Moradores de favela vão monitorar UPPs

Marília Gonçalves, do Canal Ibase

Mais de 150 pessoas se reuniram no Santa Marta, Zona Sul do Rio de Janeiro, para discutir sobre a política de segurança pública do estado, que desde 2008 vem implantando Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em favelas da capital. Até agora, 17 unidades estão em funcionamento, o que corresponde a menos de 2% do total de favelas existentes na cidade. A anfitriã foi a primeira a receber uma UPP, em 2008, e é considerada um exemplo de sucesso da política. Moradores do Santa Marta e de diversas outras favelas apontaram, no entanto, problemas na relação com os policiais. Eles estiveram reunidos no seminário ‘Favela é Cidade: as UPPs, a proposta de pacificação e a população do Rio de Janeiro’.

O evento discutiu temas como a intervenção da política de segurança na economia local, a manutenção da violência, o desrespeito aos moradores e à memória da favela, a necessidade de políticas para a juventude e muitos outros. Ao final de dois dias de debates, os moradores organizaram uma comissão composta por representantes de diversas áreas da cidade com o objetivo de organizar um próximo encontro, um Fórum de Acompanhamento das UPPs.

Críticas predominam entre moradores

Apesar da expressiva presença de acadêmicos e estudiosos do assunto, poucas foram as falas de não moradores de favelas durante os debates. O que deixou clara a necessidade de se construir mais espaços para troca de experiências entre a população das favelas. “A mídia tem falado muito e ouvido muito pouco os moradores. Eles não devem ser percebidos como meros receptores passivos de políticas públicas”, afirmou o professor Luiz Antonio Machado.

Moradora do Borel e uma das fundadoras da Rede de Instituições da comunidade, Mônica Santos Francisco falou sobre o desrespeito à memória da favela, ou seja, ao que já vinha sendo feito ali muito antes da chegada da UPP. Segundo Mônica, se antes havia uma representação do tráfico que desagradava os moradores, depois a polícia foi quem passou a mediar o diálogo entre os favelados e os atores externos. A prática não acontece apenas na favela da Tijuca, no Santa Marta também, como confirmou várias lideranças locais que estavam no seminário. Mônica fez uma crítica à forma como a mídia trata os moradores de favela. Ela lembrou de uma reportagem de um jornal na TV que anunciou, no Natal de 2008, que “agora sim” os moradores poderiam fazer uma ceia e celebrar a data, como se nunca antes tivesse sido desta forma. “É quase uma afronta para nós que já trabalhávamos há muito tempo na favela”, afirmou a moradora do Borel.

Alan Brum, diretor da ONG Raízes em Movimento e morador do Complexo do Alemão, participou da primeira mesa do seminário e falou sobre as mudanças que ocorreram na economia da comunidade com a chegada da UPP. Alan explicou que houve uma desconstrução do comércio local para a chegada de grandes redes de comércio e serviços, como Casas Bahia, desestruturando comerciantes que são moradores do Complexo. Ele acredita que a chegada dessas redes pode ser, sim, benéfica aos moradores, que passam a ter acesso facilitado a bens de consumo que estavam distantes e, muitas vezes, sequer entravam na favela para fazer entregas. No entanto, esse processo deve ser feito com cuidado necessário com o que já existia no local.

A manutenção da violência e o abuso de poder

Uma questão que ficou bem clara durante o seminário é a percepção dos moradores de que as práticas policiais violentas continuam acontecendo. Foram inúmeros os testemunhos, de diferentes origens, de conduta desrespeitosa e preconceituosa de policiais das unidades. Um morador do Borel contou, por exemplo, a história de como era abordado todos os dias por policiais da então recém-implantada UPP, sempre ao voltar do trabalho, à noite. Um dia, conta ele, depois de tanto ouvir “mão na parede”, perguntou se o policial queria seu telefone, no que todos riram da irônica abordagem do drama sofrido.

Alan denunciou também que o abuso de poder de policiais tem sido “escondido” atrás de acusações de desacato à autoridade. “Qualquer questionamento vira desacato. Se você vai defender um direito seu, vira desacato”, afirma. A professora da Fundação Getúlio Vargas Sônia Fleury confirma a questão. Ela conta que tentou ter acesso aos dados sobre denúncias de desacato, mas não conseguiu. “Os dados não são transparentes. Nós, pesquisadores, não conseguimos ter acesso a eles”. A major Priscila de Oliveira Azevedo, primeira policial a comandar uma UPP do Rio, justamente no Santa Marta, esteve presente e se manifestou afirmando que a crítica seria um “engano” da professora. No entanto, não foram apresentados dados ou um caminho para consegui-los.

Maria Cristina é moradora da Cidade de Deus e funcionária da Agência CDD de Desenvolvimento Local. Sua maior preocupação é com o exemplo dado às crianças, que continuam assistindo a um desfile ostensivo de homens fortemente armados no seu local de moradia, e acabam fazendo disso uma brincadeira, banalizando a violência da mesma forma que faziam quando a referência eram os traficantes. Para Mônica, o mesmo acontece no Borel, onde as crianças já conhecem os policiais pela “fama” de serem mais ou menos violentos.

Ainda de acordo com Mônica, a escassez de políticas direcionadas à juventude nas favelas com UPP é evidente. “Vieram projetos para crianças e idosos. Os demais estariam impregnados pela cultura do tráfico e ‘resistiriam’ a melhorias. Mas para onde vão os jovens que saíram do tráfico?”, questiona. Ela explica que os cursos profissionalizantes que chegaram são de garçom, manicure, encanador etc., e os jovens não estariam interessados. Como não há procura por essas formações, isso é entendido como desinteresse pelo trabalho ou pelo estudo. Morador do Chapéu Mangueira, o jovem Lula ratifica, explicando que ninguém pergunta ao jovem o que ele quer fazer. “Quando chega projeto para jovem, é curso de ‘salgadeiro’ ou de informática. Quem hoje em dia aprende informática em curso? Hoje já tem criança até invadindo o site da CIA”.

O seminário Favela é Cidade foi organizado pelo Ibase em parceria com o CEVIS (Coletivo de Estudos sobre Violência e Sociabilidade/UERJ) e o Peep (Programa de Estudos sobre a Esfera Pública/FGV), e realizado nos dias 26 e 27 de novembro. A comissão de organização do próximo encontro é composta por Mônica Francisco, Lula, Repper Fiell, Deley de Acari e Cleonice Dias. Não ficou definida uma data para o início do Fórum.

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