Após seis meses internado em hospital de Manaus, morre bebê indígena envolvido em polêmica

Família do bebê indígena, na Casai de Atalaia do Norte. Foto: Elaíze Farias
Família do bebê indígena, na Casai de Atalaia do Norte. Foto: Elaíze Farias

Por Elaíze Farias

O bebê indígena Benin Ralikan Matis morreu em abril passado, após passar toda sua curtíssima vida internado no Instituto da Criança do Amazonas (Icam) para o tratamento de uma doença que começou como uma gripe, avançou para uma pneumonia e depois para um quadro de insuficiência respiratória.

Procurada nesta segunda-feira (27) a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde (Susam) disse que o bebê morreu no dia 14 de abril. A causa da morte foi septicemia (infecção generalizada na corrente sanguínea), com choque séptico. A providência da remoção do corpo foi tomada pela Casa de Saúde Indígena (Casai) de Manaus.

O corpo da criança, transportado pelo rio em embarcação conhecida localmente como “expresso”, foi enterrado no cemitério do município de Atalaia do Norte (a 1.1398 quilômetros de Manaus), onde fica a Terra Indígena Vale do Javari. É nesta TI que se localiza a aldeia Paraíso, onde vive a família de Benin, do povo matis.

“Enterramos em um domingo, dia 21 de abril, aqui mesmo em Atalaia. O corpo chegou cinco dias depois da morte dele. Os pais já tinham voltado para a aldeia deles, mas alguns parentes matis compareceram no enterro”, disse André Mayoruna, funcionário da Casai de Atalaia do Norte. Entrei em contato com o André após ser informada casualmente da morte da criança na última sexta-feira (24) por outro indígena do Vale do Javari, César Mayoruna.

Benin tinha seis meses. Ele nasceu durante viagem de seus pais, numa embarcação conhecida como canoão. Por que Benin nasceu numa embarcação e não na aldeia Paraíso? Porque seus jovens pais Tumi Machopa, 25, e Tekpam Kana, 22, precisaram levar seu filho mais velho, de cinco anos, para tomar vacina no município de Atalaia do Norte. Ou seja, a atenção à saúde indígena no Vale do Javari não havia oferecida a possibilidade de Tumi e Tekpam optarem por um atendimento tão básico, que é uma vacina, em sua própria aldeia.

Com a súbita doença do recém-nascido Benin durante o período em que Tumi e Tekpam estavam alojados na Casai, seus pais tiveram que alterar completamente o roteiro de suas vidas. Foram transferidos para Manaus, pois somente na capital amazonense há unidades de saúde para tratamento de média e alta complexidade.

Tratamento em Manaus

Esta jornada começou em outubro de 2012. Quatro meses depois a criança piorou. Equipes de saúde do Icam passaram a desconfiar da mãe. Um relatório apontaria que  Tekpam estava tentando provocar deliberadamente a morte do bebê, retirando da garganta do filho o tubo que auxiliava na injeção de medicamentos no organismo.

Também foi encontrado um êmbolo de seringa na garganta do bebê durante um procedimento de traqueolaringoscopia e identificou-se que os olhos da criança teriam sido perfurados.

O agravamento da doença levou a equipe de profissionais de saúde do Icam a suspeitar que a mãe estaria tentando praticar “infanticídio” (esse foi o termo citado em um relatório posterior) contra o filho.

A mãe foi afastada da criança e um relatório, com base apenas no (pouco) conhecimento que os profissionais (médicos, enfermeiros e psicólogos) do Icam tinham a respeito da realidade dos povos indígenas – soube depois que o titular da Susam, Wilson Alecrim, temeroso com a repercussão, deu uma “aula” sobre aspectos culturais indígenas aos profissionais do Icam.

Eu não tive acesso ao relatório, mas indígenas de Atalaia do Norte que receberam o documento leram alguns trechos para mim. Pedi uma cópia da Susam, sem sucesso.

Outra expressão que me chamou atenção neste relatório foi o termo “dissimulada” atribuído à mãe de Benin. Tekpam nunca conseguiu se comunicar com os médicos e enfermeiros porque não sabe falar português. Tampouco havia alguém, além de Tekpam e seu marido, que sabiam falar matis.

Município de Atalaia do Norte, no sudoeste do Amazonas. Foto: Elaíze Farias
Município de Atalaia do Norte, no sudoeste do Amazonas. Foto: Elaíze Farias

Pais negaram

Com a ajuda de um tradutor do povo matis que sabe falar português, tive oportunidade de conversar com os pais de Benin em março passado, quando estive em Atalaia do Norte, para uma matéria no Vale do Javari.

Tumi e Tekpam negaram que tenham tentado cometer infanticídio. Para mim, quando questionei a respeito dessa suspeita dos médicos, eles demonstraram surpresa e até um pouco de confusão em suas expressões.

Me disseram que o que mais queriam era ver Benin curado, pois já tinham tido duas experiências ruins com a morte de outros dois filhos (uma menina, que sofreu um acidente ao cair da rede, e um menino, que morreu de pneumonia).

O agente indígena de saúde Tepi Matis, que trabalha na Casai de Atalaia do Norte e que traduziu a conversa que tive com Tumi e Tekpam, me falou que a noção de “infanticídio” do “homem branco” é totalmente equivocada. Muitos pensam até que sua prática ocorre durante um “ritual”, outro olhar estigmatizado a respeito dos povos indígenas.

“Muito antigamente, isso ocorria, mas era quando a criança nascia de ‘mau jeito´. Era logo que ela nascia, recém-nascida ainda. A mãe deixava com a parteira, que ficava vigiando. Hoje em dia, se uma criança nasce desse jeito, a mãe ‘passa para outra pessoa’. Algumas enfermeiras daqui da Casai já ficaram com crianças assim. Mas hoje em dia isso (de deixar a criança morrer) não acontece mais. Os pais querem a criança viva”, me disse Tepi.

Apesar da morte de Benin, apurações para explicar a história ainda sem respostas precisas vão prosseguir. O caso é alvo de um inquérito civil público no Ministério Público Federal no Amazonas.

O objetivo do inquérito é apurar as condições de atendimento prestado aos povos indígenas em Manaus por parte do Sistema Único de Saúde (SUS), em respeito aos seus costumes e tradições, segue em tramitação, ainda sem conclusão.

A assessoria disse que os órgãos de saúde municipais e estaduais foram oficiados a prestar informações sobre o assunto e as informações levantadas estão sob a análise do procurador da República que atua no caso.

Bastidores da apuração

Na época da primeira apuração de uma matéria que fizemos (eu e a colega Síntia Maciel) sobre este assunto, tentamos várias vezes obter informações para descobrir as circunstâncias de toda essa história misteriosa – que chegou até o jornal A Crítica, onde eu trabalhava na época, por uma ligação anônima. Não vou relatar os detalhes, pois são longos.

Digo apenas que não foi uma apuração fácil. Tivemos cuidado para que este tema do “infanticídio” não fosse abordado com o objetivo de criminalizar e estigmatizar ainda mais os povos indígenas.

Um dos aspectos que me chamou atenção foi ao fato do Ministério Público Federal no Amazonas, com sede em Manaus, não ter sido informado. Será que a Susam e o Icam e a própria Casai de Manaus não sabiam que o MPF possui um Ofício que responde pelos povos indígenas e atua em situações complexas como esta?

O máximo que se chegou para tentar “investigar” o caso foi o registro de um boletim de ocorrência na Polícia Civil, como se este fosse apenas “mais um caso de polícia”.

A assessoria de imprensa da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), por mim procurada, me enviou uma curta resposta (informando basicamente o que já havíamos conseguido com o titular da Susam, Wilson Alecrim que, aliás, foi muito acessível, diferente dos funcionários da Casai de Manaus), dizendo que o caso estava sendo investigado pela Polícia Federal.

Um delegado da PF me falou que isto não procedia. A Polícia Federal nunca havia sido procurada pela Sesai, pela Susam ou por outro órgão.

São várias as conclusões que podemos tirar deste caso: desconhecimento sobre os povos indígenas e sua realidade, despreparo dos profissionais de saúde para oferecer um tratamento realmente diferenciado aos povos indígenas, humildade para saber ouvir e, claro e cautela com o uso de termos que criminalizam antecipadamente  cidadãos (no caso os indígenas).

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