de mortos e desaparecidos, onde foi vetada a participação em trabalhos organicamente vinculados aos membros e grupos temáticos da CNV, não havendo, evidentemente, impedimento de colaboração em comitês e comissões organizadas no âmbito da sociedade civil, estados e municípios.
Itamar Simões foi demitido do SPI junto com tantos outros funcionários da instituição e seu processo na justiça, como os demais desdobramentos da Comissão de Inquérito criada pelo Ministério do Interior após o AI5, foi arquivado ou esquecido. Outro ponto obscuro a ser apurado são as denúncias da existência de uma cadeia clandestina no Posto Indígena que Itamar Simões chefiava. Sem julgar se as denúncias são corretas ou não, entendemos que a presença de parente de pessoas implicadas em investigações em andamento na CNV não colabora para o bom andamento dos trabalhos de busca da verdade.
CE: Sendo o relatório de conhecimento da CNV, nunca houve sequer uma resposta à sua denúncia?
Em 19 de abril de 2013, Dia do Índio, tornamos público através de série de matérias do jornalista Felipe Canêdo, a localização das 7 mil páginas do documento. Uma semana depois cópia integral do relatório Figueiredo foi encaminhada à CNV aos cuidados de Maria Rita Kehl. Em 23 de abril, antes mesmo de receber a documentação e portanto sem ter o conhecimento de seu conteúdo, Maria Rita em entrevista à EBC (aqui) já apontava à sociedade orientação passada por Inimá Simões colocando dúvidas sobre o conteúdo do Relatório Figueiredo e que claramente proporciona uma janela para desqualificar as acusações contra o seu pai. A entrevista veio na esteira de um debate velado que ocorreu através das reportagens de Felipe Canêdo, que em 19 de abril publicou declaração que dei no sentido de expor o que ocorria nos bastidores. Eu disse “Já tem gente tentando desqualificar o relatório, acho que por um forte medo de ele aparecer, as pessoas estão criticando o documento sem ter lido”. Maria Rita respondeu em matéria de 20 de abril.
Depois avisamos reservadamente a presidência da CNV sobre a situação e comunicamos a Maria Rita Kehl. Na ocasião apontamos também que as pesquisas trouxeram informações que no posto indígena em que trabalhava Itamar Simões funcionou uma cadeia clandestina de indígenas documentada em uma tese sobre o período militar, com documentação dos arquivos do Museu do Índio. Aconselhamos o afastamento do assessor pela sua proximidade e parentesco com os assuntos a serem investigados, tendo conotação inclusive de conflito de interesses.
A decisão de Maria Rita foi a de que ele não seria afastado e atuaria em outras investigações que não o Relatório Figueiredo e que a questão indígena seria estudada com mais enfase somente em 2014. A partir daí tivemos pouquíssimos contatos com a comissionada, apesar do intenso trabalho em desenvolvimento, tanto na pesquisa colaborativa sobre indígenas e outros temas, como também realizando oficinas na CNV e para grupos de estudo a ela ligados.
Em fevereiro fui contatado por uma documentarista, cujo documentário trata do Relatório Figueiredo, relatando seu estranhamento com a forma como foi atendida pelo assessor Inimá Simões ao tratar do tema, obtendo dele informações que desqualificavam o trabalho realizado pelo procurador. Foi isso a gota d´água, que nos move a tornar pública esta situação que põe em risco as investigações de graves violações de direitos humanos praticadas contra os indígenas em andamento na CNV e tão importantes para o quadro crítico que temos hoje de violência e desespeito aos seus direitos constitucionais.
CE: Na sua opinião, o fato de ter sido encomendado por um general não interfere na lisura do relatório Figueiredo?
O Relatório Figueiredo não foi encomendado por um general e sim pelo Ministro de Estado à época. Foi resultado de uma CPI que teve início em 1963 no Congresso, portanto antes do golpe militar, e já aí Itamar Simões foi citado. No governo Dutra a questão da corrupção no Estado brasileiro foi foco de atuação do governo militar, junto com a caça aos opositores e comunistas. O ex-governador Lupion do Paraná, por exemplo, foi cassado por corrupção. O general Albuquerque Lima, expoente da linha dura, definido como nacionalista, ao receber o Relatório Final da CPI de 1963, encaminhado pela Casa Civil pedindo providências, institui a Comissão de Investigação, que é tocada por procurador da república e equipe. O diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, citado por Maria Rita na entrevista, diferente das argumentações de Inimá Simões, ao abordar estas questões, sem fazer ilações, se referia ao indigenista Francisco Meirelles e jamais estendeu suas dúvidas a todos os citados no relatório. Pode haver abusos e perseguições? Pelo que temos estudado se houve é pontual, sendo algo a ser apurado com o devido cuidado apontado por Maria Rita, mas jamais isso é motivo para colocar de lado as apurações sobre os nomes listados no Relatório Parcial 1 ou ainda servir para a desqualificação deste importante documento.
A motivação do Albuquerque Lima era a corrupção, como Jader precisou correr os estados e aldeias a partir do incêndio criminoso, outros crimes passaram a fazer parte da investigação, o roubo das terras indígenas e as violências contra a pessoa do índio são os mais significativos legados que Jader deixou registrados em sua investigação, como documento oficial do Estado brasileiro.
Com a publicação dos trabalhos desta comissão, Jader de Figueiredo Correia passa a sofrer ameaças de morte, é afastado de Brasília para seu estado e acaba tendo uma morte em acidente nunca investigada, morreu no mesmo ano de JK. Albuquerque Lima perdeu espaço no governo militar, sendo logo em seguida à divulgação e sua repercussão na imprensa nacional e estrangeira, substituído na condução do Ministério do Interior. Não só desaparece a documentação por 45 anos, como cessam todos seus desdobramentos, tendo o governo Médici iniciado uma operação abafa, que é um capítulo dos estudos que estamos realizando. É trabalho da CNV apurar estes fatos e não deixá-los de lado por falta de tempo. Aqui já se abre a discussão da necessidade de continuidade da CNV com trabalhos temáticos a partir de 2015, numa comissão especial para apurar as violações contra os povos indígenas no Brasil.
CE: Por que não se fala sobre as agressões a indígenas tanto quanto agressões aos demais atingidos?
MZ: O tema das violações aos direitos dos indígenas no Brasil é um tabu. A porção não-índia da sociedade brasileira não só não reconhece os seus direitos, como continua cotidianamente a violá-los. Segredos como os contidos no Relatório Figueiredo são guardados a sete chaves nos arquivos do Estado brasileiro, pois trazem à luz situações de inúmeras violências como as vividas pelos povos do Mato Grosso do Sul e da Bahia, conforme denunciado pelo procurador Jader. Hoje estes povos continuam invisíveis, sendo negados seus direitos pelo Executivo, Legislativo e o Judiciário. O estudo já concluído pela Funai, por exemplo, conclui que as terras dos Pataxó foram roubadas pela eliminação física dos índios ali residentes nos anos 60, o que configura crime de genocídio, mas há 2 anos aguarda-se a assinatura do ministro José Eduardo Cardoso. Este, em vez de reparar o mal feito no passado recente, tenta resolver o problema do conflito que se desdobra pela retomada de suas terras no sul da Bahia com o uso de forças de segurança do estado. Em nossa sociedade não falamos destas violências para não repará-las.
CE: Havia indígenas que se voltaram contra seu próprio povo e ajudaram o regime? Por que fizeram isso?
MZ: Uma das questões mais controversas a serem estudadas pela CNV é da Guarda Rural Indígena, denunciada pela jornalista Laura Capriglione em matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo em 11/11/2012, a partir de vídeo que nos foi entregue por servidores do Museu do Índio. Durante três meses, entre final de 1969 e início de 1970, 90 indígenas de várias etnias foram levados ao mesmo batalhão da Polícia Militar de Belo Horizonte, onde Dan Mitrione esteve no Brasil, e a eles foi ensinada a tortura, entre outras coisas. De quem é a responsabilidade de suas ações? Dos índios que foram fardados passando a agir como polícia ou de seus comandantes? Pouco tempo depois foi extinta a guarda e a cadeia do Krenak (que substituiu a cadeia clandestina de São Paulo) e estes índios-polícias não mais tiveram a mesma relação saudável em comunidade e com seus parentes. Devem eles ser punidos ou reparados por tamanha violência com suas pessoas e culturas?
CE: Qual era o papel dos latifundiários nos ataques aos indígenas?
MZ: A relação entre autoridades do Estado brasileiro, funcionários do SPI e latifundiários de terras indígenas possui vários exemplos na apuração realizada por Jader de Figueiredo. Já na CPI de 1963, ficou provada a relação do senador Filinto Muller, torturador da ditadura Vargas, com as ações de esbulho de terras dos índios Kadiuéus no Mato Grosso do Sul. O relatório apresenta inúmeros casos desta relação, derrubando o argumento de que casos em que pistoleiros pagos por latifundiários não deveriam ser objeto de apuração da CNV. Diferentemente do problema da expulsão de camponeses de suas terras, cuja relação muitas vezes não se faz clara, a questão indígena é e sempre foi de inteira responsabilidade do Estado brasileiro.
CE: Aqueles que patrocinaram ou ajudaram na violência contra os indígenas deveriam pagar uma compensação financeira ou perderem o que tiver sido fruto dessa violência?
MZ: A reparação aos povos indígenas brasileiros, diferente da realizada pela Comissão de Anistia, é de natureza coletiva e está centrada na restituição de seus territórios, em sua recomposição enquanto ecossistema e no desenvolvimento de mecanismos de não-repetição educacionais e de segurança pública para que não aconteçam mais invasões em suas terras demarcadas.
CE: Os ataques sofridos naquela época sobrevivem nos relatos dos indígenas até hoje?
MZ: Recentemente estive como observador de direitos humanos em Dourados (MS), onde ocorreu a primeira audiência da CNV com os índios Guarani e Kaiowá. Foram apresentados cinco relatos sobre as violências vividas por essa população. Seria importante que a CNV os publicasse na íntegra em seu site, infelizmente na página destinada aos depoimentos prestados em audiências, Dourados sequer foi registrada, tampouco os relatórios entregues sobre os Waimiri-Atroari, Xavante, Guarani do norte do Paraná e o que produzimos.
CE: O que exatamente era feito com eles? Há indígenas com sequelas visíveis até hoje?
MZ: No Relatório Figueiredo são descritas torturas usadas no tempo da escravidão, sendo realizadas contra os índios no sul do País ainda na década de 60, tais como o tronco que mutilava as pernas, espancamentos com chicotes, prisão em cubículos fétidos e minúsculos, além de uma ferramenta que içava o corpo da pessoa pelos polegares. Deveriam ser apuradas pela CNV, porém a comissão não possui estrutura voltada a desenvolver tais trabalhos de apuração na questão indígena e há relatos muito cruéis a serem apurados.
CE: O que foi feito em favor desses agredidos antes do relatório e da comissão da verdade?
MZ: Nada.
CE: Daqui em diante, o que acha que vai acontecer, já que o tema vai ganhar visibilidade?
MZ: Não acredito que o tema vai ganhar visibilidade, pelo contrário. Temos no Brasil centenas e centenas de povos indígenas atingidos pela violência do Estado e seu modelo de desenvolvimento, tanto no período da CNV quanto depois dele. O que teremos é o relato do que se conseguir fazer, o que aponta que a reparação aos povos indígenas brasileiros, longe de ser somente um problema de conveniência ou falta de vontade política, desvela uma crise ética na relação de nossa sociedade, os poderes constituídos e estes brasileiros.
Excelente e oportuna entrevista. Questão de Justiça e de altíssima importância para plena realização do propalado Estado Democrático de Direito no Brasil!
Cadê a Verdade Comissão!