Por Cristiane Faustino[1]
Vésperas das eleições e em pleno ano de 2012 do século XXI. Um conhecido jornalista do Estado do Ceará, aliás, vinculado a um dos principais jornais locais, posta no seu blog (http://blog.opovo.com.br/
Para as pessoas que constroem pensamentos e práticas críticas, que fazem da sua vida em sociedade também um processo de intervenção no mundo, no esforço de transformá-lo num lugar melhor, sem desigualdades e injustiças de diferentes ordens, seja de classe, de raça, de gênero etc., a reação das mulheres é coisa óbvia e bastante legítima. Mas às reações críticas e também construtivas, o jornalista, no auge de sua alienação em relação à história das lutas das mulheres por uma democracia democrática, responde com nada menos do que uma velha e rasteira pérola da misoginia: “(…) Então tá. Na próxima vai a foto de uma de vocês! Vamos ver se agrada aos outros milhares de leitores”.
Ao sugerir que a queixa dos leitores, e em especial, a das mulheres, se deve ao fato de não serem elas as que estão no tal “Colírio do blog”, mais uma vez nos coloca como seres de mentalidades reduzidas ao desejo de ter nossos corpos admirados pelos homens. E desse modo, demonstra o mais alto grau de atraso intelectual no que se refere à politização — que, aliás, não é coisa recente, e qualquer bom jornalista teria obrigação ética e profissional de saber — das diferenças e desigualdades de gênero, da violência simbólica, dos estereótipos e tudo o mais, que não preciso citar aqui, mas que é fácil pesquisar, dada a vasta produção que versa sobre essas questões.
Esse tipo de expressão machista da mídia e, em especial dos jornalistas que em tese deveriam ter comprometimento com a democratização da vida, já que a sociedade os legitima no manuseio da informação e, portanto, da produção de pensamentos e idéias sobre o mundo, deveria ser absolutamente rejeitada, e por diferentes razões. Dentre elas por reproduzir o machismo, por desconsiderar a capacidade intelectual das mulheres, por nos situar como objeto sexual, por comprometer a democracia, por promover de forma naturalizada a violência simbólica que desde sempre impactou negativamente a vida das mulheres, e é uma das principais responsáveis pela produção da violência sexual, do aprisionamento das mulheres ao destratado mundo reprodutivo, por nos manter nos reles lugar da “sensualização inferiorizada”.
No caso do Blog em questão, é bom que se diga que a denominação “Colírio do blog” é uma seção onde nos entremeios das notícias sobre o mundo político e econômico — no qual, aparentemente, na visão do jornalista, as mulheres não fazem parte, ou pelo menos não estão em lugar importante — ele posta imagens do que considera “belas mulheres”. Assim, de modo indisfarçadamente machista, o jornalista mantém um lugar para as mulheres, onde a nudez e a sensualidade são exploradas, provavelmente também pra demonstrar sua própria masculinidade.
Dado o caráter “miúdo” desse tipo de pensamento, alguém poderia dizer: não vale a pena se manifestar, é sem “cura”. Talvez tenha razão, porque a cristalização do machismo é o maior pilar do patriarcado racista. Entretanto, nunca é demais dizer que uma intelectualidade defasada e que não se reflete a si mesma, que se utiliza de sua legitimidade pública para, ao seu bel prazer, disseminar toda sorte de alienação e reprodução de violências e violações é prática repudiável para o bem comum, por se tratar de uma perversão da democracia e da liberdade de expressão. Muito impressiona que um jornal que em muitos momentos e espaços produz informações importantes para a efetivação dos direitos humanos das mulheres, permita que esse tipo de postura seja produzida, reproduzida e legitimada em seu espaço público. Lamentável mesmo. Aproveito aqui pra fazer uma saudação ao jornalismo e aos jornalistas que zelam pelos cuidados éticos e se preocupam com o teor democratizante de seus trabalhos, que atualizam seus saberes e primam pela “desalienação” da vida: saibam, vocês são muito, e cada vez mais, necessários e necessárias!
[1] É Assistente Social, militante do Fórum Cearense de Mulheres e da Articulação de Mulheres Brasileiras, membro do GT Combate ao Racismo Ambiental da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e Relatora Nacional da Plataforma Brasileira dos Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.