Os fantasmas do colonialismo regressam

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António Pinto Ribeiro* – BUALA

Assistimos a uma curiosa evolução dos vários regimes políticos dos Estados africanos. Países como Eritreia, o Tchad, a Guiné Equatorial mantêm regimes autocráticos. A África do Sul mostra-se incapaz de encontrar soluções para a diminuição da igualdade. Sucedem-se guerras civis na Somália. Em mais de três dezenas de países africanos foram adoptadas leis homofóbicas e quatro desses países punem a homossexualidade com pena morte. E, mais recentemente, todos os países da CPLP, o que inclui tanto os ex-colonizados como o ex-colonizador, já declararam aceitar como novo membro um dos estados mais tenebrosos de África: a Guiné-Equatorial cujo presidente é o ditador Obiang. 

De tudo isto fica a sensação de uma grande decepção pós-colonial. Como se entre o período da colonização – ou seja, entre o século XV e o século XX – e o período que se lhe seguiu (que numa classificação rudimentar da História se chama Pós-colonial), houvesse um corte radical e se apresentasse uma espécie de um grande final à maneira de Hollywood com os ex-colonizados mártires a vencer e os maus, os colonizadores, a serem expulsos daquelas terras depois de anos de ocupação indevida mas em que o colonialismo ficou recalcado e agora ressurge com novas formas e outros protagonistas, grande parte deles, africanos. O que os primeiros sonhadores de um pós-colonialismo como Aimè Césaire, Frantz Fanon ou Amílcar Cabral queriam, a criação de um homem novo a partir do que se tinha tornado a figura do negro, afinal não se tornou realidade nem nas primeiras independências, nem em todo o continente africano. Porventura porque o homem novo não é senão uma miríade messiânica e o que pode e também já acontece são sociedades renovadas que desconstroem o seu passado colonial.

É um facto que se deu a ocupação de todo um continente – para só falarmos em África – por um conjunto de nações europeias que formaram Impérios. Estes, exploraram os recursos naturais das terras de vários povos, ocuparam os seus espaços, violentaram-lhes os horizontes e, pior, criaram uma mercadoria a que chamaram: o negro. E esta mercadoria, o negro, foi traficada durante centenas de anos sem que os arautos mais puros do Iluminismo europeu se tivessem insurgido contra isso. Entre esses promotores da modernidade europeia estão escritores como Diderot ou Voltaire, dramaturgos como Molière ou Voltaire, libretistas como Lorenzo Da Ponte, pintores como Velazquez, David, Manet, Ingres, filósofos como Kant ou Hegel; ilustres fundadores da modernidade europeia que aceitaram ir no embalo com que o capitalismo nascente introduzira, nas transacções comerciais, o negro. A justiça manda que se ressalve o Padre António Vieira a denunciar a escravidão transatlântica.

É certamente para todos nós inconcebível que homens e mulheres pudessem ser propriedade privada de outros seres humanos até há pouco mais de 150 anos. Por isso é difícil o exercício de racionalidade quando assistimos a filmes como Django Libertado de Tarantino e “Doze anos escravo” de Steve McQueen. Porque se tem dificuldade em ultrapassar o lado ficcional e ver ali a expressão documental dessa desumanidade.

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O problema da incompletude da Modernidade europeia tem como núcleo principal – ainda hoje – o grande trauma do colonialismo. Este ficou por resolver e a sombra dessa barbárie é o fardo escuríssimo que a Europa e os colonos europeus herdaram. Recordemos que a escravatura atlântica atingiu vários continentes e em todos eles as pessoas de origem africana foram transformadas em mercadoria. Um sistema muito complexo, envolvendo vários poderosos – os Estados, os príncipes, os negociantes, a Igreja Católica – criou “o Negro como uma espécie de homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem-plástico” (Achille Mbembe, Critique de la raison nègre (2013)).

Há que olhar o pós-colonialismo para lá do que é a banalização da rede complexa de teorias que os media tanto anunciaram como moda como depois esqueceram, num processo de produção de amnésia colectiva. E há que entendê-lo nas suas múltiplas formas e etapas de desenvolvimento, sublinhando que ele não é assunto exclusivo das ex-colónias, é um problema do antigo Império europeu, para usarmos a designação dos pensadores Toni Negri e Michael Ardt (Empire, 2000).

Entre o que foi promovido e reclamado pelos primeiros lutadores pela causa da libertação das colónias europeias e a actualidade, entre os anos 30 do século passado e a publicação muito recente da obra já incontornável de Achille Mbembe acima mencionada (Critique de la raison nègre, 2013), muita coisa aconteceu. Esse processo vai da assunção virulenta e necessária de uma ideologia que rompesse com a opressão colonial (uma vez que esta apenas metamorfoseava o esclavagismo na exploração da força de trabalho a baixíssimo custo, mantendo o negro despojado de ‘cultura’ porque continuava a ser apenas um indígena) até à desconstrução radical do negro, da sua invenção e da invenção da raça.

A obra de Achille Mbembe revela que os saberes e as tecnologias do capital e, mais ainda, do neo-liberalismo que se impuseram como políticas dos Estados conservam, por nostalgia e por interesses de negócios, a figura do negro desta forma: Negro é todo o africano que é pobre.

Sabemos que os processos de libertação e as independências africanas levaram a que, na relação dos Estados ex-colonizadores com os novos países africanos, se gerassem formas mais ou menos continuadas de relações de interesses. Assim, houve uma descolonização política das ex-colónias mas está por fazer a descolonização dos espíritos dos governantes dos dois lados destas parcerias. E isso é evidente na ausência de uma viragem descolonizadora no modo de fazer política.

Repare-se como são poucas as novas formas de fazer política conservando a democracia e enfrentando a globalização. E a ausência dessa necessária viragem descolonizadora, essa preservação de Estados espiritualmente colonizados, revela-se também na ausência nestes estados neo-colonizados das expressões artísticas e das regulamentações de justiça social.

Depois do período de nojo que a Europa viveu (em vários calendários) e que todo o mundo viveu com a declaração das independências pelos estados africanos, veio um tempo em que os independentistas tiveram de se confrontar rapidamente com o nado-morto que era a tal emergência do Homem Novo Africano. Seguiram-se períodos de redefinição, convulsões e alguns apaziguamentos temporários. A expressão maior disto é o período da governação arco-íris na África do Sul durante a presidência de Mandela.

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Na tese do já referido livro Crítica da Razão Negra há aspectos permanecem como chagas e a todos dizem respeito.

O primeiro é que o negro permanece enquanto fantasmagoria, não já com a frieza do homem-metal ou com a espectacularidade da bailarina Josephine Baker, mas como o africano sem papéis que quer chegar a Lampedusa e é identificado como fazendo parte de uma raça: a de todos os negros que querem chegar a Lampedusa. Um segundo é a irrupção populista tanto em países europeus como africanos do tema da raça e da sua associação ao nacionalismo.

Achille Mbembe apresenta uma revisão radical dos textos pós-coloniais clássicos e refuta as teorias pós-coloniais quando hoje persistem em impor-se como ideologia. Afirma que, apesar de o tentar, a Europa já não constitui o centro de gravidade do mundo porque outros saberes tecnológicos e outras formas mais velozes de circulação de capital, oriundas de outras regiões, a ultrapassaram. Mas nem por isso o momento é menos perigoso. Na actualidade, a situação de subalternidade para onde o capitalismo empurrou todos os subalternos, ou seja, quase toda a humanidade, faz com que pensemos que talvez se esteja a caminhar em direcção a um “devir-negro” à escala global que já não identifica somente todas as pessoas de origem africana mas toda a humanidade que estiver na situação de subalternidade: sem papéis, sem trabalho, manipulado nos imensos bancos de dados dos computadores, tanto imigrantes africanos como europeus ambos “homens-descartáveis” no nomadismo forçado vendendo a sua criatividade e a sua força de trabalho, e aos quais são indiferentes os poderosos com toda a sua indiferença e toda a sua ignorância.

*António Pinto Ribeiro nasceu em Lisboa. Formação em Filosofia, Ciências da Comunicação e Estudos Culturais. É professor-conferencista de várias universidades internacionais. Foi director artístico da Culturgest desde a sua criação, em 1992, até Abril de 2004. Foi programador geral do fórum cultural O Estado do Mundo (2006/2007) na Fundação Calouste Gulbenkian, coordenador do Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística (2004-2008) e programador geral do Programa Gulbenkian Distância e Proximidade (2008). Actualmente coordena o Programa Gulbenkian Próximo Futuro.

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