Indígenas da etnia matis, que foram considerados suspeitos de terem provocado lesões do filho, dizem estar tristes com o drama da criança [Ver Observação especial de Elaízes Farias depois do final da matéria. TP.]
Elaíze Farias
Há pouco mais de uma semana, o casal indígena Tumi Machopa Matis, 25, e Tekpam Kana Matis, 22, voltou para Atalaia do Norte (a 1.138 quilômetros de Manaus), depois de cinco meses na capital amazonense acompanhando o tratamento do filho de cinco meses, Benin Ralikan Matis.
Em Manaus, os dois passaram de pais zelosos a suspeitos de provocar, deliberadamente, lesões na criança. A mãe foi afastada pelos assistentes sociais da Casa de Apoio à Saúde do Índio (Casai) de Manaus, onde os dois estavam alojados, por recomendação da equipe que fazia o tratamento da criança e o caso foi parar na Polícia Federal a pedido da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Tudo começou quando, no mês passado, a equipe de saúde do Instituto da Criança do Amazonas (Icam) suspeitou que Tekpam, a mãe da criança, estava tentando praticar infanticídio no filho.
Um relatório elaborado pela equipe médica chegou a tratar a mãe como “dissimulada”, embora não explique em que paradigmas e conceitos culturais e antropólogos a afirmação se baseou. O caso continua sob investigação da PF. O menino permanece no ICAM.
Retorno
Na semana passada, os dois conversaram com a equipe do jornal A CRÍTICA na Casa do Índio (Casai) de Atalaia do Norte. A mãe, embora compreendendo com dificuldade o português, falou na língua matis, traduzida pelo agente de saúde Tepi Matis, que trabalha na Casai. O pai falou em português, com uma ligeira dificuldade de se expressar nessa língua.
Os dois aguardam, junto com o filho de cinco anos, e a avó da criança (mãe de Tekpam) o transporte que os levará de volta à aldeia Paraíso, onde vivem – a viagem dura três dias, numa embarcação conhecida na região como “canoão”. A aldeia faz parte da Terra Indígena Vale do Javari, onde vivem os índios matis.
“Pensei que meu filho fosse melhorar. Dois filhos nossos já morreram. A gente queria que esse ficasse bom. Só temos um de cinco anos. A gente ficou muito triste quando ele piorou. Se a criança morrer, a gente quer que ela seja trazida para cá. Não queremos deixar ela em Manaus”, disse Tumi.
Gripe
A história de Benin começou há cinco meses, quando o bebê nasceu durante a viagem dos pais de canoão até Atalaia do Norte. O casal tinha ido à sede do município de Atalaia do Norte para vacinar o filho de cinco anos.
Alojados na Casai o casal viu seu filho recém-nascido pegar gripe e depois pneumonia. Sem falar português e sem um tradutor que os ajudasse na comunicação, eles foram enviados para Manaus pelo Distrito Sanitário Especial (Dsei) do Vale do Javari para acompanhar o tratamento do filho.
“Com 15 dias que a gente estava na Casai de Atalaia meu filho ficou doente. Ele pegou gripe aqui. Nos mandaram para Manaus e ficamos na Zona Oeste (Pronto-Socorro da Zona Oeste). Depois fomos para o Icam. O médico dizia que o menino estava cansado. Os enfermeiros falavam que não era para a gente mexer na criança, só eles. Depois ele ficou dois meses na UTI. Parou o coração. Depois o médico disse que o menino ficaria sem acompanhante e não vimos mais ele”, disse Tumi.
Tumi e Tekpam negam que tenham feito “algum mal” na criança, justamente porque eles gostariam de ter mais um filho, já que outros dois morreram. Uma menina morreu em um acidente ao cair da rede e outro de pneumonia. “Agora não sei se a gente ainda vai querer outro filho. Quando nasce, ele fica doente e a gente tem que levar para Manaus. Que adianta levar para Manaus se a criança fica pior?”, contou Tekpam.
Sangue
Alternando-se no acompanhamento da criança no hospital, Tekpam e Tumi contam que apenas observavam a evolução do tratamento e perguntavam, mesmo com dificuldade, sobre o uso de determinados equipamentos.
“A criança ia ficando fraquinha, emagrecendo, depois engordou. A gente pensava que ela ia melhorar. Depois, ela piorou de novo e começou a sangrar pelo ouvido. Chamei o médico e eles ficavam passando algodão no ouvido do menino para o sangue parar. No dia seguinte, começou a sair sangue do olho. O médico me falava assim: ‘a criança não vai melhorar’. Eu só ouvia, não respondia. Entendia o que ele falava um pouco mas não sabia como responder”, disse Tekpam.
Depois destes episódios, Tekpam conta que ficou “mais triste” e, quando estava do lado de fora do hospital, uma assistente social chegou.
“Eu chorei porque a criança não melhorou e ela me deu água para beber. A assistente social perguntou o que o Benin tinha e eu disse que ele continuava ruim e que os médicos afirmaram que ele não iria melhorar. Depois me mandaram para a Casai”, conta Tepkam.
Por meio de nota, a Secretaria de Estado de Saúde disse que a criança da etnia matis continua internada no Icam, na Unidade de Cuidados Intensivos. Ela permanece respirando com a ajuda de aparelhos e fazendo tratamento medicamentoso. Não há previsão de alta hospitalar.
Nascimento
O agente de saúde indígena Tepi Matis, que atuou como intérprete da entrevista para esta matéria, disse à reportagem que é equivocada a ideia que se propaga ainda hoje de que os índios matis (assim como outros povos) praticam infanticídio, como acontecia no passado, em circunstâncias especiais.
Segundo Tepi, “muito antigamente”, quando a criança nascia “de pés”, descrito por ele como “mal jeito”, a mãe deixava o bebê com a parteira até que ela perecesse. Mas, segundo Tepi, essa prática deixou de acontecer há muito tempo. Ele afirma que muitas mães acabam criando seus filhos e, quando isto não ocorre, o bebê é colocado para adoção, ou seja, é “passado para outra pessoa”, na sua explicação.
“A mãe manda o bebê para a cidade, para outra família. Ano passado, duas crianças matis vieram parar aqui na Casai. As enfermeiras ficaram com elas. Mas isso é muito raro”, explicou Tepi.
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http://acritica.uol.com.br/amazonia/manaus-amazonas-amazonia-Pais-Vale-Javari-infanticidio-crianca-indigenas-indios_0_886111387.html
Uma observação especial de Elaíze Farias, não publicada na matéria de A Crítica:
“Este caso atesta mais uma vez o despreparo do Sistema Único de Saúde (SUS) para lidar com as diferenças culturais e os povos indígenas. A mãe, que foi considerada “dissimulada” por um diagnóstico clínico do hospital, não sabe falar português. O pai fala com dificuldade. Os dois foram considerados “suspeitos” pelos médicos e afastados do filho. Na semana passada, durante minha estada no Vale do Javari/Alto Solimões para fazer matéria sobre reunião dos índios mayoruna, descobri por acaso que o casal havia retornado para Atalaia do Norte. Empreendi uma mini-jornada de Tabatinga até o município (peguei uma catraia para atravessar o Solimões e depois segui em um táxi-lotação pela estrada cheia de curvas e esburacadas até Atalaia). Tudo porque precisava ouvir cidadãos que não haviam tido oportunidade de se manifestar e de defender”.