O assalto vai acontecer daqui a pouco, alguns parágrafos abaixo. Ele é tão inevitável como a chegada do dia e da noite. E vai acontecer, com certeza, porque a onda de assaltos já faz parte da rotina do ônibus da Linha 388 Carioca-Santa Cruz, da Viação Algarve, que atravessa diariamente, em frequentes viagens, a Zona Oeste do Rio, num trajeto de mais de 40 kms. Os assaltos, absolutamente previsíveis, acontecem um dia sim e outro também. O inusitado, porém, é que, desta vez, um aluno vai assaltar sua professora. Aproveito o Dia do Professor para contar tudo.
Por enquanto, acompanhemos Alice, 55 anos, até o terminal. São três da tarde, ela embarca no ônibus, como faz habitualmente e, naquela hora, consegue assento num banco de trás. O busão percorre ruas do centro, sacolejando, cata um passageiro aqui, outro ali e, quase lotado, entra na Avenida Brasil. Na Zona Portuária, no ponto do Cemitério do Caju, sobem dois jovens menores de idade, um com corte moicano no cabelo, o outro, sem os dentes superiores, com a “comissão de frente” avariada.
Na parada seguinte, em Manguinhos, entram mais pessoas, entre elas um rapaz com tênis, bermuda cáqui, camisa xadrez e boné azul cuja aba dobrada para baixo meio-que esconde seu rosto. Na altura do Hospital de Bonsucesso, ele assume o comando da operação, aponta a arma para o motorista – uma pistola calibre 40 – e anuncia o assalto com o ônibus em movimento, enquanto lá atrás o Moicano ameaça o cobrador com outra arma. Está tudo ensaiado, sincronizado.
Momentos de pânico. Uma gordinha sentada na janela começa a gritar, acordando seu vizinho que cochilava. O assaltante De Boné, lá na frente, sem tirar o olho do motorista, ordena que o Desdentado, no meio do ônibus, dê uma porrada na gordinha, que leva um tabefe e engole o choro. Ele avisa que se reagirem joga gasolina no ônibus, toca fogo e mata todo mundo.
– “Essa voz eu conheço” – pensa Alice, aterrorizada, diminuindo de tamanho como se tivesse caído na toca do coelho. Os assaltantes estão nervosos, um deles com a arma engatilhada, faz pressão, ameaça, barbariza. Enquanto a gordinha disfarça o soluço contido, o Desdentado desliza pelo corredor do ônibus com uma sacola, prospecta bolsas e mochilas dos passageiros recolhendo pertences: dinheiro, celulares, smart phone, relógios, aliança, cordão, todo tipo de joia e até um notebook.
– Atira naquele que esconder alguma coisa – ordena o De Boné e, uma vez mais, Alice desconfia que aquela voz lhe era familiar.
O ônibus segue acelerado, sem parar. Deixa para trás Penha, Irajá, Parada de Lucas e Vigário Geral, ultrapassa o Trevo das Margaridas, Coelho Neto, Guadalupe e Ricardo de Albuquerque. A viagem dura uma eternidade. Quando avalia que não há nada mais a roubar, De Boné levanta a aba e dá ordem pro motorista parar próximo ao Morro do Mata Quatro. É aí que Alice, vendo a cara do assaltante, dá um grito lancinante, que ecoa dentro do ônibus e se propaga pela Avenida Brasil, do Caju até Itaguaí:
– Wanderniiiiiiilson!
O Ivo, enfim, viu a uva! A professora, agora aposentada, reconhece seu ex-aluno do turno da noite, que havia aprendido a ler com ela numa classe de alfabetização da Escola Municipal Nova Holanda, no Complexo da Maré, o maior agrupamento de favelas do Rio, localizado na Zona Norte. Seu grito é lido pelo ex-aluno como uma censura, como se ela dissesse: – Não, não pode ser! Você não, Wanderniiiilson! Qualquer outro, mas você não! Não diga que meu trabalho foi inútil, Wanderniiiiilson!
Na troca de olhares, Wandernilson reconhece a mestra, provavelmente a única pessoa, além da mãe, que o chamava pelo nome de batismo e que lhe havia dado, com as letras, alguma migalha de atenção e de afeto. Ela conservava a moral e a autoridade de mãe, que uma boa professora sempre tem, capaz de derrotar as armas. ‘Pereba’, assim ele era conhecido, envergonhado, ordenou aos seus parceiros:
Escola do Amanhã
O ônibus prossegue sua viagem, passando por Deodoro e Magalhães Bastos, enquanto os assaltantes vão devolvendo os pertences subtraídos, numa operação demorada que exige a identificação de cada passageiro:
Concluída a restituição, Wandernilson, o Pereba, bastante constrangido, pede desculpas à sua mestra e – alô, alô, professora, aquele abraço! – desce na altura de Realengo, provavelmente para atacar outro ônibus. Os passageiros, alguns dos quais já haviam sido assaltados várias vezes, aplaudem a mestra.
Alice, mesmo aposentada, atuou no projeto Escola do Amanhã, cujo objetivo é reduzir a evasão das escolas da rede municipal localizadas em áreas de extrema violência. Acompanhou ainda o funcionamento da biblioteca popular Lima Barreto, em Nova Holanda, na Maré, que abriu um espaço dedicado às crianças, como se estivesse no País das Maravilhas. Por isso, decidiu cursar Biblioteconomia na UNIRIO, onde foi minha aluna de Comunicação, quando narrou em sala de aula esse fato.
As manifestações de professores, as condicões de trabalho e os salários aviltantes da categoria me fazem pensar que todo prefeito é Wandernilson. É e não é. É porque ao longo do mandato, prefeitos e governadores assaltam seus ex-mestres. Mas não é, porque quando em suas assembleias os professores gritam: – Wandernilson! – o poder público raramente volta atrás, não manifesta o mesmo respeito que o assaltante demonstrou à sua professora. Neste caso, o assalto continua, porque falta aos poderosos a grandeza de um Wandernilson. São mesquinhos.
Lembrei-me da Alice – embora agorinha não tenho mais a certeza de que se chamava Alice – quando vi a foto da professora de matemática Virginia Azambuja que protestava contra o prefeito do Rio Eduardo Paes nesta quinta-feira, ao lado de milhares de colegas. Na barreira policial, ela encontrou seu ex-aluno, o PM Ronny Pessanha. Os dois se abraçaram. Que esse abraço se traduza em mais diálogo.
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P.S.1 Wandernilson é com W e não com V – me advertiu Alice, quando relatei aqui o fato pela primeira vez, sem tantos detalhes. (Odeio a escola).Fica aqui a correção.