“Cabem aqui duas perguntas retóricas: em que momento esta sociedade decidiu que a lesão ao Código Penal deve ser tratada com rigor máximo, ao passo que a Constituição, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e tudo o mais são “dispensáveis”? Foi no mesmo momento em que decidiu que o desrespeito aos direitos dos trabalhadores não chega a ser, assim, um problema?” Nesta semana, a seção “Batalha das ideias” traz o artigo Todos os direitos, menos o do trabalho?, de Tarso de Melo. Leia o artigo.
Tarso de Melo*
O que há em comum entre uma paciente de 80 anos que morreu quando a estagiária de enfermagem injetou café com leite nas suas veias, a indignação do pai de uma criança de 3 anos morta ao ser esquecida na piscina de uma escola de alto padrão, os caminhões que nos acostumamos a ver tombados à beira da estrada, os motoboys atropelados pela cidade, a impaciência – para dizer o mínimo – dos motoristas de ônibus, o segurança da padaria ou do banco que dispara contra um cliente durante qualquer discussão? Trabalho precário.
Obviamente, demonstrar a relação entre o tratamento dispensado aos trabalhadores, na imensa maioria dos casos, e os erros cometidos no exercício de suas funções não é simples, mas a dificuldade não justifica que nossa sociedade tenha-se acostumado a conviver – ingênua ou maliciosamente – com a ofensa aos direitos dos trabalhadores, tendo que colher, todavia, também cotidianamente, as consequências nefastas, como essas citadas no início do texto, do desrespeito ao mínimo, ao piso que os direitos sociais representam.
Esta precarização, sabemos, chega hoje aos mais diversos níveis. Na verdade, são poucas as fachadas de empresas que não poderiam hoje ostentar o lema “Todos os direitos, menos o do trabalho”, ou seja, é cada vez mais evidente ao observador atento que os empregadores se empenham em estratégias para substituir a contratação direta dos seus trabalhadores pelas figuras mediadas do “colaborador” ou do “prestador de serviço”, os “terceiros” que não mantêm vínculo algum com as empresas em que, de fato, trabalham.
Quando ironizo essa situação sob a bandeira do “Todos os direitos, menos o do trabalho”, refiro-me propriamente à manifesta preferência do empregador por estabelecer qualquer tipo de vínculo – civil, comercial, empresarial e, nos extremos, até penal, uma vez que ainda temos o trabalho escravo – com todos aqueles que são essenciais para sua empresa, desde que evite a vinculação prevista na legislação do trabalho. Nesse universo, siglas como CLT e CTPS indicam o mal a ser evitado, a injustiça contra “quem gera emprego”, que apenas são toleradas quando se mostre arriscado demais driblá-las.
Ademais, para driblar aquelas siglas, o capitalista brasileiro conta com os passes precisos das instituições que deveriam zelar pela legislação, dispostas a absorver – nas leis e nas decisões judiciais – a progressiva influência daquela lógica de substituição de relações de trabalho por outras, ou melhor, recobrindo as relações de trabalho com o manto de uma natureza jurídica diversa, de modo a liberar o empregador de suas obrigações com cada trabalhador e com o todo da sociedade. O contrato de trabalho, que foi redigido historicamente pelas lutas dos trabalhadores para definir as cláusulas que o protegessem em uma relação sempre desequilibrada, é forçado a se tornar um contrato que pressupõe vontades, liberdades e igualdades plenas entre as partes.
Não desconsidero, aqui, que a legislação trabalhista só existe numa sociedade desigual desde seu fundamento – a exploração do trabalho assalariado – e que, portanto, esforça-se em buscar uma harmonia impossível entre capital e trabalho, mas a meu ver esta constatação não pode engessar as lutas sociais que os direitos dos trabalhadores justificaram e ainda permitem.
Parece-me evidente que o direito do trabalho compra (e mantém na ordem do dia) uma briga muito grande ao intrometer limites na compra e venda da força de trabalho – e talvez por isso seja maior que o de outros ramos do direito o seu grau de inadequação à realidade das relações estruturais de reprodução do capital, de modo que seus defensores não podem se espantar demais com a forma como tais direitos são desprezados mesmo por aqueles que deles se beneficiam ou beneficiariam, tampouco esperar um momento de redenção, em que tais direitos estejam ilesos aos ataques do capital.
No nosso caso, entretanto, o ordenamento jurídico, desde o texto constitucional até a CLT e as normas que a rodeiam, realiza a proteção mais ou menos cuidadosa do trabalho frente ao capital, cujo desenvolvimento está atrelado a diversos instrumentos de promoção de justiça social.
Se reconhecermos que esse imenso e precário edifício de normas e instituições apenas se sustenta se cada uma de suas partes for minimamente respeitada, é bastante estranha e sujeita a graves desestruturações (como as que já assistimos) uma sociedade que se revolta profundamente com a lesão a alguns direitos, mas aceita cínica e indiferentemente a lesão a outros.
Neste sentido, basta comparar a forma indignada como a nossa pretensa opinião pública, exposta na imprensa e na redes sociais, lida com o desrespeito às regras da moralidade administrativa no chamado Mensalão, mas faz pouco caso da vingança sem lei perpetrada pelo Supremo Tribunal Federal para buscar a punição, de antemão anunciada, de seus principais artífices.
Mas podemos sair dos holofotes do mais “pop” dos Tribunais (e, principalmente, da região inflamada do debate sobre a legalidade do “julgamento do século”) e encontraremos aquela mesma sociedade autorizando, entre a indiferença e o regozijo, a execução sem julgamento, nas periferias das grandes cidades, de quem “tem passagem” ou mesmo apenas reúne as características que o preconceito distingue como potencialmente perigosas.
Cabem aqui duas perguntas retóricas: em que momento esta sociedade decidiu que a lesão ao Código Penal deve ser tratada com rigor máximo, ao passo que a Constituição, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e tudo o mais são “dispensáveis”? Foi no mesmo momento em que decidiu que o desrespeito aos direitos dos trabalhadores não chega a ser, assim, um problema?
Apenas dessa maneira conseguimos compreender uma sociedade disposta a abandonar rapidamente a vigilância revoltosa da legalidade em frente à TV Justiça e aceitar – ou mesmo defender – a discriminação constitucional do trabalho doméstico, a repreensão violenta da greve, o aviltamento dos salários, os retrocessos quanto à limitação da jornada de trabalho etc.
Disposta a produzir e reproduzir seus próprios monstros, ao fingir que não vê o quanto de trabalho precário é necessário para sua vida – a babá 24 horas, a empregada que é “da família”, o porteiro com jornada de 12h/12h sem descanso semanal, o “cachorro louco” sobre rodas que leva e traz suas mercadorias pelos filetes do trânsito, o “zumbi” que trafega com carretas imensas pelas estradas –, não é difícil prever a encruzilhada a que esta sociedade se condena: quem planta trabalho em condições desumanas, colhe outras formas de desumanidade, como as que o caderno policial do jornal estampa – com a assinatura, aliás, de um jornalista “pessoa jurídica”, fazendo “frila”.
*Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, mestre e doutor em Direito pela FDUSP, professor da FACAMP e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É um dos coordenadores da coleção Direitos e Lutas Sociais (Dobra/Outras Expressões).
http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/batalha-das-ideias-todos-os-direitos-menos-o-do-trabalho