Relatório da década de 1960 sobre barbáries em tribos brasileiras mostra que terras e riquezas de aldeias foram saqueadas por agentes do governo que deviam protegê-las
Felipe Canêdo – EM
Passados 50 anos de uma batalha sangrenta entre fazendeiros locais e índios cadiuéus do Sul do Mato Grosso, uma pergunta inquietante ressuscita com o recém-redescoberto Relatório Figueiredo, que apurou em 1968 chacinas de tribos e torturas em índios de todo o país: o que aconteceu naquele conflito? Documento produzido pela Associação de Criadores do Sul do Mato Grosso, em 5 de janeiro de 1963, e anexado à extensa investigação feita pelo procurador Jader de Figueiredo para o Ministério do Interior relata pedido do mais famoso líder da repressão da ditadura de Getúlio Vargas, o então senador Filinto Müller, que rogava para que o general comandante da 9ª Região Militar fosse informado do conflito armado. Müller afirmou que trataria pessoalmente da situação com a direção do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), reportadamente suspeito, segundo Figueiredo em seu relatório, revelado pelo Estado de Minas.
As terras dos cadiuéus, 374 mil hectares em um local chamado Nabileque, foram usurpadas, assim como ocorreu com diversas outras tribos. Segundo aponta o inquérito de 7 mil páginas, que era tido como destruído em um incêndio no Ministério da Agricultura, os terrenos foram dados a eles por dom Pedro II, pela participação decisiva que tiveram na Guerra do Paraguai. No entanto, ele diz em outro trecho do texto que elas “foram invadidas por poderosos fazendeiros e é muito difícil retirá-los um dia”.
Matérias publicadas sexta-feira e ontem no Estado de Minas revelaram a surpreendente história do documento que estava em caixas do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, desde 2008, e passou mais de 40 anos com o paradeiro desconhecido. Somente no fim do ano passado um pesquisador paulista se deu conta de que as mais de 7 mil páginas guardadas entre um grande volume de papelada eram, na verdade, o inquérito e o relatório de 62 páginas produzidos a pedido do ministro do Interior, Albuquerque Lima. O único registro que se tinha desse material, que denuncia caçadas humanas de indígenas feitas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, trabalho escravo de índios, torturas, prostituição e incontáveis crueldades contra tribos brasileiras, eram matérias publicadas em março de 1968, quando o ministro concedeu entrevista que teve repercussão internacional.
Nas páginas amareladas pelo tempo, além das barbaridades recorrentes que indicam que o índio não era tratado como ser humano, uma preocupação constante do advogado que liderou as investigações é a usurpação indiscriminada de terras e riquezas indígenas, feita, inclusive, pelo próprio SPI. “Abatem-se florestas, vendem-se gados, arrendam-se terras, exploram-se minérios. Tudo é feito em verdadeira orgia predatória porfiando cada um em estabelecer novos recordes de rendas hauridas à custa da destruição das reservas do índio”, escreveu Figueiredo perplexo. “Basta citar a atitude do diretor major-aviador Luis Vinhas Neves”, ele prossegue, se referindo ao coordenador do SPI, que teria autorizado todas as inspetorias a vender madeira e gado, e a arrendar terras. “Aliás, esse militar pode ser apontado como padrão de péssimo administrador, difícil de ser imitado, mesmo pelos seus piores auxiliares e protegidos”, acrescenta o procurador.
Nova peça do quebra-cabeça
Telegrama anexado ao inquérito e assinado pelo então secretário do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, José Maria da Gama Malcher, endereçado ao deputado Valério Caldas Magalhães, que presidia uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre abusos contra indígenas, datado de 14 de maio de 1963, pode ser mais uma peça-chave no quebra-cabeça que busca desvendar as crueldades cometidas na história recente do país contra tribos brasileiras. José Maria pede ao deputado que solicite à Presidência da República o Processo 22.755/61, que estava arquivado desde outubro de 1961 e que seria de interesse dos índios. “É curioso que o segundo volume do relatório, onde essa documentação poderia estar anexada, sumiu”, afirma o vice-presidente do Tortura Nunca Mais de São Paulo, Marcelo Zelic, que foi quem descobriu o paradeiro do Relatório Figueiredo. Dos 30 tomos originais que compunham o documento, 29 foram encontrados quase intactos.
A coordenadora do núcleo da Comissão Nacional da Verdade responsável pela investigação de violações de direitos relacionados à luta pela terra, Maria Rita Kehl, sustenta que há tempo hábil para examinar todas as denúncias contidas no inquérito e que o papel da comissão é procurar casos exemplares. Ela comemorou a recuperação do relatório e o considerou um divisor de águas nas políticas indigenistas do país, pois pouco depois o antigo SPI foi extinto e foi criada a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Maria Rita informou que a comissão ainda aguarda a conclusão do trabalho de digitalização da papelada para então começar a estudá-la. “Não posso falar sobre o relatório porque ainda não o conheço, mas é um documento oficial importante. Posso adiantar que é impossível pesquisar todas as acusações contidas nele.” Já Marcelo Zelic, que colabora com os trabalhos da comissão, defende que todas as denúncias devem ser investigadas. “Se não temos tempo, vamos pedir a prorrogação do prazo. Vamos pedir mais estrutura para a apuração de todos esses casos, e não só os exemplares. Investigar casos exemplares não vai resolver. Imagine dizer isso para a família de um desaparecido político”, provoca.
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