No dia delas, com pouca expectativa de ganhar algo, se agarram a projetos de tornarem-se advogados, atores e, claro, jogadores de futebol
Arnaldo Viana
Camisetas e bermudas encardidas e bem gastas. Chinelos de dedo sujos de pó de asfalto. Em casa, não há computador nem TV a cabo. Não curtem feriadões em praias ou sítios. O que têm mesmo, e de sobra, são sonhos e a vivacidade natural da idade. E como são crianças, ninguém, em sã consciência, vem lhes dizer que muitos dos sonhos morrem como sonhos. Mas não são infelizes. Mesmo que hoje, Dia das Crianças, tenham mais vontades do que esperança de vê-las atendidas, a infância tem o poder de torná-los o que desejam, sem nem mesmo um estalar de dedos. De repente, quase todos se transformam em Neymar e lá se vão, rua afora, correndo atrás da bola de plástico.
Entre essa ou aquela brincadeira, um direito e uma obrigação: frequentar a escola. Mas, de fato, há outro dever, exigência da origem pobre: o trabalho. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 havia 9.539 crianças de 10 a 15 anos no trabalho informal e a serviço de pequenas e microempresas em Belo Horizonte – 151.193 no estado. Mas parece haver mais. Vendem de balas a panos de chão; fazem malabarismos ou limpam para-brisas. Tudo para não dizer que não fazem por merecer os trocados que pingam de vidraças escuras e semiabertas dos carros.
O que encanta nessas crianças é a facilidade para sorrir. Contar que é filho ou filha de mãe separada, que precisa levar para casa o dinheiro da conta de luz ou até do feijão é tão natural quanto dar um chute num bagaço de laranja. Esta semana, homenageadas no calendário, não tiveram aula e foram para as ruas fazer o que normalmente só fazem aos sábados e domingos, em vez de brincar: vender. Mas nem todos têm algo para comercializar, não diretamente.
É o caso de Marcelo(*). Nos fins de semana, o menino de 12 anos pega Aureli de Souza, de 40, e o põe dentro do ônibus que sai do Morro do Papagaio, Região Centro-Sul, rumo ao Centro. Depois, carrega-o nas costas, do ponto do coletivo até a calçada da Rua Curitiba, perto do Mercado Central. Aureli tem as pernas atrofiadas – resultado de paralisia infantil. “Ele mora comigo, meu irmão mais velho, minha prima e minha mãe. Se eu ganho para isso? Não. É como se ele fosse da família.” Mas Aureli não tem casa? “Tem, mas os pais brigam muito com ele; minha mãe trata como se fosse filho.”
No mercado, o menino não tem ideia de quanto o irmão emprestado consegue. Pode ser R$ 20, R$ 30, até R$ 40 por dia. Depende de como anda o humor da humanidade, que esconde a caridade quando está indignada. Mas isso não preocupa o coração do pequeno, que é maior do que o mundo. E uma coisa ninguém lhe pode tirar: o sorriso de menino. “De manhã, tenho atividade na Casa da Acolhida (projeto assistencial de uma religiosa). De tarde, vou para a escola.”
Se de 10 garotos, oito querem ser jogadores de futebol, Marcelo é uma das exceções. “Quero ser ator. Fiz representações na Casa da Acolhida e gostei. Sou fã do Didi Mocó.” No Dia das Crianças, ele não pede bola nem bicicleta de presente. Sabe, quase com certeza: não ganhará nada disso hoje. Mas os olhos brilhariam se surgisse a chance de aprender interpretação. “Será que consigo?”, pergunta, sem muita pretensão, preparando-se para seguir a vida. É hora de botar o amigo nas costas e voltar para casa.
O mundo e a bola
Longe dali, a bola azul, de plástico, quebra a monotonia de uma manhã de vendas baixas no cruzamento das avenidas Silviano Brandão e Andradas, no Bairro Horto, Região Leste de BH. Basta a redonda quicar no asfalto para Samuel, Gustavo, Márcio e Rafael, todos de 12 anos, moradores dos Bairros Boa Vista e Nova Vista, se esquecerem de que ainda há muitas balas para vender nas caixas. Na pista, entre carros, improvisam uma pelada. Um risco danado. Mas quem disse que menino tem noção de perigo?
Como na maioria dos casos, eles buscam nas ruas complemento da renda familiar. “Nós estudamos. Vendemos balas no fim de semana. Mas esta semana não tem aula, então estamos aqui”, conta Samuel. O discurso, na ponta da língua, não é por acaso: frequência à escola é uma exigência dos programa sociais do governo federal. Mas é preciso trabalhar também. “Tem as coisas para comprar em casa”, acrescenta Gustavo.
Os garotos compram a caixa com 20 embalagens de bala por R$ 7. Vendem cada unidade por R$ 1 no semáforo. “De 10h às 15h, a gente faz até R$ 20. Teve um dia que fui para casa com R$ 25”, contabiliza Márcio. Os quatro gostariam de ganhar bicicletas neste Dia das Crianças. Facilitaria o transporte até o Horto. “Mas eu falo por falar. Sei que não vou ganhar”, diz Samuel. “Eu tinha uma bike, meu amigo aqui (indica Rafael) também tinha. Mas uns moleques passaram aqui e roubaram.”
Sem esperar muito pela bike, o sonho naquela esquina é jogar futebol profissionalmente. Mas não é unanimidade. Gustavo surpreende os amigos: “Quero ser advogado. Tem muita gente que precisa de ajuda”. Aos demais, nem é preciso perguntar. Todos são atacantes, como Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho…
A bola azul quica na avenida e eles vão atrás, segurando nas mãos firmes as preciosas caixinhas de balas. Ninguém se atreve a contar aos meninos que um Messi, um Neymar surge a cada 10 anos entre, no mínimo, 1 milhão de candidatos a milionários no futebol. E lá, naquela esquina, por mais incrível que possa parecer, foi o pretenso futuro advogado quem melhor se saiu com a redonda nos pés.
(*) Para proteger a privacidade das crianças, todos os nomes desta reportagem são fictícios
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Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.