Por que o governo adota a transparência das ditaduras? O que faz o governo dizer uma coisa e fazer outra totalmente diferente?
Gilda Cabral*
Não temos essas respostas, mas devemos pensar muito nessas perguntas. Recentemente, o governo sancionou a Lei de Acesso à Informação (LAI), criou sites, portais e telefones para contato direto com a população, estimulando denúncias de mau uso das verbas públicas. Ao mesmo tempo, embola e confunde as pessoas com a falta de transparência sobre os recursos e gastos governamentais. No campo das finanças públicas, retoma a prática da ditadura militar, na qual o Congresso Nacional e a sociedade não têm voz sobre os recursos públicos e nem acesso a informações que permitam monitorar e avaliar os gastos governamentais e as políticas públicas.
Discursos e dispositivos legais conflitantes nada têm com dialética, é prática autoritária mesmo. Além disso, tornam inviável o controle social do gasto público e dificultam o controle externo feito pelo Tribunal de Contas e Ministério Público. Entre os tempos de ditadura e o atual momento, a diferença básica é que agora tudo foi devidamente autorizado pelo Congresso Nacional. Mas o que, exatamente, tornou o controle dos gastos governamentais inviável?
A partir de 2013, parlamentares e sociedade ficarão totalmente dependentes do governo federal para saber as informações orçamentárias e aquelas relativas à execução financeira das ações que implementam as políticas públicas. Não há mais correspondência entre as leis que definem o Planejamento e o Orçamento da União devido ao grau de agregação adotado no Plano Plurianual (PPA) e na Lei Orçamentária Anual (LOA). Apesar das muitas normas legais sobre participação social, transparência e acesso a informações e ainda tantos discursos e intenções democráticas, o governo não está promovendo de fato a transparência. Se não forem derrubados os vetos à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) 2013, o governo tem autorização do Congresso para informar o que, quando, como e onde quiser.
Aparentemente, os parlamentares federais abdicaram de decidir e monitorar os recursos públicos, pois aumentaram de 31 (em 2002) para 96 as hipóteses de alteração da LOA por decreto, e ainda autorizaram ampla flexibilidade ao Executivo para abertura de crédito (20%) e alteração das verbas do PAC (30%) criando situações de total independência para o governo.
Nem ao menos autorizativo é o orçamento da União, pois com tanta flexibilidade e delegação de competências para o Executivo, a permissividade é total. O atual momento é muito semelhante aos tempos dos governos militares quando ao Congresso só cabia homologar os gastos do governo. O que se observa é uma inversão de papéis: onde o Legislativo propõe e o Executivo veta, como observamos no caso recente da LDO2013 e, por outro lado, tudo que é proposto pelo governo, o Parlamento aprova.
Toda essa flexibilidade dada ao Executivo traz sobreposição de regras, detalhamentos excessivos e situações específicas que prejudicam a compreensão do conjunto dessas autorizações, além de percentuais aplicáveis para aberturas de crédito cada vez maiores. Estes problemas, somados à generalidade aplicada no detalhamento das ações orçamentárias e da dissociação do planejamento (PPA) e orçamento (LOA), geram o seguinte questionamento: até que ponto a Lei Orçamentária é pra valer ou apenas uma peça formal de aceite homologada pelo Parlamento?
Para os movimentos de mulheres e feministas, atuar no campo das finanças públicas e no monitoramento dos recursos permitiu uma significativa educação política. Foi na militância e na luta por mais recursos que nos qualificamos e incidimos na política econômica do país. Foi monitorando o gasto público que mostramos quão desigual podem ser algumas políticas governamentais que reforçam o papel tradicional e reprodutivo das mulheres.
Nossa atuação nessa área trouxe mais que recursos financeiros para as políticas da igualdade. A bancada feminina no Congresso passou a receber subsídios do Orçamento Mulher e a atuar sistematicamente no processo e discussão das peças orçamentárias; os movimentos de mulheres se apoderaram de informações importantes, passando a propor ações governamentais concretas. Foi essa atuação que contribuiu para o entendimento de que as políticas públicas são um direito da cidadania e não apenas uma ação governamental para solucionar um problema da sociedade.
O governo perde muito ao inviabilizar o Orçamento Mulher
O Brasil era o único país que tinha o acompanhamento diário, com amplo acesso às informações sobre a aplicação dos recursos públicos voltados para as políticas para as mulheres. Para nossa tristeza, será justamente no governo da primeira mulher presidenta que o país não mais poderá ostentar tal façanha. Os orçamentos sensíveis a gênero (PSG) representam um esforço de décadas da ONU MULHERES que, no Brasil, teve sua implementação pela ONG CFEMEA em parceria com a SPM da Presidência da República, os movimentos de mulheres e feministas e o Senado Federal, através do SIGA (Sistema de informações sobre orçamento público).
O Orçamento Mulher tem mais de 10 anos de existência e presta inegáveis serviços às entidades, especialistas e pessoas que acompanham e avaliam as políticas do governo federal. É o instrumento principal para monitorar o gasto e a execução orçamentária e financeira das ações governamentais e políticas para efetivar os direitos das mulheres. Atualmente, com a generalização e agrupamento das ações da LOA, será impossível identificar o montante de recursos destinados às políticas para as mulheres. Como o planejamento governamental não é elaborado a partir da perspectiva de gênero, sempre haverá dificuldades para conhecer o montante real de recursos para implementar políticas para a igualdade. Contudo, até 2012 era possível ponderar e alertar para possíveis distorções dos valores alocados, o que passa a ser inviável a partir de 2013.
Na área das políticas sobre violência contra a mulher, por exemplo, o Cfemea conta com informações do gasto federal desde 1995 até 2012. Com as novas metodologias do governo federal, só nos restará acompanhar ações pontuais e específicas. A falta de continuidade histórica das análises é uma perda inestimável. E lamentavelmente todas essas mudanças metodológicas são passadas como “melhorias técnicas” quando na realidade são decisões políticas com consequências lamentáveis para o exercício da cidadania.
*Gilda Cabral é feminista, sócia-fundadora do Cfemea, aposentada do IPEA e especialista em políticas públicas.
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Compartilhada por Ney Guarani-Kaiowá Didãn.
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