Patrões de esquerda, padrões de direita

Os patrões ditos de esquerda não só arregimentam trabalhadores como conseguem frear parte da inevitável revolta diante das más condições materiais para o exercício da profissão

Por Julio Delmanto

Tenho 27 anos, e em 2013 completam-se cinco anos da conclusão do meu curso de jornalismo. De lá para cá, e também durante meus estágios ainda como estudante, procurei sempre que possível trabalhar em locais que me propiciassem se não exercer minhas convicções de outro mundo melhor, possível e urgente, ao menos não ofendê-las. Para além dos trabalhos em regime freelancer [1], já trabalhei para ONGs, movimentos sociais, um grande portal de Internet e empresas que se colocam no mercado como de esquerda, visando evidentemente um público também com esta visão de mundo. Olhando retrospectivamente, em nenhum destes empregos eu fui explorado e desrespeitado, tão “fudido e mal pago”, como neste último tipo.

Assim, não me surpreendeu em nada a atitude tomada nesta segunda-feira, 11 de março, pelo dono da revista Caros Amigos, Wagner Nabuco, de demitir sumariamente toda a redação da publicação por ter ousado fazer uma greve em busca de condições de trabalho minimamente dignas [2]. Não só porque já trabalhei lá e conheço o caráter (ou a falta de) da direção da revista, que segundo relatos no Facebook chegou a demitir uma funcionária durante sua licença maternidade, e as condições que os funcionários têm que enfrentar por ali, como os péssimos salários (invariavelmente atrasados ainda por cima) e a completa ausência de registro em carteira, benefícios e outros direitos.

Não me surpreendi pois também entre ONGs que conheci de dentro, uma delas inclusive supostamente defensora dos direitos humanos, vejo este mesmo tipo de postura extremamente cínica vigente em empresas que são geridas por pessoas ligadas de alguma forma a um passado e ou discurso de esquerda e que buscam, através dele, ocupar um nicho de mercado com “consciência social”. Pierre Bourdieu dividia explicativamente o Estado entre suas mãos esquerda e direita, com esta sendo responsável pela repressão e aquela pelos investimentos sociais, como educação, saúde e previdência. Neste tipo de ocupação há a mesma dicotomia: para fora, para os clientes e ou financiadores, a mão esquerda do discurso, dos produtos, do ar de contestação; para dentro, o punho de ferro da falta de condições para o desempenho da função, da ausência de democracia interna, da superexploração e do desrespeito completo e absoluto à legislação trabalhista e fiscal.

Se o desenvolvimento do capitalismo atingiu na contemporaneidade um estágio em que o desemprego é sua característica dominante, como avalia István Meszáros, não são só as grandes empresas que se aproveitam disso: no momento pelo menos metade de meus amigos jornalistas está desempregada e a outra metade está procurando algo melhor, e não só os portais de Internet, com suas jornadas de dez, doze horas, sabem disso. O sabem muito bem também os diversos Nabucos que por aí estão, sonegando impostos e ainda mamando em publicidade governamental graças a contatos políticos e que se aproveitam não só da falta de empregos decentes como, e ainda mais, da falta de alternativas de trabalho na área que não sejam explicitamente reacionárias ou degradantes – ou ambas. A Caros Amigos, que vinha sendo dirigida editorialmente com competência e combatividade, mesmo em meio à penúria material, por Hamilton Octavio de Souza desde 2009, fazia questão de se divulgar como “a primeira à esquerda”, e isso sempre funcionou não só como atrativo para seus leitores mas também como forma de convencer jornalistas a “colaborarem” com o projeto. Não à toa o termo utilizado pela direção sempre foi esse, muito querido pelas multinacionais mais sedentas de lucros: a relação de compra da força de trabalho não pode ser apresentada apenas enquanto tal, pois aí saltaria aos olhos a baixa contrapartida salarial; é preciso um “atrativo” a mais, o engajamento. Em uma dessas ONGs era muito comum que se dissesse se tratar de militância e não de trabalho – talvez assim convencessem a si mesmos de que o registro em carteira era desnecessário.

“Se todos ajudarem, podemos sair dessa situação e aí quem sabe finalmente talvez…”, implícito ou explícito isso é dito todo dia em um trabalho como esses. Vamos trabalhar pra crescer o bolo e depois dividi-lo? E enquanto isso o seu salário é bem maior que o meu, né? Sei.

Enfatizando o caráter progressista da empresa ou da função cumprida, os patrões ditos de esquerda não só arregimentam trabalhadores como conseguem frear parte da inevitável revolta diante das más condições materiais para o exercício da profissão, tanto por parte dos próprios empregados como de clientes e apoiadores. (Sem falar no velho argumento de que qualquer crítica é “fazer o jogo da direita”.) “Não há dinheiro, o que se há de fazer?” Mesmo agora, com onze pessoas demitidas por uma revista supostamente de esquerda durante uma greve, se lê isso nas redes sociais. Claro que para os patrões sempre há dinheiro, para as contas sempre há dinheiro, para os fornecedores sempre há dinheiro, mas para os trabalhadores nunca – afinal, eles são militantes, trabalham também pela causa, às vezes só por ela.

Mas que causa é esta no fim das contas? Para os “colaboradores” a motivação é evidente, a possibilidade de utilizar uma publicação respeitada para difundir uma história ou um tema político considerado importante leva a que se aceite a remuneração simbólica e mesmo inexistente do trabalho, em nome do fato ou debate que se quer tornar público. Acontece que, diferentemente do Brasil de Fato [3] e da Expressão Popular [4], que são mantidos sobretudo pelo MST, ou do Passa Palavra, iniciativa mantida de forma militante, empreendimentos como a Caros Amigos e editoras como a Boitempo se nutrem do trabalho voluntário [5] para fins de acumulação pessoal de seus donos. Trabalha-se de graça para difundir uma ideia ou para encher o bolso de alguém? Neste processo, além do trabalho cedido e convertido em lucro, também estas empresas apropriam-se em alguma medida do nome dos colaboradores, que chancelam esta iniciativa como realmente de esquerda, como confiável, digna de ser seguida e divulgada.

“Realmente, é uma situação péssima, mas o mais importante é que a revista prossiga”, defendeu um dos apoiadores de Nabuco quando soube da greve na Caros Amigos. Então um projeto político de esquerda pode estar acima da bandeira maior da esquerda desde o seu surgimento, o fim da exploração? Vamos ser coniventes com trabalho precarizado e muitas vezes escravo, já que jamais pago, para podermos ler nossos ideais impressos em folhas de papel? Vamos ser coniventes com o discurso de esquerda sustentando o enriquecimento pessoal de alguns às custas da dignidade de outros? Vamos aceitar ler um conteúdo de esquerda, destinando nossos esforços financeiros, de elaboração e de divulgação, para uma revista que não respeita o direito de greve nem os direitos trabalhistas mais mínimos? Vamos criticar a sonegação fiscal das grandes empresas e fortunas quando a Caros Amigos não paga os seus impostos corretamente há mais de dez anos? Vamos criticar o dinheiro público que vai para publicidade das revistas da Abril e vamos aceitá-lo indo para um sujeito que não respeita sequer a maior arma e conquista da classe trabalhadora que é o direito de cruzar os braços?

Infelizmente o legado e o ótimo conteúdo produzido pela redação (e não pelo dono) da Caros Amigos estão sendo jogados no lixo já há algum tempo por seus gestores. Se a direção da revista passasse para seus trabalhadores ou no mínimo para alguém que seja digno de tal cargo, aí seria o caso de, em nome da disputa num campo tão concentrado quanto a mídia brasileira, nos solidarizarmos com sua situação econômica e ajudá-la a sobreviver, trabalhar de forma militante, fazermos campanhas, ajudar um projeto de comunicação contra-hegemônico a seguir se consolidando. Claro que aí teríamos que perguntar sobre a divisão do trabalho, sobre hierarquia, sobre livre debate, sobre relação com governos, mas isso é outro assunto.

Esta saída não parece estar no horizonte, infelizmente. Minha proposta então é simples: BOICOTE. Não leia, não divulgue, não assine, não “colabore”, não ajude, não trabalhe de graça, não curta, não compartilhe, não dê entrevistas para a revista Caros Amigos enquanto essa direção estiver à sua frente, se dizendo de esquerda para tratar os funcionários como o pior dos industriais. Se nem o pequeno grupo de leitores e assinantes desta publicação se preocupa e revolta com questões como essas, não consigo imaginar quem mais poderia. As ferramentas de luta devem servir aos trabalhadores, não o contrário. Outras publicações existem, diversas delas com os mesmos problemas financeiros [6] e mesmo assim muito mais dignas com seus funcionários, e outras surgirão [7]. A Caros Amigos está morta – que viva a Caros Amigos e sua bela história!

Júlio Delmanto é jornalista, tem a carteira de trabalho em branco e trabalhou na Caros Amigos em 2009 e 2010, recebendo 1.200 reais teoricamente-mensais como repórter.

Notas

[1] Tão onipresentes na vida de um jornalista da minha geração que são carinhosamente chamados de “frila” [freelancer], chegando ao paradoxal caso, bastante comum, do “frila fixo”.

[2] “E desde quando jornalista pode fazer greve?”, bem questionou Leonardo Sakamoto.

[3] Publicação que se relaciona de forma digna com os colaboradores, deixando bem claro que não há remuneração, e não simplesmente tentando “enrolá-los”, como invariavelmente faz Wagner Nabuco, mas cujas condições de trabalho de seus funcionários também estão muito aquém do necessário, pelo que me consta.

[4] Editora que se utiliza de trabalho voluntário também de forma honesta e que registra e respeita seus funcionários, mesmo sem condições de oferecer grandes salários.

[5] E mesmo “involuntário”, como no caso da Boitempo: aquiaqui e aqui.

[6] Cito aqui por exemplo as Revistas Fórum e Retrato do Brasil, para as quais às vezes colaboro em regime freelancer (sem saber portanto da dinâmica da redação) e que sempre foram bastante honradas e respeitosas comigo mesmo em meio a dificuldades financeiras evidentes.

[7] Para pensar o assunto recomendo o sucinto e ótimo comentário do jornalista Cristiano Navarro em sua página de Facebook: “No começo da década passada, havia no Brasil um cenário de grande efervescência entre os recém-formados comunicadores. Encontramo-nos em um tempo/espaço de lutas concretas contra o Estado Neoliberal e estávamos dispostos a criar, participar e debater: novos veículos, novos movimentos e novos direitos ligados à comunicação. Vínhamos de diferentes experiências e, sem dúvida, Porto Alegre era nossa Génova-Seattle-Buenos Aires para reunião e laboratório destes direitos e de uma nova comunicação contra-hegemônica. Foi daí que, em pouco tempo, a revista Caros Amigos, lançada em 1997, ganhava diversos companheiros de linha editorial (revista Fórum, jornal Brasil de Fato, agência Chasque, agência Carta Maior, Adital, Radioagência Notícias do Planalto entre outros) onde nós nos engajávamos. Foi nessa época também que nos mobilizamos e criamos o Intervozes. Uma década depois, outros tempos políticos e o cenário para este campo da comunicação é bastante desanimador. Enquanto as redações dos veículos alternativos de esquerda estão afundadas em dívidas, veículos tradicionais de linha editorial ultra-conservadora recebem volumosos recursos públicos de publicidades do governo federal . Para piorar, o ministro das Comunicações sentenciou que neste mandato não se tocará na reforma do marco regulatório. Não sei, posso estar errado, mas me parece que a Redação daCaros Amigos em Greve, cujo motivo é o corte em 50% da folha salarial (irrisórios 32 mil reais para absurdos 16 mil), é apenas um sinal do amargo momento que vivemos. Pois para além da total precarização, problemas tão ou mais graves do que este foram praticamente incorporados na sobrevivência destes veículos: como o assédio político partidário (especialmente em período eleitoral) e a ameaça de assessores do governo sobre jornalistas e assessores de movimentos sociais. Isso tudo, fora os embates do dia-a-dia destes profissionais contra os conglomerados de comunicação ligados à bancada evangélico-ruralista. Enfim, a situação é delicada e talvez tenha chegado o momento de voltarmos à pergunta que nos fizemos (e deu origem ao Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social – Grupo Público), no começo da década de 2000: E agora?”

Patrões de esquerda, padrões de direita

Enviada por Janete Melo.

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