Em tempo de reformas urbanas no Rio, Dona Zuleika, de 87 anos, decidiu registrar em livro suas memórias afetivas do bairro do subúrbio que escolheu para morar há mais de seis décadas
Postado por Leonardo Cazes em Prosa
Honório Gurgel, como tantos outros bairros do subúrbio carioca, nasceu junto com a sua estação de trem, em 1905. A linha já passava por ali desde 1892 e a parada foi inaugurada em 1895 como Muguengue, nome de um dos vários rios que corta a região. Vizinho de Rocha Miranda, Guadalupe e Barros Filho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, esse pedaço de terra que já abrigou engenhos de cana-de-açúcar costuma ser associado a casos de violência ou ao baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No entanto, para uma senhora de 87 anos, o bairro é o palco de uma vida: festas de aniversário comemoradas nas calçadas, mutirões de limpeza, procissões e batizados.
Se um dia alguém esquecer que Honório Gurgel também é parte da Cidade Maravilhosa, a dona de casa Zuleika Sant’Anna de Souza estará lá para lembrá-lo. Lá se vão 64 anos desde que ela se mudou para a casa onde mora, na Rua Serinhaém, junto ao ramal ferroviário. Na época, o bairro ainda era predominantemente rural, com seus bucólicos rios, morros e chácaras. As lembranças acumuladas em mais de seis décadas deram origem ao livro “A vida e o sonho — Memórias afetivas sobre o bairro Honório Gurgel”, uma declaração de amor e, ao mesmo tempo, uma humilde, mas importante contribuição para história da cidade.
— Nunca tinha pensado em fazer um livro, mas sempre gostei de escrever. Gostava de contar histórias para as crianças. A foto de capa do livro fui eu que tirei, em 1950, um ano depois de mudar para cá — lembra ela, que editou o livro de forma independente e o vende em sua própria casa. — Para escrever me apoiei nas minhas próprias memórias, em fotografias e em depoimentos de antigos moradores.
Dona Zuleika, como é mais conhecida, nunca foi acomodada. “Carioca da gema nascida no Méier e criada em Madureira”, diz ela com orgulho, aos 15 anos fugiu de um internato, em Jacarepaguá, com duas amigas. Estava cansada dos maus tratos das freiras. Foi à pé até em casa. As colegas voltaram. Ela não. Aprendeu a cerzir e foi trabalhar na fábrica de tecidos Bom Pastor, na Tijuca. Pegava o trem até São Cristóvão e depois seguia de bonde até a confecção. Em uma dessas viagens, conheceu Waldomiro de Souza, ou Miro, com quem se casaria cinco anos depois.
Miro era funcionário público e foi ele o responsável por conseguirem comprar a casa no conjunto residencial do IAPI, originalmente Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, mas que a partir de 1945 começou a financiar projetos de habitação. Apesar do marido preferir vê-la em casa, tomando conta dos nove filhos, Dona Zuleika nunca abdicou de sua liderança natural. Foi assim, por exemplo, que encabeçou os mutirões de limpeza das ruas e da passarela que passa por cima da linha do trem.
— Meu marido não gostava muito que eu fizesse essas coisas fora de casa. Eu gostava, mas fazia mais ou menos escondida. Na época, eram mais os homens que se reuniam para fazer as coisas.
Suas ações em prol da comunidade foram catalisadas pela formação de associações. Primeiro, na Igreja, por meio do Apostolado da Oração e do Clube de Mães. Depois, com a percepção de que poderia estar excluindo quem não professava a fé católica, fundou a Associação de Donas de Casa de Honório Gurgel, em 1983. Os encontros das mulheres passou a acontecer na sua própria casa, onde continuam até hoje. Na casa de Dona Zuleika, a porta está sempre aberta para quem precisa. Hoje, é no terraço que uma de suas filhas comanda classes de alfabetização para jovens e adultos do bairro.
Ela mesma mantém a sua caligrafia sempre caprichada. Antes de publicar o livro, já contava e escrevia suas histórias. A própria obra começou a nascer há mais de 20 anos. Uma noite, lembra ela, uma voz lhe disse, enquanto dormia, que deveria fazer a festa pelos 80 anos de Honório Gurgel. Com o recado martelando na cabeça, a devota de Santa Luzia e São José procurou uma explicação divina e foi conversar com o monsenhor Emerson, da Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, em Irajá, paróquia que frequentava na época. Ao narrar o ocorrido, o monsenhor respondeu: “Você pode fazer e você vai fazer. Eu tenho um colega, ex-padre, que é da família de Honório Gurgel. Ele se chama Francisco das Chagas Neves Gurgel, professor e capitão de fragata da Marinha”.
O depoimento do trineto do ex-prefeito do Rio (governou a cidade entre maio de 1899 e fevereiro de 1900) que dá nome ao bairro foi o pontapé inicial para a pesquisa sobre as origens da região. Até então, ela admite, nunca tivera curiosidade sobre o assunto. O professor revelou que a família chegara ao Brasil logo depois do Descobrimento e se instalara inicialmente no Rio Grande do Norte, migrando para o sul ao longo dos séculos. Depois, vieram outros testemunhos, como o de Dona Maria Moraes, de uma das primeiras famílias a se instalar em Honório Gurgel, em 1923, após os terrenos serem vendidos pela Companhia Boa Esperança.
O Rio, hoje, é recortado pela abertura de novas avenidas, viadutos e corredores de ônibus que provocam desapropriações e mudam a geografia afetiva de bairros inteiros. Num canto que, quase sempre, só não é invisível para os seus moradores, “A vida e o sonho”, de Dona Zuleika, ajuda a manter vivo o passado que se esconde nas memórias dos mais velhos.
–
Enviada por Vanessa Rodrigues para Combate Racismo Ambiental.