Um dia qualquer

Por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes

É de manhã, cedinho. O caminhão do lixo nem passou, trazendo com ele o barulho inconfundível e o grito dos trabalhadores que anunciam a coleta. As corujas ainda voejam por sobre o muro, abrindo as asas no rumo de um mais além, para longe das gentes que principiam em amanhecer. O sol de outono abraçando o mundo torna as cores mais vivas. O verde das árvores é pura esmeralda, e as penas dos canarinhos que ainda cantam, alucinados, no muro lateral, brilham como ouro. Os gatos estão deitados na mesa do alpendre, com preguiça de caçar. As laranjas-lima pesam no pé e são pura gratuidade, esperando a mão da colheita. O cheiro do mar assoma, queimando as narinas. É como se fosse uma manhã no paraíso.

Na rua de areia já estão os cachorros, as galinhas e os meninos. A impressão é de que eles não dormem. Basta que a barra do dia se anuncie e já dá para ouvir a gritaria dos pequenos tentando empinar uma pipa, jogando taco ou na malícia do futebol. É gostoso pensar que esses bacorinhos estão vivendo a vida assim, à larga, numa espécie de excesso de natureza. Pelos menos os da minha rua jamais são vistos grudados em videogames ou na internet. Estão ávidos demais por vento e sol. Correm pelas poças de água, com os pés descalços, ostentando os corpinhos fortalecidos com todos os anticorpos possíveis. Nem no inverno mais gelado os vejo de nariz vermelho. Parece que são de ferro.

Mesmo no outono, quando o vento sul já se insinua, eles entram pelo portão do vizinho que tem uma pequena piscina em casa. Quem vai à frente é o menorzinho, para amolecer o coração.

– Moço, pode? diz, com o olhar comprido para a alegria aquática.
– Só de tarde – diz o homem, já acostumado com o repetido ritual.
– Que horas?
-Três horas.

Pois quando chega o momento, são pontuais. O pequeno circula pela vizinhança, chamando os comparsas. “São três horas, o moço deixou”… Então, eles chegam, aos borbotões, com os trajes de banho e as boias. São quase todos os curumins da rua. Pulam na piscina e dali não saem até que a noite chegue. Seus gritos ecoam pela rua afora, numa algaravia de felicidade que contamina qualquer um. Sem outros brinquedos além dos pneus, eles arrancam os maracujás e os fazem de bola. Entre uma entrada e outra na água vão se apropriando das acerolas, ameixas, jabuticabas e limas que abundam no quintal.

Quando o sol se põe, num vermelhão só, lá para as bandas do oeste, eles vão saindo, um a um. Desembestam pelo portão afora sem nem dizer obrigada. Sabem que o jardim é deles e que no dia seguinte voltarão para nova festa. Ainda molhados e sem a menor vontade de entrar em suas casas, arriscam um último jogo de frescobol. Invadem outro quintal. “Moça, empresta as raquetes”… Não têm nada de seu, mas ao mesmo tempo tudo possuem. Vivem em comunidade.

Só quando a noite vai longe é que a rua se aquieta. A gurizada entra, os vizinhos vão fechando os portões, a dama da noite começa a exalar seu perfume, as corujas voltam ao muro, os gatos se encaixam nas casinhas, os cachorros se aprontam para dormir. Assim, passa-se mais um dia no Campeche, no sul do sul do mundo, num outono de tirar o fôlego. E, mateando no alpendre, parece que vida fica cheia de sentido quando as crianças ainda brincam na rua e invadem quintais que nem são seus, sem que ninguém se incomode ou puxe uma espingarda de calibre 12. Os filhos da rua são os filhos de cada um e sempre há alguém a espiar pelo seu bem estar. É nessa hora que a gente suspira e pensa no quanto é bom viver.

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