Segundo Benedito Barbosa, da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, os conflitos de comunidades pobres contra concessões urbanísticas e cessões de terras para grandes projetos imobiliários e de infraestrutura nos centros das cidades brasileiras devem se intensificar no próximo período. “O que a gente está vendo cada vez mais é o capital imobiliário, especulativo, e as grandes incorporadoras se apropriarem desses territórios, com o apoio e articulação do poder público.”
Letícia Sígolo, Luciana Ferrara e Márcia Hirata (*)
São Paulo – Daqui para frente, a luta por moradia será travada mais do que nunca nas áreas centrais das grandes cidades brasileiras. A avaliação é de Benedito Barbosa, mais conhecido como Dito, liderança da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM) e da Central dos Movimentos Populares (CMP).
Ele explica que está em curso processos de “exclusão, expulsão e higienização” nos centros dos principais municípios do Brasil. “O que a gente está vendo cada vez mais é o capital imobiliário, especulativo, e as grandes incorporadoras imobiliárias se apropriarem desses territórios, com o apoio e articulação do poder público”, denuncia. Leia a seguir a íntegra da entrevista.
Trajetória, articulação e conquista das lutas populares
“Comecei minha militância na Pastoral da Juventude no interior de São Paulo, em 1978. Era uma cidade pequena, chamada São Joaquim da Barra. Meu pai tinha uma oficina de marcenaria, onde aprendi a profissão de marceneiro e trabalhava com ele. Quando fiz 18 anos, saí de São Joaquim da Barra e fui estudar no Paraná. Fui estudar no seminário em 1980. Tinha terminado o colegial, o 2º grau no interior, e fui fazer Filosofia no Paraná, de 1980 a 1981. Depois eu fui fazer o noviciado no interior de São Paulo, perto de Barretos, em Guaíra, uma cidadezinha pequena de 50 mil habitantes. E, em 1982, eu vim para São Paulo e fui atuar na Pastoral de Favelas. Aqui em São Paulo tinha um padre, que hoje é bispo de Limeira, Dom Wilson, que trabalhava na Pastoral de Moradia, na Pastoral de Favelas, e me convidou. Lá no Paraná eu já havia começado um trabalho com favelas, mas ainda era um trabalho muito assistencialista. Eu encontrei duas coisas em São Paulo: as pastorais mais populares, que hoje são chamadas de pastorais sociais, e as comunidades de base, na periferia de São Paulo. Então, comecei a minha atuação mais direta no movimento de favelas.
“Naquela época, a Luiza Erundina era vereadora e a gente ajudou a fundar o Movimento Unificado de Favelas, o MUF, um dos movimentos mais importantes da década de 1980. Naquele momento, ocorriam muitas remoções de favelas na cidade de São Paulo, muitos despejos. O Brasil estava passando por processos importantes de transformação, era o fim da ditadura militar. Havia uma série de movimentos no país. De moradia, de favelas, o movimento sindical em São Bernardo do Campo, a articulação dos movimentos no campo, o MST; e nós, dos movimentos urbanos, estávamos também na discussão da Anampos, Articulação dos Movimentos Popular e Sindical, de onde surgiu a Central de Movimentos Populares, a CMP.
“Uma parte do movimento social estava participando da constituição do movimento de Reforma Urbana em nível nacional. Naquele momento, a expressão ‘reforma urbana’ era praticamente abstrata, quase ninguém utilizava. Era uma coisa muito da academia e havia uma articulação nacional, que se chamava Articulação Nacional do Solo Urbano [Ansur]. A Ermínia Maricato estava nesse movimento, assim como o Miguel Baldez, no Rio de Janeiro, o Ari Vanazzi, no Rio Grande do Sul – que agora é prefeito de São Leopoldo –, o Paulo Teixeira, ainda muito jovem, o Luiz Kohara, de São Paulo, a Julia Ester e o Roni, de Goiânia. Havia uma articulação grande. A Lucia Moraes, professora da UFG, que foi relatora nacional sobre o direito à moradia, Nelson Saule, Nabil Bonduki, Raquel Rolnik, enfim, todas essas pessoas estavam no movimento da Reforma Urbana.
“Eu não tinha atuação nacional, estava aqui em São Paulo participando diretamente da luta dos movimentos de favelas, que acompanhei de uma maneira muito intensa. Sempre morei na região sudeste de São Paulo, entre Ipiranga, Vila Marina e Jabaquara, e atuava na Pastoral de Favelas da Região Episcopal do Ipiranga. Naquele momento, entre os anos de 1984 e 1985, começou um processo intenso de ocupação de terras na cidade de São Paulo. Foi quando surgiu a favela de Heliópolis, e a gente participou de forma intensa e apoiou a ocupação e toda a luta dos moradores de Heliópolis contra a grilagem e contra os grileiros que queriam vender terra dentro da favela. Havia também um frei dominicano chamado Frei Sérgio Calixto, que já faleceu. A gente participou dessa luta junto com outros companheiros da Pastoral de Favelas. O Raimundo Bonfim, hoje coordenador da CMP, surge como liderança desse processo resistência.
“A partir daí, eu comecei a fazer uma luta de forma mais articulada, saindo da luta local, que era na Pastoral de Favelas, para articular também o movimento em nível municipal. Consolidamos o Movimento Unificado de Favelas, que atuava basicamente em três frentes: a luta pela água, pois não havia água nas favelas, pelo direito à luz elétrica e pela posse da terra. A luta era pela Concessão do Direito Real de Uso (CDRU). Naquele momento não havia o instrumento da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. Assim, o movimento lutou muito CDRU – conforme o Código Civil o poder público poderia conceder uma área por até 99 anos e de forma gratuita. Foi toda uma luta pela concessão, para a pessoa ficar onde está e não ser despejada: nasceu daí, da luta dos movimentos. E mesmo a ideia e a consciência de urbanização nasceram da própria luta do movimento de favelas. Havia uma musiquinha que a gente cantava nas manifestações, que era mais ou menos assim: ‘Não, não, não nos moverão, como uma árvore, plantada junto ao rio, não nos moverão…”. Essa ideia de não sair da região era muito forte no movimento.
“Em 1987, nesse contexto de ocupação de terra, os movimentos enfrentavam uma baita repressão, principalmente da polícia e da guarda civil, na época do então prefeito Jânio Quadros. Então a gente começou a organizar o movimento do qual até hoje a gente participa, a União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. Em 1988, a Luiza Erundina ganha a eleição municipal. Na gestão da Luiza, a gente consolida algumas políticas que a gente já começava a reivindicar, mais associadas ao direito ao teto, à moradia. Assim, começava avançar outra pauta. Naquele momento, o movimento da Constituinte de 1988 havia sido, pelo menos em parte, vitorioso, pois tínhamos garantido alguns instrumentos de política urbana nos artigos 182 e 183 da Constituição: o Plano Diretor, o direito ao usucapião, a função social da propriedade.
“A questão do poder local, o movimento municipalista, o ‘modo petista de governar’, todo esse processo local era muito forte. Então, tudo que o PT fazia era muita novidade, não só porque estava inaugurando um novo jeito de governar as cidades, mas também porque estava inaugurando uma série de políticas que até então ninguém conhecia, mas que já estava presente em nossas pautas há muito tempo, desde antes da época da ditadura, e que havia se consolidado no Movimento de Reforma Urbana. Já estava sendo construída na cabeça de muita gente que vinha da universidade e das lutas sociais. Nesse período, a gente não apenas consolida nossa agenda local de luta – como as políticas de mutirões aqui na cidade de São Paulo – como também constrói uma agenda nacional, com a luta pelo Fundo Nacional de Moradia Popular.”
A luta pelo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS): avanços e retrocessos na Política Nacional de Habitação.
“A agenda local de São Paulo permitia e dava força aos movimentos. Naquele momento, a Ermínia Maricato era a secretária de Habitação e o Nabil Bonduki era o superintendente de Habitação Popular. É posta em prática uma política de urbanização de favelas e de construção de moradia por autogestão, alavancando uma agenda nacional para a construção de uma política nacional. Desde a extinção do BNH em 1986 não havia política nacional alguma. Então, a partir de 1991, com a agenda política de São Paulo, a gente alavanca um processo de luta em nível nacional. Naquele momento, já havia o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM). Em conjunto com a Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores), a Central de Movimentos Populares e a União Nacional por Moradia Popular, a gente começa a articular um projeto de iniciativa popular para instituir o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social [FNHIS]. Assim, especialmente por nossas conquistas em São Paulo, conseguimos construir essa articulação nacional – entre idas e vindas e muita luta social, o processo para a aprovação do Fundo Nacional de Moradia Popular durou mais de 15 anos.
“Mesmo conseguindo coletar e levar ao Congresso Nacional, em novembro de 1991, o projeto do FNHIS, com mais de 1 milhão de assinaturas, nós não possuímos ainda um sistema nacional de habitação de interesse social no Brasil. Não como defendíamos, que seria toda a política nacional articulada ao Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que teria um conselho gestor, transferindo recursos de fundo a fundo nos estados e municípios. Mas o que ocorreu de verdade é que a política de habitação que existe hoje no Brasil está assentada no PAC – praticamente, projetos de urbanização de favelas – e no Programa Minha Casa Minha Vida. Não há controle social algum. A crítica de fundo a esses dois programas é esta, não há controle social. Foram gestados praticamente no seio do governo Lula e nenhuma deliberação importante passou pelo Conselho das Cidades. E mesmo no caso do PAC, dos projetos de infraestrutura e de urbanização de favelas, foi um processo de negociação direta com os governadores e prefeitos das capitais. Não passou por nenhuma discussão no Conselho Nacional das Cidades – dado o próprio caráter do conselho, que não tem poder de decisão, não é um conselho deliberativo.
“O FNHIS está esvaziado. Não tem nenhuma incidência na agenda da política de habitação no Brasil, porque os recursos do Minha Casa Minha Vida Entidades estão em outro fundo – no Fundo de Desenvolvimento Social [FDS] – e os do Minha Casa Minha Vida está em outro, que é o FAR [Fundo de Arrendamento Residencial]. Então, são dois fundos, além do FGTS e do FNHIS. É um conjunto de fundos sem grande articulação entre si. Agora, do governo Lula para cá, há uma tentativa de articulá-los, mas cada um tem um conselho específico. Isso gera muitos problemas para a política nacional de habitação. Apenas o FNHIS está articulado ao sistema nacional de habitação. O FDS, que é o fundo para habitação para famílias de baixa renda no Minha Casa Minha Vida Entidades, não conta com a participação do movimento popular – conta com as centrais sindicais, mas o movimento popular não tem um assento.
“O Conselho Nacional das Cidades apenas emite recomendações para os fundos, mas política e juridicamente não tem gestão nem controle de gestão sobre eles. Este é um ponto central: como nós vamos fazer para trazer essa quantidade enorme de dinheiro, tanto do Minha Casa Minha Vida quanto das obras do PAC, para dentro do controle social? Por isso é que nós somos surpreendidos com casos como o da empreiteira Delta, porque o controle social é muito pequeno sobre essa política.”
Os instrumentos da política urbana e os avanços do capital imobiliário no território
“No Brasil, fizemos um processo muito intenso de luta para a construção de políticas macro, de marcos regulatórios importantes para a política habitacional e para a política urbana. Planos locais de habitação, planos de mobilidade, planos de saneamento, planos diretores, conselhos… Mesmo que tenhamos ainda dificuldade de articulação dentro da construção do sistema nacional de habitação de interesse social, construímos muitos marcos regulatórios, desde a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, da Medida Provisória 2.220 – que garante a concessão especial para fins de moradia, considerado uma espécie de ‘usucapião de áreas públicas’ –, e mesmo a inserção do usucapião urbano na Constituição Federal.
“Estabeleceu-se um conjunto de legislações importantes para se avançar na política urbana no Brasil. Pelo menos essa era a expectativa que tínhamos. Só que, pese todos os avanços na legislação brasileira, que é referência no mundo, não conseguimos colocar travas importantes na especulação imobiliária. Quer dizer, a gente não conseguiu mexer em uma questão central: o problema da terra urbana. Há uma apropriação pela burguesia da nossa concepção de política urbana. Por exemplo, o Gilberto Kassab [prefeito de São Paulo] e o Police Neto [vereador de São Paulo pelo PSD, mesmo partido de Kassab] aprovaram o IPTU progressivo no tempo, entendendo que isso pode significar a possibilidade de mais apropriação pelo capital imobiliário, que é a política que os interessa. Porque o centro da questão não está resolvido: como você faz para repartir e garantir que a terra urbana possa de fato ser destinada para famílias de baixa renda?
Não é a terra – como nos projetos do Minha Casa Minha Vida – no fim do mundo, na zona de expansão urbana. Se olharmos os projetos, vemos que grande parte deles é feita onde “Judas perdeu as botas”, muito longe das cidades, na Cidade Tiradentes, no Itaim, em Itaquaquecetuba, em Suzano. Cidade Tiradentes está sendo um lugar onde está concentrando muito e também no extremo sul da Zona Sul, de M’ Boi Mirim para lá, onde não há transporte. Construímos uma política urbana, mas não conseguimos resolver o problema central do acesso à terra. Acesso à terra em áreas centrais, áreas urbanizadas ou regiões consolidadas da cidade. O que a gente está vendo cada vez mais é o capital imobiliário, especulativo, e as grandes incorporadoras imobiliárias se apropriarem desses territórios, com o apoio e articulação do poder público.
“Os instrumentos que a gente avaliou como positivos para fazer avançar nossa agenda política estão sendo apropriados pela burguesia. Um deles, por exemplo, é a concessão urbanística que hoje dá a garantia legal ao Projeto Nova Luz. É um instrumento que nós inventamos lá no Plano Diretor. Aliás, a prefeitura não para de dizer isto: ‘Foram vocês que criaram o instrumento’. Essa é uma discussão central. O que podemos fazer para que nossos instrumentos não sejam apropriados pela burguesia, pelo capital especulativo? Outro instrumento são as Operações Urbanas. Apesar de não serem uma invenção nossa, foram incluídas no Plano Diretor para servirem como uma forma de garantir que se estabelecessem convivências de diversos grupos e faixas de rendas dentro de um mesmo território. Mas, hoje, as Operações Urbanas representam a expulsão dos moradores de comunidades pobres, e não há garantia alguma de que depois essas pessoas morem nesses territórios.
“Serão expulsas pela ação direta do empreendimento ou de outra maneira, sendo impedidos de alguma forma de vir a morar ou ficar naquele território. O caso do Jardim Edith é emblemático. E a prefeitura está fazendo um empreendimento que é extremamente perigoso para o povo. São torres enormes, com pouca participação social na construção do projeto. Tem um monte de gente no Jardim Edith que diz que não cansa de passar gente de classe média, média-alta, querendo comprar apartamento na planta, porque está na avenida Jornalista Roberto Marinho com a avenida Berrini, naquele entroncamento, perto da ponte Estaiada, numa região hoje supervalorizada – e é uma Zona Especial de Interesse Social. Existe uma pressão do entorno para que as pessoas não fiquem ali. Já houve uma representação no Ministério Público contra os moradores. Enfim, toda uma ação de criminalização da comunidade no sentido de tirá-la dali.
“O projeto habitacional só está sendo realizado por pressão social e porque a Defensoria Pública entrou com uma ação judicial. A favela Jardim Edith era enorme, mas estão construindo apenas 240 apartamentos –que abrigarão cinco ou seis vezes menos o número de famílias que havia. Inclusive, há outra comunidade (citada no livro da Mariana Fix) na zona Sul que se chama Jardim Edith: trata-se de grande parte das famílias da antiga favela do Jardim Edith que estavam no eixo da Operação Urbana Águas Espraiadas, removidas para os mananciais. Então, essa é a lógica perversa de apropriação dos instrumentos, com nomenclaturas diferentes, sendo utilizados pelo Brasil afora. Os modelos de apropriação do território são feitos com nomes diferentes, mas os instrumentos se equivalem. Vejamos a situação do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. A grande maioria do território é da União, que através de uma concessão foi entregue para o capital imobiliário construir um grande empreendimento com vista ao projeto olímpico de 2016, e expulsando os cortiços, a comunidade e tudo mais.”
Desafios para o próximo prefeito de São Paulo
“Um tema bem importante é a questão da moradia nas áreas centrais das cidades; por isso as ocupações dos movimentos sem-teto no centro. Neste e no próximo período, a tendência é ampliar o processo de luta e resistência dos movimentos nas áreas centrais, visto que há em curso no Brasil, nas grandes capitais, muitos processos de exclusão, expulsão e higienização. Então, o enfrentamento a esses processos higienistas tende a intensificar os conflitos e a luta das comunidades contra esse tipo de modelo de obras, projetos, concessões urbanísticas e cessões de terras para grupos e grandes projetos de infraestrutura nas áreas centrais, como o Projeto Orla, o Projeto Nova Luz, o Porto Maravilha e tantos outros. Os nomes mudam, mas o objetivo é o mesmo: expulsar a população pobre das regiões mais valorizadas ou readequar territórios abandonados das cidades para o capital imobiliário e o capital especulativo. A terra é uma commodity importante desse modelo; tem um valor, um preço de troca muito grande. E, nesse contexto, a disputa pela terra está ficando cada vez intensa nas cidades. Então, expulsar as populações e retomar esses territórios é uma agenda muito forte do capital imobiliário.
“Outra questão que vai ser discutida e acho que vai ser aprofundada é: apesar de o Programa Minha Casa Minha Vida ser federal, como os municípios podem aportar recursos para viabilizar o programa para as famílias que ganham de zero a três salários mínimos. Esse foi um debate também feito com a Dilma, porque hoje grande parte dos recursos do programa ainda não atende as famílias de zero a três salários mínimos, mas sim as famílias de renda mais alta, acima de três salários. Não estou falando das obras do PAC, estou falando do dinheiro do Minha Casa Minha Vida. Essa é uma deficiência do programa, por causa do preço da terra, da burocracia da Caixa Econômica Federal e das dificuldades de viabilizar projetos nas prefeituras. Então, como podemos melhorar a articulação com o governo federal para viabilizar moradia para as famílias de baixa renda nas áreas consolidadas das cidades, não mais no fim do mundo?
“Outra questão é a das favelas, porque há um processo muito intenso de favelização nas cidades, apesar de existirem alguns projetos de investimento nas favelas tradicionais. Mesmo no Rio de Janeiro, em São Paulo, Salvador, Recife e outras cidades do Brasil, há investimentos, mas, na contramão disso, acontece um espraiamento das cidades e das regiões metropolitanas. O processo de degradação da moradia e de favelização também é intenso e essa população está indo para algum lugar, não é verdade? Vai para o alto dos morros, para as ocupações dos cortiços verticais – como é o caso, aqui em São Paulo, da Prestes Maia e da Mauá – ou para a periferia, para o fundão da cidade. Como diz o Gegê, militante do movimento sem teto: ‘o povo está sendo empurrado para a periferia da periferia’.
“Então, a gente precisa pautar estas quatro questões: o problema da terra, que vai aparecer de novo porque muitas cidades estão fazendo um processo de revisão do Plano Diretor; os conflitos fundiários e os despejos; a questão do preço da terra, da garantia de viabilização de programa para as famílias de baixa renda nas áreas centrais; e a favelização das cidades.”
A ambiguidade das políticas urbana e habitacional atuais e os despejos
“Há um dado que eu acho que a gente precisava discutir – sobre o qual o professor Orlando Junior, da UFRJ, do Centro de Estudos da Metrópole e do Fórum Nacional da Reforma Urbana, tem falado: existe um componente de resistência nessas comunidades, mas também há certa ambiguidade na política urbana e habitacional atual. Uma parte da comunidade é perseguida e expulsa, mas outra parte recebe algum tipo de benefício. Não dá para falar que todo mundo está sendo expulso e jogado. Não é isso o que está acontecendo. Se a gente vê o que aconteceu em Paraisópolis, em Heliópolis, em várias comunidades em São Paulo, a gente vai perceber isso. Há uma ambiguidade. Ao mesmo tempo em que se tem uma forte perseguição a uma parcela da comunidade – por exemplo, no São Francisco há obras e empreendimentos que vêm ganhando prêmios internacionais – existe uma contradição, uma ambiguidade no interior das propostas e dos projetos.
“O que estou querendo dizer é que não podemos afirmar que estão todos sendo expulsos e jogados. Existe um processo de cooptação por esse modelo de urbanização e de cidade que está sendo construído. Tanto que a prefeitura tem feito propaganda intensa na televisão e nos meios internacionais sobre isso: Cantinho do Céu, Paraisópolis… Temos de questionar como se deu esse processo. Como são construídos os projetos, qual é a participação da comunidade e onde estão as pessoas que não foram atendidas? Eu tenho acompanhado um conjunto grande de comunidades aqui na cidade de São Paulo e acho que não é diferente em outras cidades no Brasil. Temos tem visto também a questão no Rio de Janeiro. As comunidades são tratadas com extrema violência.
“Em São Paulo, acompanhamos o caso de uma comunidade de 80 famílias chamada Cantinho da Paz, do lado do Jardim Zoológico, na região Sudeste, perto de Diadema e São Bernardo do Campo. A subprefeitura começou a ameaçá-la. Em parceria com a Defensoria Pública, conseguimos uma liminar parcial dizendo o seguinte: as famílias que estavam dentro da área há mais de cinco anos deveriam receber um atendimento habitacional da prefeitura e as famílias que estavam há menos de cinco anos deveriam receber bolsa-aluguel, algum atendimento provisório. A subprefeitura não só não acatou como em novembro do ano passado despejou com extrema violência as famílias de forma administrativa, por cima de qualquer decisão judicial. E como a comunidade tinha baixo poder de resistência, foi dizimada.
“Da mesma forma, a prefeitura tentou remover duas comunidades próximas uma da outra, uma chamada Vila da Paz e outra chamada Vila Cristina. Simplesmente são comunidades que estão ali há 40 anos. A Vila Cristina está há mais de 40 anos – quando eu cheguei em São Paulo, em 1983, já estava lá. A Vila da Paz estava há mais de 20 anos, pelo menos. Houve um processo de luta de resistência da comunidade. Eles queriam remover a favela e chegaram da noite para o dia marcando as casas das pessoas.
“A gente só assistiu a isso naqueles filmes de perseguição aos judeus, em que os nazistas marcam as casas das pessoas. Essa coisa de marcar as casas é meio bíblica. As casas eram marcadas com tinta. Isso é histórico. Em Israel tem muito disso também, de marcar e demolir as casas dos palestinos. O ato de derrubar casas das pessoas sem que elas possam se defender é fruto de governos extremamente autoritários, e não é algo recente. É claro que o nazismo é o que está mais perto da gente e nos faz lembrar esse tipo de coisa, de marcar a casa e demoli-la. A pior coisa que existe é ouvir do pessoal da comunidade que a pessoa sai de casa de manhã para trabalhar e quando chega à noite ela está toda pichada e marcada. A pessoa se assusta. Além disso, você fica estigmatizado, pois todo mundo que passa pela rua vê sua casa marcada. É como se você estivesse marcado.
“É uma questão que a gente vem vivendo não só na cidade de São Paulo, é um fenômeno nacional: demolir as casas das pessoas, de arrancá-las de suas casas. E não raras vezes isso vem associado a grupos. Foi o que aconteceu na Favela do Sapo, por exemplo, onde havia aquele senhor – que denunciamos – que se chamava Evandro e entrava na comunidade. Falavam que ele ia armado e fazia ameaças. Há fartas denúncias, que chegaram ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Ele passou por várias comunidades de São Paulo, ameaçando as pessoas.
“É importante que a gente faça esse resgate porque depois ali vira outro projeto, outra coisa, aquilo some e parece que a história é outra. Eu lembro que em 2005 teve aquela ocupação enorme do MTST em São Bernardo do Campo e agora há um centro de distribuição das Casas Bahia. Era um terreno grilado pela Volkswagen, que depois foi vendido. Havia problemas fundiários, que inclusive permitiram segurar a ocupação por um período. Mas, depois, com a força que a Volkswagen tem, as famílias foram despejadas e o terreno virou um centro de distribuição das Casas Bahia. Quem não conhece essa história passa ali e não sabe o que aconteceu se ninguém contar. E o mesmo acontece com muitas dessas comunidades: você tira, violenta, depois você muda o território e ninguém sabe mais o que aconteceu.
“É um pouco isso que vem acontecendo em todo o Brasil, em função desse processo de obras, de projetos, de infraestrutura, de megaeventos, megaprojetos, mas principalmente por força da especulação imobiliária. É aquilo que a gente falou no começo: não temos nenhum tipo de trava para a especulação imobiliária no Brasil. Ninguém consegue controlar o preço da terra e o processo de sua apropriação é extremamente violento.”
A política de urbanização de favelas: as contradições e os desafios
“Paraisópolis e Heliópolis, por exemplo, recebem grandes intervenções da prefeitura. Tem recurso do PAC, tem muito dinheiro do governo federal. Essa política está no Brasil inteiro. O processo de construção dessa política não raras vezes é feito com muita truculência pela prefeitura, com remoção das pessoas, sem diálogo na construção dos projetos. São contratados grandes escritórios, arquitetos famosos como Ruy Ohtake e outros, que estão entrando, assim como as grandes empreiteiras – a OAS, Odebrecht e outras –, nos programas de urbanização. Virou um grande filão de mercado para investimento e para ganhar dinheiro, porque tem muito dinheiro. São dois processos: um é muita violência para as pessoas que resistem às intervenções, com remoção, cheque-despejo, aquele programa de parceria social com R$ 300 por mês; outro é a cooptação. Existe essa via de dupla mão e esses projetos ganham certa legitimidade na comunidade.
“Estamos acompanhando agora o processo da Operação Urbana Águas Espraiadas, não o que afetou o Jardim Edith, mas um novo processo da nova etapa da Operação Urbana. A prefeitura tem feito reuniões com as comunidades e se legitima por conta disso. É muito difícil mostrar às famílias que muitas delas não vão ser atendidas no âmbito da Operação Urbana. Essa é a lógica da agenda da Prefeitura de São Paulo, mas não é uma lógica só de São Paulo. No Rio de Janeiro também é assim – a prefeitura carioca está fazendo isso para poder fazer os VLTs, a Transcarioca, o Porto Maravilha. Tem muita gente em situação de risco e, às vezes, a moradia onde as pessoas estão vivendo é um verdadeiro inferno. Muitas vezes pagam aluguel na favela, no cortiço, existe uma situação social que é bastante problemática e complexa. Aí, quando oferecem uma casa, na Zona Norte do Rio, distante do centro, as pessoas aceitam. Há os que resistem e há os que aceitam. Esse processo ganha legitimidade por causa dessa ambiguidade, e dificulta, em alguns momentos, nossa mobilização interna na comunidade local.
“Estou colocando essas questões porque a gente não pode ser ingênuo e dizer que o povo que está lá está contra. Não é assim. Tem gente que aceita os R$ 300 por mês da prefeitura. A falta de transparência dos projetos e essa dúvida sobre se vai haver remoção ou não, essa insegurança – as pessoas ficam praticamente até o último momento para saber se vão ser removidas ou não – fazem parte da estratégia do jogo nesse processo todo. No caso da obra do Rodoanel na avenida Jacu-Pêssego, os viadutos estavam chegando e, quando chegaram, a prefeitura e o governo estadual, no caso a Dersa, fizeram um processo muito violento. Algumas pessoas receberam R$ 3 mil e outras receberam R$ 100 mil. Teve muito dinheiro.
“Em alguns casos, as empresas pagaram em dinheiro vivo para as pessoas, porque – outra invenção da prefeitura e da Dersa – muitas vezes quem faz a negociação direta com a comunidade não é a prefeitura, mas uma empresa terceirizada. Então, o técnico social da prefeitura é apenas um agente de controle, muito por cima, mas quem está fazendo todo esse processo são as empresas terceirizadas. No caso de muitas comunidades quem dá o dinheiro do aluguel é a empreiteira. As pessoas vão lá na sede da empreiteira receber o dinheiro. O fato de o público e o privado estarem misturados nesse processo faz as pessoas não saberem direito com quem elas devem falar, quem é o interlocutor de fato. Às vezes há um técnico social, mas que não tem muito poder também. E aí, muitas vezes, as pessoas ficam sem saber como intervir em uma instância superior.
“Existem todos esses problemas, mas claro que há muita resistência. As comunidades tem contado muito com o apoio da Defensoria Pública, do Ministério Público e com as organizações locais para fazer a resistência, mas é muito difícil resistir. Os projetos acabam saindo. Ali no São Francisco, que é um projeto da prefeitura e do governo do estado, estão fazendo uma alça de acesso ao Rodoanel na Jacu-Pêssego e cerca de 3 mil famílias foram removidas. As pessoas foram arrancadas, com ameaças, com perseguição à comunidade. Às vezes, a pessoa recebe uns R$ 5 mil da prefeitura, se aloja em outra favela, não muito longe dali, e acaba, depois, sendo removida de novo. É uma lógica da remoção e do despejo. A gente viveu muito isso na época da reforma da Marginal Tietê, quando foram removidas várias favelas. Muitas famílias acabaram indo para a Favela do Sapo, que depois foi removida também. Eles tiraram primeiro a favela da Aldeinha, uma favela antiga, cuja regularização, inclusive, era determinada por uma ação judicial. A Aldeinha tinha mais de 30 anos, ficava ali na ponte Julio Mesquita, perto da Marginal. Havia outra favela, chamada Vila da Paz, que também foi removida. Uma parte de seus moradores acabou indo morar na Favela do Sapo, que foi novamente removida. E para onde essas pessoas foram? Parte foi para outra favela, mais à frente, chamada Espama. Outro pedaço da comunidade foi para Brasilândia, numa ocupação na Cantareira chamada Favela da Tribo. E o que vai acontecer? A área da Favela da Tribo é de influência das obras do Rodoanel, então o que pode acontecer é essas pessoas novamente serem removidas para mais distante. É um processo extremamente perverso em termos de impactos dessas obras, desses projetos de infraestrutura, seja das operações urbanas, seja das obras de infraestrutura urbana da cidade. Pensam primeiro na obra e não pensam nos impactos sociais.
“A gente fez uma pressão junto ao governo federal para que fosse aprovada uma portaria no Ministério das Cidades sobre a situação das remoções. Nenhuma obra poderá ser feita se não previr, no começo, meio e fim, o atendimento habitacional às comunidades afetadas. Foi muita luta, muita briga, e o conteúdo da portaria foi aprovado no Conselho das Cidades. Numa reunião com a presidenta Dilma a gente pediu que essa portaria ministerial do Ministério das Cidades se transformasse em um decreto federal para todas as obras do governo, para não só tratar dos impactos das obras de infraestrutura do PAC, do PAC urbano, mas também das obras do Ministério de Minas e Energia, do Ministério dos Transportes. Para tentar minimizar ao máximo as situações de remoção e despejos e para que se preveja o atendimento às comunidades, para que as pessoas não fiquem à mercê do cheque-despejo das prefeituras, sofrendo todo tipo de arbitrariedade.”
Os recursos dos programas urbanos e habitacionais
“O Estatuto da Cidade foi aprovado em um momento em que vivíamos, com muita força, o Estado Mínimo, com o projeto neoliberal do presidente Fernando Henrique Cardoso a todo vapor. Havia pouco recurso para a questão urbana, para saneamento, obras de infraestrutura, de transporte. Hoje há bastante dinheiro para essas obras. Mas os instrumentos do Estatuto da Cidade estão sendo tratorados pelos atuais processos. Muitas comunidades que estão sendo removidas, que sofreram processo de remoção, eram Zonas Especiais de Interesse Social e tinham direito à concessão especial para fins de moradia, mas nada disso foi respeitado.
“A Medida Provisória 2.220 garante o direito subjetivo à posse: se você está morando num local há mais de cinco anos e está dentro daqueles critérios estabelecidos pela MP, você teria direito à concessão especial para fins de moradia. Só que as comunidades estão sendo removidas sem se respeitar nem o direito à indenização nem o direito à concessão. Porque se o direito à moradia é subjetivo, garantido pela MP, quando transferidas as comunidades deveriam carregá-lo com elas. Mas o que ocorre é que as pessoas são removidas, enxotadas e o máximo que estão recebendo são esses R$ 9 mil em 30 meses, R$ 300 reais por mês, no caso da Prefeitura de São Paulo.
“Esse é um grande problema. Quando há muito dinheiro, muito investimento e obras de infraestrutura, o Estatuto da Cidade praticamente perde o sentido, pois é a lei que deveria servir para travar o avanço do capital especulativo ou do capital imobiliário sobre as áreas que deveriam estar protegidas. Isso de jeito algum é respeitado: o próprio judiciário muitas vezes não atua sob a luz do Estatuto da Cidade, mas sob os conceitos da propriedade privada e do direito de propriedade absoluto. Sem levar em consideração que a propriedade deve exercer sua função social, acaba dando garantia e guarida para essa truculência dos Estados e das empreiteiras. É um processo muito delicado e difícil que as comunidades estão vivendo no Brasil inteiro em função desses grandes projetos e obras de infraestrutura.
“A PEC da Moradia é uma proposta de vinculação de 2% da receita do governo federal e 1% da receita dos estados e municípios para a habitação. Na audiência com a presidenta Dilma, ela já disse que não vai dar força para esse instrumento. Disse mais, que o tratamento de 1% da receita de estados e municipais é desigual. Hoje, os recursos do Minha Casa Minha Vida e do PAC estão próximos disso ou talvez um pouco mais de 2% dos recursos do orçamento federal. Essa vinculação é temporária, nós dissemos isso para a presidenta Dilma. Ela disse que não conhecia a proposta da PEC, que iria estudar e depois voltaria a conversar com a gente sobre a questão. Governo algum gosta de vinculação de receita, de engessar o orçamento, mas a gente acha que o percentual de 2% e de 1% dos orçamentos são mínimos e não implicariam um grande engessamento do orçamento. Seria uma garantia, pois a proposta da PEC não propõe engessar eternamente o orçamento – seria por 15 a 20 anos, ou até o equacionamento do déficit habitacional. Mas a proposta está parada no Congresso Nacional. É evidente que no Brasil o governo federal tem muito peso sobre o Congresso, portanto, se não houver o apoio do governo federal vai ser difícil aprovar a PEC.
“Mesmo com a pressão do movimento social, com o FNHIS foi assim. Foram 15 anos – de 1991 a 2005 – para ser aprovado na Câmara dos Deputados, no Senado e depois ser sancionado. Nesse período, por causa da falta de política de habitação, o déficit habitacional no Brasil quase dobrou e o adensamento das cidades aumentou muito. Nós avaliamos que o Minha Casa Minha Vida é um programa de governo, não é um programa de Estado. A ideia de se ter um orçamento vinculado por um certo período é estabelecer uma agenda de Estado para enfrentar o problema do déficit habitacional, com controle social.”
A resistência e as bandeiras de luta dos movimentos de moradia hoje
“Aqui em São Paulo, nós articulamos uma parceria com a Defensoria Pública em um processo chamado ‘Jornada da Moradia Digna’. Trabalhamos na organização da 4ª Jornada com o objetivo de fortalecer as comunidades para que assumam o papel de protagonista no enfrentamento dos despejos e remoções. Nós tratamos do direito à moradia. Mais do que o evento da Jornada, vale todo o processo de preparação, de ajudar as comunidades a se organizar, a visita, a troca; então, é uma experiência pedagógica também. A 1ª Jornada da Moradia foi em 2007. A 2ª Jornada foi em 2009 e tratamos do tema ‘Meio Ambiente e Moradia’. Na 3ª Jornada, tratamos dos megaprojetos e, na 4ª Jornada, em outubro, o tema foi a disputa pela cidade. Vamos tratar desta questão: como nós vamos fazer para fortalecer as comunidades para que elas façam a disputa pelo território, para que nele permaneçam. Acho que a Jornada é uma novidade interessante e uma tentativa de fortalecer as comunidades a fazer esse processo de resistência. Claro que é um processo de longo prazo, por meio do qual se constrói uma metodologia de organização e fortalecimento das comunidades.
“Os processos de resistência seguem os modelos mais ‘tradicionais’ de luta dos movimentos: as ocupações. No ano passado, a gente fez uma retomada das ocupações no centro, com mais articulação e intensidade. Foram realizadas 16 ocupações no centro. Então, o movimento retomou, de maneira mais maciça, essa luta, que estava um pouco desarticulada. Acho que esse processo de resistência e luta a partir das ocupações tende a continuar, apesar de a prefeitura tentar criminalizar. Ela pôs em vários prédios uma placa que vale a pena fotografar: “Este prédio está aqui para atender famílias de baixa renda. Qualquer ocupação, denuncie”. Mas o prédio está há muitos anos abandonado. Aqui no centro tem dois ou três prédios que têm isso, tem uma placa. É uma tentativa de criminalização dos movimentos. A prefeitura não dá nenhum tipo de apoio, parceria social ou atendimento se a pessoa participou de ocupação. Mais ou menos como o FHC fez com o MST: de não atender as ocupações. Fizeram um decreto que dizia que só tinha direito à terra desapropriada pelo governo federal quem não tivesse participado de ocupação. E agora estão fazendo isso aqui. Quem ocupa não recebe atendimento da prefeitura.”
As conquistas dos movimentos
“A maior conquista foi no processo de luta e organização, porque até agora todas as ocupações têm sido despejadas pela prefeitura. Há três reintegrações marcadas para acontecer: a reintegração da avenida Ipiranga, da avenida São João e da rua Mauá [no dia da publicação desta entrevista, a ocupação da Ipiranga já havia sido despejada e a reintegração da Mauá estava temporariamente suspensa]. Que são as três ocupações com maior visibilidade no centro, juntamente com a Prestes Maia. Conseguimos fazer uma negociação com o governo federal nos prédios do INSS, da Martins Fontes e da Maria Domitila, que são prédios do governo federal. O INSS diz que vai reintegrar a qualquer momento. Em relação aos prédios particulares, a prefeitura não tem dado nenhum tipo de apoio. De uma forma geral, temos grande dificuldade com a prefeitura, mas também temos dificuldades com o estado e com o governo federal.
“Normalmente a política tem sido entrar com o mandado de reintegração de posse para tirar as famílias, desocupar os prédios. É um processo que chamamos de criminalização dos movimentos sociais, que atinge também o movimento estudantil, atinge todo mundo.
“Esse processo de enfrentamento, que é duro, difícil, se renova a todo momento, se renova com as parcerias com a universidade, nos processos de organização do povo nas comunidades… Sempre estão surgindo novas lideranças – porque a gente também já está um pouco cansado –, e é isso que dá ânimo para a gente. Tem muita coisa nova nas ocupações. Há todo um movimento cultural interessante que vem acontecendo nas comunidades. Outras articulações e outras ações que não passam pelos processos oficiais, que estão acontecendo paralelamente nas comunidades, que vão fortalecendo e dando vitalidade cada dia mais a esses grupos, seja no centro, seja na periferia.
“Outro dia o cantor de Os Racionais, Mano Brown, esteve na ocupação da rua Mauá. Foi muito importante ele ter ido lá reafirmar a profunda relação entre a cultura popular e os movimentos. Chega de fragmentação, precisamos avançar na articulação. A gente tem acúmulo nessa luta histórica que vem sendo feita nos últimos 30 anos e por diversas vezes vemos que os governos não respeitam essas conquistas. Mas a gente vê que o povo está lutando.
“É isto o que a gente tem a dizer: estamos na luta! Temos vitórias. As parcerias com a Defensoria e com o Ministério Público têm sido importante para resistir. Outro dia tivemos a vitória dos ambulantes, o movimento ganhou força para continuar lutando. Outro dia, no Nova Luz. Isso vai dando fôlego para a gente continuar a luta!”
(*) Letícia Sígolo, Luciana Ferrara e Márcia Hirata são pesquisadoras do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (LabHab FAU USP).
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