Baía de Guanabara: Produtiva, apesar da poluição

Águas da Guanabara ainda sustentam muita gente - Custodio Coimbra

Baía de Guanabara ainda é o mais importante local de pesca do estado do Rio de Janeiro, embora receba diariamente grande quantidade de esgoto

Cláudio Motta

RIO – Você comeria um peixe da Baía de Guanabara? Acrescente a sua resposta o dado a seguir: um dos cartões-postais do Rio de Janeiro recebe diariamente toda sorte de poluentes, inclusive 70% do esgoto doméstico de 8,3 milhões de pessoas que vivem na Região Metropolitana. São aproximadamente 12 mil litros por segundo de efluentes in natura. Quem passa pelo Canal do Cunha, por exemplo, pode observar de longe — e sentir o cheiro — a degradação. Há até quem faça ironia e diga que fritar um pescado da baía é mais barato porque já vem com óleo. Apesar de tanta poluição, as águas da Guanabara têm a maior produção de pescado do estado, com 3.891 toneladas.

A informação consta do monitoramento anual feito pela Fundação Instituto de Pesca do Estado do Rio de Janeiro (Fiperj), cujos dados sobre a produção de pescado em 2012 acabaram de ser compilados. Pesquisadores do órgão estadual ressaltam que os números estão subestimados. Nem todos os pontos de desembarque de pescadores foram cobertos pelos especialistas.

Tanto que a estimativa apresentada pelo professor Marcelo Vianna, do Laboratório de Biologia e Tecnologia Pesqueira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é ainda maior, mas, também considerada conservadora. Suas pesquisas indicam que a Baía de Guanabara produz cerca de 500 toneladas de pescado por mês. Ou seja, seis mil toneladas por ano, que movimentam um importante mercado pesqueiro, com aproximadamente três mil pescadores.

A influência da Baía de Guanabara não se restringe ao pescado de suas águas. Vianna ressalta que o estuário é fundamental para o ciclo de vida da maioria dos peixes capturados em mar aberto, apesar da poluição, tráfego de embarcações e dutos transportando derivados de petróleo. O camarão VG, a corvina e a tainha, entre tantos outros, precisam de águas protegidas para se desenvolver, sobretudo nas primeiras fases da vida.

O caso do camarão, valorizado nos mercados de frutos do mar, chama a atenção. Enquanto o VG, geralmente capturado em alto-mar, pode ser vendido a mais de R$ 35 o quilo, o camarão-lixo, capturado da Baía de Guanabara, tem baixo valor comercial. Miúdo e cinzento, acaba sendo vendido por unidade para servir como isca. Grande parte dos pescadores simplesmente desconhece que o pequeno e desvalorizado crustáceo é exatamente da mesma espécie que o cobiçado VG. A diferença entre um e outro é a idade e a falta de tempo para crescer, que poderia ser resolvida se ele fosse devolvido ao mar.

Se não há compreensão sobre o ciclo de vida do camarão, sobram aos pescadores outros conhecimentos. Eles são testemunhas do aumento vertiginoso do lixo. A ponto de as redes de pesca terem que sofrer adaptações, evitando a superfície da água para se desviar dos detritos.

A lida diária também mostra a queda vertiginosa tanto da qualidade quanto da variedade de pescado nos últimos 15 anos. Na Praia de Mauá, em Magé, até mesmo os atravessadores, que fazem a compra ainda na praia para levar o produto a outros mercados, diminuíram em quantidade. Para especialistas, essa é uma evidência do colapso da cadeia produtiva. Ali, o quilo costuma ser negociado a R$ 3. Diante disso, os filhos dos pescadores já não se interessam pela profissão dos pais. Exatamente como cantou Paulinho da Viola na música Timoneiro: “a rede de um pescador, quando retorna vazia, vem carregada de dor”.

Leilão de peixe

Já Gradim, em São Gonçalo, mais próximo da entrada da baía do que Mauá, ainda atrai um grande número de atravessadores e de pescadores. O porto é palco, na madrugada, de leilões de compradores. Em geral, o pescado é negociado entre R$ 7 e R$ 9. A quantidade de barcos, pouco abaixo do movimentado trecho Niterói-Manilha da BR-101 Norte, impressiona.

A imagem só não é mais surpreendente do que a capacidade piscosa da Baía de Guanabara, que também tem espaço para peixes nobres, como o robalo. Essa espécie é vendida pelos pescadores a cerca de R$ 25 o quilo nos mercados de peixe.

A pesca do robalo custa caro. Em vez de traineiras e motores barulhentos, os barcos de captura de robalos tem dois motores. Um deles é elétrico, para não fazer barulho (este equipamento custa cerca de R$ 700). Além disso, é necessário ter bateria de caminhão (R$ 500); molinetes especiais (R$ 170); varas leves e resistentes (de pelo menos R$ 100); dois tipos de linhas diferentes e combinadas, que conseguem resistir à força do robalo (um rolo de linha custa R$ 45 com 30 metros, o outro R$ 110 com cem metros); e uma série de iscas artificiais diferentes, grande parte importada (R$ 100 cada, em média). Total: R$ 1.625. Isto sem falar no dinheiro empenhado no barco e no motor à combustão, usado para ir e voltar do ponto de pesca.

O investimento se explica pelo seu retorno financeiro. A venda do robalo é fácil e há muita procura. Um único exemplar de peso nada excepcional, com uns cinco quilos, rende R$ 125. Quem capturar uma dúzia destes leva para casa R$ 1.500. De acordo com os pescadores, o grande entreposto é o Mercado São Pedro, em Niterói, de onde vão direto para restaurantes, sobretudo os japoneses, que os servem cru.

— O robalo procura abrigo nos currais desativados. Temos que chegar sem fazer barulho e saber qual é a isca certa, que varia muito de dia para dia. Depois que pescamos, vendemos no Mercado São Sebastião, onde o peixe nem fica exposto. Já tem compradores certos.

Sem controle

O peixe nobre, que é servido cru em alguns restaurantes, consegue sobreviver na Baía de Guanabara, que recebe uma carga de 12 mil litros de esgoto por segundo. Deste total, de acordo com as estimativas do subsecretário estadual do Ambiente, Gelson Serva, apenas 30% recebem algum tipo de tratamento, nas estações de Alegria, Sarapuí, Penha, Icaraí e Ilha do Governador.

Pesquisadora da Fiperj, a oceanógrafa Francyne Vieira ressalta que ainda há muito o que se pesquisar para entender melhor não apenas a quantidade, mas a qualidade da pesca, não somente na Baía de Guanabara como também em todo estado. Porém, não há indicações de que os peixes da Baía de Guanabara tenham qualquer contaminação que faça seu consumo ser prejudicial à saúde.

Por outro lado, não há um controle sanitário eficiente para manter, da melhor maneira possível, o pescado em ótimo estado de conservação. Por exemplo, praticamente nenhum pescador leva gelo para conservar os peixes durante a pescaria.

— Como os peixes da Baía de Guanabara, mas bem fritos — diz a especialista da Fiperj. — Levando em consideração a quantidade de pesca, a poluição, o imenso transporte de cargas e pessoas pelas suas águas, dá para ver a força deste ambiente, sua capacidade de resiliência. Imagine a quantidade de peixes que haveria se não houvesse poluição.

A cena imaginada por Francyne está pintada num quadro do professor Vianna, da UFRJ:

— A pintura mostra, na altura da Praça XV, 11 baleias nadando na Baía de Guanabara. Isso revela como ela era extremamente rica em vida. Há relatos de navegadores reclamando da quantidade de sardinhas, que atrapalhavam a navegação. E naturalistas que tinham medo de navegar na Baía de Guanabara em função da quantidade de baleias.

Entre a enorme oferta de peixes e cetáceos do passado e a realidade de hoje, a principal diferença é o esgoto orgânico não tratado, afirma Vianna. Mesmo assim, o canal central da Baía de Guanabara, explica o biólogo da UFRJ, permite grande renovação da água. Isso faz com que a produção total de peixes continue sendo importante.

— A Baía de Guanabara é cheia de vida, dinâmica e forte. Mas o sinal amarelo foi acionado e há muitas áreas na UTI. Mesmo assim, se elas forem dragadas e a água novamente circular ali, não dou cinco anos para voltarem a ser piscosas — aposta Vianna. — No entanto, se compararmos com 20 anos atrás, a queda do número de peixes é absurda. Mesmo sem dados confiáveis, sabemos que a Baía de Guanabara sustentava pesca de arrasto de camarão ao longo do ano inteiro. Portanto, a baía é uma sobrevivente. E ainda dá tempo (de salvá-la). Existem práticas sustentáveis, como a pesca da sardinha. E não identificamos casos de extinção de espécies, mas apenas de redução de área de vida.

Pesca de curral

Ainda que cientificamente não tenham sido extintas, como diz Vianna, muitas espécies desapareceram da vida dos pescadores.

— Hoje, quando consigo tirar duas caixas de peixe, sempre corvina e tainha, agradeço. Há dez anos, uma saída ao mar rendia facilmente uma tonelada — reclama Heleno Teófilo, de 64 anos, na Praia de Mauá.

Os donos dos currais — técnica que consiste em fazer cercados nos quais os peixes ficam presos, uma herança indígena — também se lamentam.

— Tiro cerca de 30 quilos, em geral de tainha, quando vou duas vezes por semana ao curral. Antigamente, produzia facilmente 300 quilos, dia sim dia não — afirma Jethron Carlos da Silva, conhecido na área como coronel — E temos um custo alto para montar o curral. Sem falar no risco de uma ventania destruir tudo. Por isso, tem muito pescador querendo vender seu curral sem que apareça gente para comprar.

Apesar de menor na comparação com o passado, a produção de pescado da Baía de Guanabara é respeitável — o Rio de Janeiro ocupa, segundo dados do Ministério da Pesca, em 2010, uma posição de destaque no cenário nacional. A produção fluminense passou de 57 mil toneladas em 2009 para 54 mil em 2010 (queda de 5,2%). Porém, o trabalho ressalta que a produção do Rio de Janeiro deve ter sido subestimada. O estado de Santa Catarina é o maior produtor de pescado oriundo da pesca extrativa marinha do Brasil, seguido do Pará, Bahia e, finalmente, Rio. Isto num país que está entre os 25 maiores produtores de pesca extrativa do mundo. Enquanto a China lidera o ranking (16,88%), a produção brasileira está na 23ª posição (0,92%).

Tantos números podem dar a impressão de que há bons dados. Engano. A Fiperj, por exemplo, considera que o estado do Rio produziu, no ano passado, 6 mil toneladas de pescado. Número muito distante das 54 mil toneladas que constam no documento do Ministério da Pesca, de 2010. A ausência de informações dificulta comparações, criações de séries históricas, e atrapalha não apenas os pesquisadores, como a indústria e a fiscalização.

— A estatística é falha. Não temos dados adequados sobre a produção pesqueira nacional nem em quilos muito menos em valor de comercialização. É um caos. A ausência de dados confiáveis e de longa duração é terrível. Tanto para os setor pesqueiro como para o científico. Estamos navegando no escuro em termos de conhecimento no Brasil. Há dados sobre a produção agrícola, pecuária, petróleo etc. Mas, não sobre pesca — critica Paulo Ricardo Pezzuto, professor e pesquisador do curso de Oceanografia Universidade do Vale do Itajaí (Univali) — O mesmo acontece com o controle de qualidade do pescado. Em alguns lugares, a luz amarela está acesa. Há contaminação e o consumo deveria ser visto com mais cautela.

O caso do Rio Pilar, em Caxias, é emblemático. Suas águas escuras carregam óleo combustível, desembocando na Baía de Guanabara. De acordo com a prefeitura, pelo menos 400 pessoas vivem com alto risco de intoxicação química. Por outro lado, o governo do estado reconhece que a tarefa de despoluir não é simples, mas reafirma o compromisso de chegar em 2016 com 80% do esgoto tratado.

Meta comprometida

— Nos últimos seis anos, o percentual de esgoto tratado na Baía de Guanabara subiu de 12% para 36% e 64% ainda chegam sem tratamento — reconhece o secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc. — A recuperação da Baía de Guanabara tem vários aspectos: esgoto, lixo, Reduc, companhia com a qual assinamos o maior Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da história ambiental do Brasil, no valor de R$ 1,08 bilhão.

Mesmo tendo avançado em todas essas áreas, Minc admite que o estado só terá condições de tratar até 80% do esgoto despejado na Baía de Guanabara até 2016:

— Vamos instalar Unidades de Tratamento de Rios. A UTR de Irajá ficará pronta no final do ano e ela terá condições de retirar 12% da carga orgânica da Baía de Guanabara. Vamos fazer pelo menos mais umas quatro. E, conforme as obras de saneamento forem avançando, teremos condições de deslocar as UTRs para outros locais.

Já o superintendente federal no estado do Rio do Ministério da Pesca e Aquicultura, Antonio Emilio, reconhece os problemas e promete melhorias.

— Estamos lançando um plano nacional de fiscalização da pesca ilegal em parceria com outros órgãos — antecipa Emilio, comentando que por mais que se apliquem recursos, a fiscalização “é deficitária”. — Trabalhamos com demandas, em vez de operações preventivas. Quanto à saúde animal, formalizamos convênio para melhorar a estrutura da análise de moluscos. Até o final do ano, vamos instalar um laboratório para analisar o DNA dos peixes, para que uma espécie não seja vendida como se fosse outra. Em relação aos dados, este é um mal desde o fim das estatísticas do Ibama. Nos últimos dois anos fizemos um convênio com a Fiperj. Queremos renová-lo.

Pescadores têm cada vez menos espaço para trabalhar na Baía de Guanabara. Além da poluição, zonas de exclusão impedem a atividade, em geral em áreas bastante produtivas. O assunto foi tema da tese de mestrado da geógrafa Carla Maria Stella Ramôa da Silva Chaves. De acordo com sua pesquisa, de 12% a 25% da área total da Baía de Guanabara são livres para a pesca, sem restrições. O restante é restrito à pesca e à ancoragem de embarcações, exceto a navios autorizados.

A maior parte do espelho d’água está comprometida pela indústria do petróleo (ocupando uma área de 22% a 44%). Há, também um pedaço, de aproximadamente 14% do total, destinado à proteção ambiental. Neste caso, o impacto para a pesca deve ser relativizado, uma vez que a APA acaba se tornando um fornecedor de organismos para outras regiões. Sendo assim, mesmo que existam várias exigências legais dificultado a ação do pescador nesta região, elas têm a finalidade de proteger e reduzir os impactos da pesca sobre as espécies marinhas.

Para construir o mapa da exclusão da pesca na Baía de Guanabara, a pesquisadora contou com a ajuda de pescadores artesanais, que prestaram depoimentos e indicaram os locais nos quais não é possível atuar.

A redução das áreas de pesca gera conflitos entre pescadores. A denúncia é de Alexandre Ânderson, de 42 anos, que vive com a família em hotéis do programa nacional de proteção aos defensores dos direitos humanos. Ele está sob proteção, depois que sobreviveu a pelo menos seis tentativas de assassinato. O primeiro deles em 2009:

— Do grupo que criou a Associação Homens do Mar, 11 pessoas, só há sete vivas. Três foram assassinadas e um se suicidou. Em 2000, os pescadores podiam atuar em 78% do espelho d’água. Dez anos depois, a área foi reduzida para 12%. Este número pode ser ainda menor, dependendo da maré. Na comparação com os anos 1990, a redução da oferta de peixe é de cerca de 80%.

O pescador denuncia, ainda, a colocação no fundo da baía de dispositivos que dificultam ou mesmo impedem a ação das redes de pescadores. Além disso, as ameaças aos pescadores não cessaram.

— Desde julho do ano passado, a associação está fechada. Por causa da violência, nosso movimento está sendo enfraquecido. E o que queremos é garantir o direito dos pescadores — diz Ânderson.

http://oglobo.globo.com/amanha/produtiva-apesar-da-poluicao-7813707

Enviada por Alexandre Anderson.

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