Nota dos Servidores do INCRA
A Confederação Nacional das Associações dos Servidores do INCRA – CNASI, manifesta preocupação em relação à falta de celeridade e a descontinuidade dessa política de garantia de direitos constitucionais das comunidades de quilombos, por parte do Estado Brasileiro. Estamos diante de uma conjuntura em que esse direito constitucional encontra-se ameaçado, na medida em que diversos setores do agronegócio, somados a uma política governamental desenvolvimentista sem limites, combatem sua implementação.
Fruto da mobilização dos movimentos negros e da necessária reparação pelo Estado Brasileiro a uma trajetória histórica escravocrata, a atual Constituição Federal definiu, pela primeira vez na história, que o Estado titulasse os territórios das comunidades quilombolas, conforme seu Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e os Artigos 215 e 216. Após 15 anos de muita indefinição normativa e processual, tal incumbência foi atribuída ao INCRA, por meio do Decreto 4887/2003.
A partir daí temos observado nos últimos anos alguns importantes avanços nas ações do INCRA no que se refere aos procedimentos de regularização fundiária de comunidades quilombolas. Dentre esses avanços encontram-se: a elaboração das normatizações internas de rotinas administrativas de etapas do processo de titulação, como por exemplo, a definição da desapropriação por interesse social com respectivas ações desapropriatórias; a contratação de peças técnicas que compõem os estudos de identificação e delimitação territorial; a nomeação de novos servidores para o quadro de pessoal da política de regularização de quilombos. Estes avanços são resultantes da atuação do movimento quilombola que, desde seu surgimento, tem dialogado e pressionado os governos.
Todavia, frente à grande demanda por regularização fundiária e às situações de conflitos nas comunidades quilombolas no país, tais avanços tiveram uma capacidade limitada no pleno cumprimento da política. Principalmente porque ocorreram retrocessos administrativos e legais que agravam ainda mais a morosidade de tais procedimentos de regularização dos territórios quilombolas por parte do INCRA.
Do ponto de vista externo, a política tem sofrido diversos ataques. No âmbito do poder Legislativo temos a proposição de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239, contra o decreto 4887, pelo PFL, atual DEM; Proposta de Emenda Constitucional – PEC 215/2000, que transfere para o Congresso Nacional a competência de demarcação das terras indígenas e dos territórios quilombolas e proposta de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI para investigar a atuação da FUNAI e do INCRA nestas políticas.
Da mesma forma, o poder Judiciário, frequentemente, tem atuado na contramão dos interesses destes grupos. Igualmente, no Executivo existe forte oposição à política por parte das Forças Armadas, que violam os direitos de comunidades quilombolas cujos territórios se sobrepõem a áreas ou interesses militares e ainda atuam no sentido de impedir o andamento de processos no INCRA.
Percebemos que o Governo tem sucumbido a esta ofensiva dos setores governamentais e da sociedade que controlam a malha fundiária no Brasil contra os direitos de populações tradicionais de diversas maneiras. No INCRA foram instituídas rotinas administrativas excessivas cujo objetivo é a intencional protelação dos processos. Em 2008, o INCRA publica a Instrução Normativa nº 49, elaborada pela Advocacia Geral da União – AGU, que levou ao alongamento do tempo de tramitação dos processos em razão de sua excessiva burocratização. Esta IN cria etapas desnecessárias e repetitivas, aumentando o já longo tempo de tramitação das peças técnicas do processo administrativo. A acentuada queda no cumprimento das metas pelo órgão, após a aprovação da IN, demonstra esta realidade, conforme gráfico abaixo.
Outra ação administrativa interna é a alteração nos fluxos dos processos que tramitam na sede do INCRA. Percebe-se que desde 2012 os processos tramitam com um prazo bem mais dilatado se comparado aos anos anteriores, ou mesmo têm sido paralisados em algum setor, por um tempo jamais observado. Isso demonstra que a pressão política dos setores contrários aos direitos das comunidades quilombolas tem sido efetiva, paralisando a ação da direção do INCRA.
As ações que contribuem para tal morosidade foram adotadas pela Direção do INCRA, afrontando as próprias normativas internas que regulamentam as etapas da política de titulação dos territórios quilombolas. Entre elas podemos citar a exigência de autorização da direção do INCRA para publicação do RTID. Na atual norma esta autorização deve ser dada pelo Comitê de Decisão Regional das Superintendências Regionais do INCRA-CDR.
Da mesma forma, o tempo de análise pelas áreas técnica e jurídica e de espera pelo julgamento de recurso no Conselho Diretor-CD (INCRA Sede) está cada vez mais longo. Exemplificando este atual estado, citamos como exemplos: São Domingos-ES está na Sede desde 12/04/2011 e pronto para julgamento desde 23/01/2012, sem qualquer providência desde então e Amaros-MG está na Sede desde 25/04/2011 e pronto para julgamento desde 23/12/2011, sem qualquer providência desde então. Na medida em que tal tipo de demora na tramitação e julgamento dos processos nunca ocorreu em períodos anteriores, fica claro o sucateamento da estrutura e sua subordinação a interesses políticos maiores.
Já as Portarias de Reconhecimento, injustificadamente, têm igualmente levado mais tempo para serem assinadas e publicadas pela Presidência do INCRA. Exemplificando este atual estado, citamos como exemplos: Grotão-TO está na Sede desde 01/11/2012 e pronto para publicação desde 26/05/2013 e Tomaz Cardoso-GO está na Sede desde 01/11/12 e pronto para publicação desde 21/05/2013, ambos sem qualquer providência desde então.
Essas ações são responsáveis pelo seguinte quadro: 36 processos (22% dos 164 processos que tramitam na Autarquia em alguma fase) encontram-se no INCRA Sede paralisados ou com tramitação atrasada. Isto significa que mais de um quinto da produção da Autarquia – que já é extremamente baixa devido ao sucateamento do serviço público e, em especial, no INCRA, do setor quilombola – está injustificadamente paralisada por decisão ou omissão política do governo.
Ocorre que em resposta às manifestações de setores contrários ao direito territorial das comunidades quilombolas, o INCRA deveria promover ações de qualificação e fortalecimento da sua estrutura e não ser silente frente às exigências de caráter protelatório da Casa Civil. A condução dos processos de regularização de territórios quilombolas é uma atribuição do INCRA, que deve seguir um procedimento administrativo legal, claro e cuidadoso, conforme previsto na Constituição, na Convenção 169 da OIT e no Decreto 4887/2003. Ademais, como toda ação do Estado, merece atenção, estruturação e aperfeiçoamento. Contudo, as exigências da atual presidência do órgão não parecem visar tais objetivos.
Consideramos que os problemas fundiários do país não são decorrentes da demarcação de terras indígenas e quilombolas, mas da estrutura agrária brasileira desigual com concentração de latifúndios e reforma agrária ineficiente. E é em defesa do mercado de terras que os latifundiários atuam, quando se colocam contrários à demarcação de terras indígenas e quilombolas. São esses atores políticos que visam desqualificar instituições públicas como INCRA e FUNAI, cuja atribuição primordial é trabalhar pelas minorias étnicas e em defesa dos direitos humanos destes grupos.
Assim, também nos solidarizamos com os profissionais da FUNAI que têm enfrentado o desrespeito às suas atribuições legais para a promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas e, sobretudo, no tocante aos processos de demarcação de Terras Indígenas. Concordamos que é “descabida a manipulação dos fatos que leva setores reacionários da sociedade e influentes no Governo Federal a deslocar o problema fundiário no Brasil para a questão da demarcação de Terras Indígenas”.
Não podemos alimentar preconceitos enraizados no Estado com práticas arbitrárias contra grupos vulneráveis e órgãos que atuam na garantia dos territórios tradicionais, o que só agrava os conflitos e causa retrocessos em direitos adquiridos com anos de lutas pelos movimentos sociais. Neste sentido, repudiamos o estabelecimento por parte da Direção do INCRA de novas rotinas administrativas, excepcionais, extra norma e que acabam por protelar a efetivação da política pública e da concretização do direito desses grupos a seu território. Além disso, alertamos que esta iniciativa só vem a intensificar os conflitos fundiários e a violência no campo.
Reivindicamos, portanto, um INCRA estruturado e fortalecido com capacidade de atuar com efetividade na defesa dos direitos constitucionais dos quilombolas e na sua missão institucional de titular seus territórios. Reivindicamos reestruturação da carreira e salários compatíveis com a complexidade do trabalho realizado pelos servidores do INCRA, de modo a não continuarmos perdendo colegas capacitados para outros órgãos da administração. Reivindicamos também condições dignas de trabalho aos seus servidores para que o órgão possa de fato, cumprir com as suas atribuições. Reivindicamos um órgão que, de fato, atue como executor de uma política de Estado, a qual deve atender aos anseios das comunidades remanescentes de quilombos; e não que aja em função de interesses políticos e privados de grupos e setores hegemônicos da sociedade brasileira.
Destacamos ainda que as metas institucionais assumidas pelo governo neste exercício estão prejudicadas por esses processos de excessiva burocratização, acima descritos. Neste contexto nós, servidores, não poderemos ser responsabilizados pelo descumprimento destas metas.
Por fim, afirmamos que cabe à direção do INCRA e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) posicionar-se, nitidamente, sobre quais são os seus compromissos com a efetiva continuidade da política de regularização fundiária dos territórios quilombolas.
Brasília – DF 14 de agosto de 2013.