Infância banida

Foto: Arquivo do SNI
Foto: Arquivo do SNI

Arquivo fotográfico do Serviço Nacional de Informações, órgão de segurança da ditadura, mostra como regime qualificou de “subversivos” e mandou para fora do país crianças de menos de dez anos

Por Plínio Fraga, em Nos porões da ditadura, uma flor

O carro de som estacionado à porta de um dos prédios públicos no Setor de Indústrias Gráficas, em Brasília, tocava uma canção brega de Lindomar Castilho. Em agosto passado, os servidores públicos federais estavam no terceiro mês de greve e, como forma de persuadir os companheiros a engrossar o movimento, executavam diariamente a mesma música de Lindomar, com o refrão “Você é doida demais”, em volume alto, muito alto, torturante.

Tortura foi o que trouxe movimento nos últimos meses à quase sempre pacata sede do Arquivo Nacional. Fotos e documentos tornados públicos em razão da nova Lei de Acesso à Informação, em vigor desde julho, foram colocados à disposição do público. São mais de 15 mil imagens e milhares de relatórios produzidos pelos órgãos dos serviços nacionais de espionagem tirados dos porões e agora expostos à luz.

Estão liberados para consulta imagens de “subversivos fichados”, pastas com o trabalho de campo de espiões, relatos de rotinas de suspeitos de envolvimento em atividades contra os militares no poder. Há fotos constrangedoras, como a de presos, acusados de subversão e de ligação com a luta armada, obrigados a posar nus ou apenas de roupas íntimas. Existem imagens de operações de espionagem de atos de panfletagem de artistas em favor da Lei da Anistia ou em defesa da reforma agrária, comandados por d. Hélder Câmara.

Há ainda fotos de corpo inteiro do jornalista Vladimir Herzog de 25 de outubro de 1975, o dia de sua morte. Nessas imagens, vê-se uma mancha escura em seu pescoço, um indício a mais a comprovar que os militares forjaram a versão do suicídio em cela. Existem ainda fotogramas até então não conhecidos do líder revolucionário Carlos Lamarca, momentos depois de ter sido morto por tropas da repressão. Essas fotos foram publicadas na imprensa recentemente.

O lote de imagens e documentos do Arquivo Nacional ainda revela faces inéditas da história nacional. Uma delas mostra como crianças foram tratadas de subversivas e terroristas pelos órgãos de segurança, mantidas afastadas dos pais e ameaçadas de doação. Há relatos de filhos que se lembram de ter visto os pais serem torturados. Na Argentina, filhos de militantes de esquerda foram doados para as famílias de seus algozes e só recentemente o país descobriu, em choque, essa troca cruel feita pela ditadura. No Brasil, o regime usou outra estratégia. Baniu o comunismo infantil.

Ernesto Carlos tinha dois anos em 15 de junho de 1970. Zuleide, quatro; Luiz Carlos, seis; e Samuel, nove. São irmãos de criação e parecem crianças comuns às vésperas de uma viagem em fotos dispersas no Arquivo Nacional. Mas não estão confortáveis diante do operador da câmera. As imagens que protagonizam vão acompanhar mais tarde o trabalho de um agente de polícia, que escreverá após o nome de cada um deles numa ficha: “subversivo”.

O presidente Emílio Médici e o ministro Alfredo Buzaid haviam assinado o decreto nº 66.716 com o “banimento” do Brasil de 40 militantes políticos acusados de terrorismo. Eram apenas crianças, e aparecem como apêndice no decreto. Mas se tornaram cidadãos sem pátria até a lei da Anistia, em 1979. Cresceram em Cuba e só retornaram ao país 15 anos mais tarde para recomeçar a vida. Uma vida com trauma e sotaque.

Eles se lembram pouco das fotos que registram seus últimos momentos no Brasil. Foram feitas por policiais ou militares da aeronáutica, ou por ambos em momentos simultâneos ou diferentes. Muito provavelmente foram fotografados primeiro numa delegacia, na base aérea em São Paulo, e depois ao chegarem ao Rio, para onde foram levados de helicóptero, horas antes do embarque num avião fretado da Varig rumo à Argélia, que na época vivia sob um regime dito socialista. Depois de dois meses lá, seguiram para Havana, paraíso da esquerda revolucionária nos anos 1970 e endereço residencial das crianças pelos 15 anos seguintes.

“Nem sei quem me deu aquela boneca que está nas minhas mãos. Era uma maneira de distrair a gente, mas aquelas lembranças estão bloqueadas”, disse Zuleide Aparecida do Nascimento, 47 anos, secretária que hoje mora em São Paulo. A boneca era inseparável. Zuleide aparece agarrada a ela em duas fotos dos arquivos de segurança da ditadura, trajando roupas diferentes. “Mais que a lembrança, ficou o trauma”, afirmou Ernesto Carlos Dias do Nascimento, 44 anos, num momento de pausa da campanha na qual está engajado, de um candidato petista a vereador em Guarulhos. “Não posso ver farda, não posso ver polícia nem reunião de muita gente.” Numa das fotos, Ernesto, o irmão caçula, é instado a olhar para a câmera por Luiz Carlos, como se atendesse a um chamado do fotógrafo. “Deve ter sido isso, mas eu não me lembro.”

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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