Iuri Müller – Sul21
No final de novembro de 2013, Antonio Losada abriu o portão da casa simples no bairro Nonoai, Zona Sul de Porto Alegre, com dificuldades para caminhar. Havia quebrado há poucos dias um dos dedos do pé – culpa de um sonho ruim que fez com acertasse a parede do próprio quarto durante a noite. Há cenas que frequentemente voltam ao pensamento dos que sofreram com a repressão da ditadura militar no Brasil, como é o caso de Losada.
Nascido em Bagé, viajou ainda criança para Porto Alegre com parte da família. Foi operário em distintas fábricas e não demorou a se engajar no movimento sindical, num primeiro momento junto ao Partido Comunista. Pela juventude de Losada, passaram greves, conflitos nas fábricas, tentativas de golpe e a queda de João Goulart. Ao longo de décadas de engajamento político, também viveu de perto a resistência ao regime e a luta armada. Encontrado pelos militares em 1973, permaneceu por seis anos na prisão. Losada foi libertado apenas em 1979 e foi tido como o último preso político do Rio Grande do Sul a deixar os presídios.
Em liberdade, envolveu-se na fundação do Partido dos Trabalhadores e nos anos 1990 foi eleito vereador em Porto Alegre. Agora, diz não ter mais ligação efetiva com partido algum, ainda que continue filiado ao PT – recentemente, foi homenageado com o título de cidadão de honra da cidade em que escolheu viver. Confira, abaixo, a entrevista concedida ao Sul21.
Sul21- Losada, eu queria começar a conversa sobre o início da tua vida em Porto Alegre, o começo do trabalho político nas fábricas.
Antonio Losada – Bem, eu sou de uma família extremamente pobre. Meu pai era espanhol, e desertou do exército na guerra de 1898 entre Espanha e Cuba. Aí veio para a América, com muita dificuldade, Chile, Argentina, Uruguai e Brasil. Aqui casou com a minha mãe, uma índia de Palmeira das Missões e tiveram oito filhos. Todos trabalhadores, nenhum com curso superior. Mas todos eles pessoas vinculadas com atividades sociais, construção civil, metalurgia, vestuário.
Meu pai morou em várias cidades do interior, e viemos para Porto Alegre no fim da Segunda Guerra Mundial, por volta de 1944. Em Porto Alegre, cidade grande, tivemos muita dificuldade no problema da habitação. Dois dos meus irmãos ficaram no interior, em Bagé. E nós outros viemos tentar emprego aqui. Logo nos relacionamos com algumas amizades do Partido Comunista na época, aliás, meus irmãos, eu ainda não. Tendo essa dificuldade para sobreviver, morar, procurar trabalho, com dez anos comecei a trabalhar em cerâmica, em fábrica de tela, em supermercado. Depois, ingressei nas fábricas. Mas, nesse período já estava morando em um bairro muito pobre, o Areal da Baronesa, que hoje chamam de Cidade Baixa.
Ali era o berço do carnaval. Desenvolvi esses contatos, comecei a trabalhar em fábrica e tive contato com a imprensa do Partido Comunista, procurei ingressar na Juventude Comunista. Depois, na fábrica, o próprio pessoal da Juventude me procurava, comecei a ter uma atividade sindical também. A atividade sindical se prolongou muito, mas sempre como ativista. Eu tinha uma vida comum, de trabalhador, só com essa visão diferenciada do pessoal do bairro, da vila que eu morava. Tinha uns corredores de casas que chamam de avenida, eram uns becos com muitas casas e muitas famílias. Ali era onde morava o grosso da pobreza.
Sul21 – Então é possível dizer que tu tiveste os primeiros contatos com a Juventude Comunista a partir do meio em que vivias.
Antonio Losada – Sem dúvida, exatamente o meio que fez que eu tivesse este contato. Mas evidente que eu tinha uma sensibilidade, não sei de onde é que vem isso. Meu pai era um homem posicionado, prova disso é que tomou essa atitude de desertar do exército espanhol e vir para a América. Desenvolveu-se esse meu trabalho em fábrica. Trabalhei em várias. Todas as fábricas que eu trabalhei eu desenvolvia greve. Em todas eu articulava greve, sem ser aquela coisa frente, mas de articulação com a base.
Sul21 – Tu estavas falando sobre o trabalho junto aos sindicatos. Antes de 1964, antes do golpe, o Brasil passou por várias ameaças, como em 1961. Como tu percebias este cenário político desde dentro da fábrica?
Antonio Losada – Logo após a redemocratização, o exército brasileiro retornou de um combate ao fascismo na Europa, aí vir pra cá para acobertar uma ditadura ficava sem graça, né. Então eles promoveram essa abertura de 1946, com Constituinte, etc. Mas, logo adiante, os parlamentares que simbolizavam este bom nível de democracia, foram cassados. Começou um princípio de clandestinidade, de resistência.
Teve (a revolta de) Jacareacanga, teve a morte do Getúlio, o Partido Comunista também em 1952 lançou um manifesto muito forte sugerindo a resistência armada. Isso nas vésperas da morte do Getúlio, um momento de muita confusão no Brasil. Confusão, disputa, pressão do imperialismo, o Getúlio também sofria pressão da massa pela grande mídia que não queria decretar o salário mínimo de 100%. E, por outro lado, as denúncias de corrupção, o mar de lama, como eles chamavam na época. Então, isso levou o Getúlio à morte.
Eu trabalhava em uma fábrica, era uma fábrica grande. Na época tinha seus duzentos empregados, depois cresceu, ficou com uns dois, três mil, antes de falir, assim como tantas outras. Grandes fábricas da época começaram a falir, e aí vimos o problema da economia, o problema da internacionalização da economia. Bem, então eu trabalhava numa fábrica e às nove horas essa fábrica fechou, a confusão era muito grande, nós saímos direto para quebrar e incendiar tudo o que tivesse simbologia norte-americana. Foi na madrugada em que o Getúlio se matou. Quando saímos das fábricas, já tinha grandes multidões na rua. Não houve enfrentamentos no centro, pelo menos. Mas ali perto do Hospital de Pronto Socorro, o exército interveio, parece até que matou alguém. Foi uma rebeldia muito grande.
Toda essa rebeldia era uma coisa espontânea. Essa revolta, essa manifestação forte, era espontânea. Mas direcionada para quem fazia oposição ao Getúlio na época. O Partido Comunista também fazia certa oposição ao Getulio, e também sofreu alguns arranhões num jornal diário que se chamava Tribuna Gaúcha, ali na Rua Voluntários da Pátria, onde eu tirava os cursos de marxismo e leninismo. E o sindicato que eu atuava não foi atingido, por ser sindicato. Essa explosão foi muito grande. Depois em 1958/59 teve Jacareacanga, a ascensão do Juscelino. Em 1961, fomos vitoriosos, graças ao Brizola, o que não foi simples, foram manifestações muito grandes. A luta pela Legalidade eu ajudei muito. Nós tínhamos um prédio que tinha formato de mata-borrão ali no centro, onde era a sede da resistência. Então, para se ter ideia, num período de dois dias, nós listamos mais de duzentas mil pessoas que espontaneamente se ofereciam para se alistar na resistência, na forma de participar, juntamente com a Brigada Militar, e com aqueles outros setores organizados das forças armadas que resistiam.
Naquela época, o sindicato estratégico era o da Carris urbana, onde se colaborava muito com as greves, os ferroviários, portuários, metalúrgicos, os caras das grandes fábricas. Só que, estes sindicatos, com o golpe, posteriormente foram sindicatos que não sofreram grandes intervenções. Eu não fui cassado em 1964, meus irmãos foram. E continuei, assim como os sindicatos continuaram.
Sul21 – Em 1964, naquele mês de março, o que se notava dentro do teu trabalho? Havia indícios claros de que haveria um golpe em pouco tempo, em poucas semanas?
Antonio Losada – Tenho que registrar uma coisa. Essa época foi um período de grande ascensão do movimento operário, já sinalizado também através das ligas camponesas. Não existia ainda a possibilidade de integração, mas o que existia mesmo era uma luta do êxodo rural muito forte. Eu ajudei em muitas encruzilhadas, levando rancho, roupas, junto com o movimento universitário. Depois veio o movimento sindical.
Mas essa ascensão muito grande assustava o capital internacional, que queria investir no Brasil. O Brasil sempre foi a menina dos olhos para o capital internacional, o imperialismo. E nós não acreditávamos que o golpe fosse se concretizar naquele momento. Porque tínhamos também uma perspectiva do Partido Comunista muito atrelada com o governo. As grandes lideranças do movimento sindical, que representavam também o Partido Comunista, formavam palanque junto com Jango, junto com Brizola. E isso passava uma ideia da impossibilidade de se concretizar o golpe.
Agora, por outro lado, não avançavam as tais de reformas que nós tanto reclamávamos. As reformas estavam congeladas. Eu participei do comício do dia 13 de março, o Comício da Central, no Rio de Janeiro. Foi um comício extraordinário. Eu fui às seis horas, de avião, e voltei de madrugada. Foi uma manifestação estrondosa, mas eu estranhei algumas coisas, inclusive o exército iluminando o comício. O Partido Comunista tinha canal com o Jango, mas parece que as pautas eram outras. Isso era muito duro pra gente. Eu já tinha rompido com o Partido Comunista, assim como quase toda a juventude, por causa do projeto do partido de desenvolvimento da sociedade brasileira, do desenvolvimento das forças produtivas, perspectiva que ainda hoje pondera, tem-se uma visão desenvolvimentista, mas não tem uma distribuição de renda, não tem aprofundamento da democracia. Esse desenvolvimento econômico, por si, ele não faz avançar. E as reformas de base não avançavam. Mas esse comício foi uma grande manifestação de massa, com aproximadamente 200 mil pessoas, ou mais.
Sul21 – E aquele foi um discurso inflamado do Jango.
Antonio Losada – Foi. E o Jango tomou algumas medidas ali, como a implantação das refinarias, declarar de utilidade pública as margens das ferrovias e rodovias, avançou alguma coisa no comício. E o Brizola solicitou uma Constituinte. O Brizola também estava sem rumo, porque não havia uma identificação muito boa com o Jango, era uma coisa complicada. Mas a gente retornou, e em seguida começou a manifestação, vinte dias depois mais ou menos, começou a manifestação em Minas Gerais, do Exército. E cresceram as manifestações da ‘Família com Deus pela Liberdade’, isso no Rio de Janeiro, São Paulo, em Minas. Eu fui a Minas. Nunca fui um quadro de expressão, de grande liderança, sempre fui um quadro de base. Já estávamos em processo de fundação da União Operária.
Em Minas nós não conseguimos nem impedir manifestações. Fomos meio corridos de lá. E essas manifestações no Rio e em São Paulo foram massivas, com apoio da grande imprensa. Então a massa, a sociedade civil, ela pedia intervenções. E essas manifestações deram uma cobertura muito grande para essa revolta das Forças Armadas. E logo depois disso começaram as primeiras prisões, inclusive em Porto Alegre.
Sul21 – Em que momento a repressão passou a atuar de uma maneira generalizada, a ponto de dificultar o trabalho dos sindicatos com os operários?
Antonio Losada – Eles não tinham máquina ou capacidade para atingir tudo. E se atingissem tudo, poderia não dar certo, porque o Castelo Branco não refletia isso. A violência do golpe não era para impedir a “República Sindicalista” que eles levantavam e acabar com a corrupção. Era mais além. Algumas medidas que eles tomaram foram o atendimento ao capital internacional, a segurança dos investimentos internos, além de acabarem com a estabilidade dos trabalhos, de aplicar o fim das indenizações. A estabilidade é uma questão pela qual lutávamos muito. Esse foi o primeiro corte. Significava que todas as nossas grandes lideranças dentro das fábricas já poderiam ser retiradas dali. O próprio Exército tinha aquilo que eles chamavam de lista negra. E cada vez que iam contratar empregados em grandes empresas o Exército informava uma lista de nomes que não podia passar para o quadro da empresa. Isso dificultava muito mais a nossa vida.
E nós constatamos essas medidas. Eu, por exemplo, participei ainda na ditadura de alguns congressos sindicais em Brasília. E o pessoal já perguntava muito, a polícia, “de onde tu és, de onde tu vieste”? Estranhavam eu estar lá naquele meio. Nesses encontros eu presenciava, eu era muito panfletado pela Política Operária (Polop), que posteriormente se transformou na VAR-Palmares, parte na VPR, parte no MR8, que foi um dos embriões do começo da luta armada no Brasil. A Polop tinha uns programas muito bons, tinha uma comunicação muito boa, uma proposta sindical… Então eu era muito panfletado por eles nesses encontros.
Sul21 – Vocês acompanharam de perto esta discussão sobre a luta armada como possibilidade de resistência, então.
Antonio Losada – Foi quando nós começamos a pensar num instrumento. Os sindicatos amarelaram, todos. Através das intervenções, cassações, só no meu sindicato foram dezesseis cassados. Fui eleito presidente, mas acabei cassado. E assim também nos outros, foi feito uma limpeza. Essa limpeza continuou já com o perfil policialesco. Então nós começamos a criar um instrumento paralelo à estrutura sindical. Fizemos algumas greves, nos reuníamos nas pensões da periferia, porque não podia utilizar a sede do sindicato. O sindicato passou a ser um centro de informação da repressão. Também nos encontrávamos nos campos baldios, nas igrejas perto das fábricas. E pensamos num instrumento que unificasse. Teve um episódio em que alcançamos um nível tão bom de organização dentro das fabricas com estes instrumentos, que não interessava mais para nós fazer greve que respondesse aos interesses econômicos locais da própria fábrica, nós queríamos atingir as demais fábricas e o movimento operário como um todo. Queríamos crescer para deflagrar já um projeto maior.
Só que nós tínhamos uma perspectiva de luta armada, não era possível derrotar a burguesia por meios pacíficos. Era uma questão de princípios. Aí nós chegamos num ponto de organização que não tinha mais saída. Ocorreu uma greve que não foi por nossa vontade, panfletaram de fora pra dentro desta fábrica, com panfletos bem escritos e estourou a greve. E qual foi o resultado dessa greve? Tivemos de transferir do Rio Grande do Sul cinquenta e seis operários. Para Rio, São Paulo e Minas. E daí o que esses caras vão fazer lá? Qual é a base social deles nessas cidades? Como é que ficam as famílias aqui? Isso deu um trabalho muito grande para nós. Com essa dificuldade toda, sentimos que faltava uma alternativa nacional. Aqui, com esta enorme fronteira, havia a utilidade para o contato, para passar gente do exterior.
A gente trocava ideias com gente da Bolívia, do Peru, eles traziam informes. Demos os primeiros passos para a luta armada. Daí, posteriormente, veio a Dilma (Rousseff) para cá nos ajudar, vieram outros, o Breno (Carlos Alberto Freitas) também, que é um desaparecido até hoje. Nos deram alguns cursos de guerrilha aqui, no Rio Grande do Sul mesmo. Em 1970 estavam fazendo treinamento militar ainda, mas era loucura.
Sul21 – Onde vocês faziam?
Antonio Losada – Ah, era no interior. Tinha muita dificuldade. Em 1972, eu estava no Araguaia, mas aí já é mais adiante. Nós tínhamos uma visão da luta combinada, mas essa luta no campo era uma luta que não era de enfrentamento. Era uma luta de implantação social, reconhecimento, acumulação armada, domínio da zona estratégica com a qual nós optamos e estávamos investindo socialmente, que era aquela zona do norte de Goiás. Por isso que eu estava no Araguaia em 1972. Na época em que estavam acontecendo as prisões foi uma loucura me levar pra lá. Eu sofri dez batidas da polícia naqueles ônibus cheios de panfletos, de armas.
Sul21 – E na luta armada tu ingressaste diretamente na VAR-Palmares?
Antonio Losada – Sou fundador da VAR-Palmares, mas nunca integrei a direção. Em certo momento já não tínhamos mais capacidade de fazer ação, a não ser em conjunto. Não tínhamos mais capacidade de fazer grandes ações. Nós não tínhamos uma infraestrutura boa. Porque esta questão da luta combinada campo-cidade, tu desenvolves a luta na cidade, mas é difícil sobreviver numa cidade. O numero de informantes, de delações, é muito grande. A sociedade é conservadora, os caras eram contratados por cem pilas e denunciavam mesmo.
Eu fui clandestino por quatro anos, usava o nome Joaquim. Era preciso ter um pique muito grande. Trabalhei no Rio, em São Paulo, porque quando não dava mais aqui eu caía fora. Mas é muito difícil tu cair fora para quem tem uma base social grande aqui. E por aquelas formas tradicionais de organização, ficam aqueles vícios. Te chamar pelo nome, saber onde tu moras, quais são os teus hábitos, o dos teus familiares. Quando tu vais preso, isso é uma maravilha para a repressão. Porque a repressão quer destruir, impor medo, utilizar a violência. E ela às vezes te tortura não só para arrancar confissões, mas para te destruir, destruir com a tua dignidade, quebrar o teu brio todo, e te levar à morte por vezes. Esse é o grande objetivo, fazer uma limpeza. Só que o mundo, a própria sociedade, não permite isso. Concorda, informa, te delata às vezes, mas não concorda que façam isso contigo. Curioso, né.
Sul21 – Que força a organização teve no Rio Grande do Sul?
Antonio Losada – A prioridade de fazer este enfrentamento mais forte era lá, em Goiás. Como é que o Vietnã sobreviveu? Nós tínhamos tudo isso na cabeça. Como sobreviveu com um monstro americano largando bomba, na selva? Tática e estratégica. E havia a dificuldade de ter tantas visões diferenciadas, como a visão inssurrecional. Vais fazer a revolução através das greves, a partir das explosões nas cidades? Não se consegue ir longe assim numa cidade. Os trotskistas de certa forma tinham esta visão. Além daquela visão de que essas explosões tinham que ser simultâneas e em vários países.
Sul21 – E como aconteceu a tua prisão, em 1973? A linha da repressão já era evidentemente dura, muita gente estava caindo.
Antonio Losada – Ficou difícil de sobreviver. Porque a repressão apanhou muito de nós no primeiro momento. E logo vieram os instrutores internacionais, americanos, disseram que o negócio era tortura. ‘não tem nada de perder tempo com esses caras’. Baixar o pau por dois motivos: arrancar informação e destruir. Quando não tem mais informação, segue, toca o barco. Radicalizou a coisa. O Geisel começou a brigar dentro do Exército com outros generais. A opinião internacional já estava muito forte. A Igreja começava a mudar de lado também, o Frei Betto apanhou muito. E isso fez com que na minha organização o pessoal viesse para cá e eu desse a infraestrutura para que viajassem para a Argentina, para o Uruguai. E tinha um pessoal com um pensamento militarista, que eu acho horrível. É a arma pela arma, o tiro pelo tiro.
Eu fui delatado em São Paulo foi por um cara que eu escondia, que militava comigo desde o sindicato, e que era de confiança. Mas depois que apanha, não é fácil. Apanhou muito, mostrou as costas muito machucadas. E o cara passa a colaborar, isso é o duro. Mas era uma loucura. No Rio, andei em carro roubado, cheio de armas. Participei de um congresso no foco do Araguaia, de encontros perigosos em Recife. Havia uma disputa muito grande, interna, de tendências que só queriam fazer ação, ação. Quando roubamos o cofre do Adhemar de Barros, era para parar um pouco com as ações. Tinha dinheiro, dava para parar. Mas o dinheiro às vezes, ao invés de ajudar, estraga. Que nem quando o Lamarca fugiu com as armas do quartel, no interior de São Paulo. E não tínhamos onde pôr as armas! Tivemos que deixar com o Marighella, que não tinha nada a ver com a ação ou com o nosso grupo.
Só que a visão militarista deforma muito, nega a capacidade de construção, e faz folclore com episódios de heroísmo. Isso não constrói a revolução, eu era contra a militarização. Ficamos com sete no Brasil, sem contato com vários lugares. Na minha prisão, fui condenado pela Lei de Segurança Nacional pelo artigo 27, de crime de sangue, ainda que não fosse verdade. Quando fui preso, os policiais fizeram uma festa. Foram quatro anos me procurando. Fui preso no início de outubro de 1973, e fiquei até 31 de dezembro daquele ano apanhando no DOPS. A própria Lei de Segurança não permitia que alguém ficasse tanto tempo numa delegacia sendo interrogado, mas eles alteraram as datas no processo. Minha documentação no sindicato foi destruída, com apoio da diretoria da época. Depois passei para o presídio.
Sul21 – E então ficaste preso ao longo de três governos militares?
Antonio Losada – Fui preso no governo Médici, fiquei todo o tempo do Geisel e parte do governo de Figueiredo. Sem auxílio reclusão, que qualquer preso que trabalhou ganha, porque tinham destruído meus documentos e a minha relação com o trabalho. E isso é para a família, não para quem está preso. Quando fui preso, tinha uma companheira comigo, que passou muito tempo presa e também apanhou muito. Durante esse tempo, não tem solidariedade. O pessoal fica com muito medo de ti, da tua família. Só de longe te veem como um herói.
Sempre trabalhei no presídio, ajudei a fundar a biblioteca e a escola da prisão. Estudei lá dentro e passei no vestibular para Direito, organizei tudo, minha família se esforçou com os papeis e, mesmo com duas custódias em sala de aula, não me deixaram cursar. Isso em 1978, mais ou menos, quando a ditadura estava fazendo loucuras, matando todo mundo para justificar a repressão.
Sul21 – Como é ver a ditadura de dentro da prisão, como chegavam as notícias da resistência, de como estavam os companheiros?
Antonio Losada – Tinha dois jornalistas de certa repercussão que me deram uma mão. Pegavam cartas minhas, que foram enviadas para a imprensa, até para fora do Brasil. A Anistia Internacional chegou a me visitar, teve quem me ajudou, mas isso não abreviou a minha saída. Dez anos era a pena mínima dentro do artigo 27, e a máxima, a morte. Em 1978, veio a medida que, neste enquadramento, baixava para dois anos o meu caso. O meu advogado chegou a dizer: “acho que agora vai dar”. Mas simplesmente não cumpriram com a lei, me soltaram só em junho de 1979. Isso arrebenta a vida. Quando saí, os carcereiros falaram: “Losada, não olha para trás”.
No auditório da Susepe, foi um carnaval, toda a imprensa estava lá. O fato de eu ser o último preso político motivou a criação da primeira comissão de Direitos Humanos e Cidadania do Brasil, na Assembleia Legislativa. Eles logo trabalhariam muito no caso dos uruguaios (Lilian e Universindo, sequestrados em Porto Alegre). No dia da minha saída, aproveite a oportunidade para denunciar a tortura que eu tinha passado. Falei nome por nome os torturadores que eu tinha identificado, Pedro Seelig, delegado Cunha, delegado Pires, Nilo Hervelha. E aí estourou na imprensa estes nomes. Os torturadores responderam, me processaram. Fui absolvido só seis meses depois, enfrentando a polícia na imprensa.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.