“Cotas não atacam a raiz do problema”, diz Manuela Carneiro da Cunha

Antropóloga fala sobre “Negros, Estrangeiros” e diz que principal problema da educação é o ensino básico

Atores da peça "The Mysterious Ring" em Lagos, por ocasião do festejo da Abolição no Brasil

Helder Ferreira, Revista Cult

Professora emérita da Universidade de Chicago e uma das principais antropólogas brasileiras, Manuela Carneiro da Cunha, 69, está relançando Negros, Estrangeiros. Publicado originalmente em 1985, o livro traça, em sua primeira parte, um retrato estarrecedor do Estado escravocrata brasileiro do século 19 que, atemorizado com os trâmites que culminariam na Lei Áurea, passa a adotar uma política discriminatória e repressiva contra os negros, constrangendo-os a imigrarem para seus países natais no continente africano. Depois, remonta o destino dos ex-escravos imigrantes que se estabeleceram na cidade de Lagos, na Nigéria, e acabaram por formar uma burguesia local, adotando a nacionalidade do país que os rejeitou.

Ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Carneiro da Cunha é muito conhecida por seus estudos relacionados às questões indígenas brasileiras – como a coletânea Histórias dos Índios do Brasil (Companhia das Letras, 1992). Orientanda de Lévi-Strauss no início da carreira, ela dirige hoje no Cebrap (Centro Brasileiro da Análise e Planejamento) um projeto que estuda os efeitos das políticas culturais de patrimonialização nas populações tradicionais.

Em entrevista à CULT, Carneiro da Cunha defende as cotas em universidades públicas.

CULT – Negros, Estrangeiros narra a história de ex-escravos que reconstruíram suas vidas ao retornarem para a África, onde transformaram-se em membros da burguesia local. Por que este tipo de ascensão não foi possível no Brasil da época?

Manuela Carneiro da Cunha – No Brasil, negro, até prova em contrário, era necessariamente escravo. Os alforriados tinham de ter o máximo cuidado para não serem tomados por escravos fujões e escravizados de novo. Por isso evitavam sair da região onde eram conhecidos e alguns acabavam por se acomodar e se tornavam clientes, agregados, de seus antigos donos. Outros tentavam se estabelecer por conta própria no sertão.

Os trabalhadores forros urbanos não conseguiam competir com os senhores que queriam reservar certos mercados de trabalho para seus escravos: foi assim que os libertos foram alijados e impedidos de trabalhar no porto de Salvador. Não havia condições para uma ascensão social e financeira como aquela que se verificou na costa da África Ocidental.

Há semelhanças, quanto ao processo, entre os ex-escravos que retornaram à África e os imigrantes que vieram para o Brasil e depois voltaram a seus países de origem?

Há dessemelhanças: em geral, os imigrantes que voltaram para seus países de origem emigraram e voltaram por vontade própria. Não foi o caso dos africanos, que não só vieram forçados como voltaram deportados ou impelidos por uma política de expulsão.

Outra grande diferença é que os imigrantes geralmente voltam ricos. No caso dos africanos, ficaram ricos depois de voltar.

Mas há também semelhanças: os retornados, em geral, eram tidos por quase estrangeiros em seus países de origem e costumavam gostar de se distinguir da população local. Assim, os chamados “brasileiros” no norte de Portugal no século XIX eram os portugueses que haviam feito fortuna no Brasil e se aposentavam lá; hoje foram substituídos pelos “franceses”, os portugueses que haviam emigrado para França nos anos 1960. Os “brasileiros” se diferenciavam com araucárias diante de suas casas; os “franceses” hoje desfiguraram o norte de Portugal com pavilhões de estilo francês e telhas de ardósia.

As políticas de repressão contra os negros aplicadas pelo Estado no século XIX ainda hoje influenciam seus descendentes?

Certamente não ajudaram em nada a promover igualdade e a justiça para seus descendentes. Mas o que realmente cabe entender são as condições atuais. É nessas que podemos influir e são elas as que podem mudar o futuro.

O Legislativo acaba de aprovar cotas de 50% nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas, sendo que, dentro desse percentual, serão priorizados estudantes negros, indígenas e/ou de baixa renda. A senhora acredita que as cotas raciais em universidades públicas brasileiras são necessárias? Há quem diga que as cotas sejam uma forma de discriminação racial ao contrário. A senhora concorda?

“Discriminação ao contrário” é uma contradição em termos. A discriminação sempre é exercida contra os mais fracos, não contra os mais fortes. Cotas para estudantes de baixa renda e para negros e índios chamaram a atenção para as disparidades enormes deste nosso país desigual. A UERJ, que foi a primeira universidade a implantá-las, já mostrou que o desempenho dos “cotistas” é equivalente ao dos outros estudantes.

Nesse sentido, as cotas são boas, mas incompletas. Em primeiro lugar, não incluem bolsas para que o estudante se mantenha: isso faz com que os mais pobres não possam, por exemplo, cursar medicina, que exige tempo integral. A evasão torna-se um problema.

Em segundo, não atacam a raiz do problema, que é a qualidade insuficiente do ensino público fundamental e médio. Isso resultou numa perversa distorção: as melhores universidades são públicas, gratuitas, mas nelas só conseguem entrar os egressos do ensino médio pago. Lembro que até a década de 1960 o ensino público era considerado melhor do que o privado.

O que senhora pensa sobre o retrato do negro traçado pela mídia no Brasil? Ele é muito diferente do que é feito nos EUA?

Muitíssimo diferente. Nos EUA, há um cuidado exagerado (a nosso ver) com a correção política na representação do negro. As pessoas pisam em ovos o tempo todo. Desde os anos 1970, há separação até na audiência que se espera: donde o gênero de filmes e seriados cunhado blacksploitation”, dirigidos especificamente à classe média urbana negra.

O contraste com o Brasil é enorme: acabo de ler Cidade de Deus, de Paulo Lins. Há um parágrafo lá que é antológico, mas que não vou conseguir achar agora: mostra a ausência da figura do negro na mídia, no livro escolar e na indústria de entretenimento no Brasil. O parágrafo termina com “até o vovô-viu-a-uva é branco”.

Em sua opinião, qual é a relevância atual de Negros, Estrangeiros?

A relevância é, a meu ver, historiográfica, mas também teórica. Quer fornecer aos descendentes de africanos um pouco de sua história, mostrar como foi penosa a passagem da escravidão para a liberdade e como foi difícil o Estado brasileiro aceitar a presença de negros que não fossem mais escravos como parte da nação que então se construía. Sua contribuição, creio, é levantar o véu sobre a auto-imagem complacente que o senso comum brasileiro cultiva.

Ainda como contribuição historiográfica, mostra a constituição de uma das primeiras burguesias coloniais aliadas ao colonialismo que pipocaram por todo o mundo no século XIX.

Por outro lado, o livro analisa, a partir do caso dos “brasileiros” na costa ocidental da África no século XIX, como se constrói uma identidade étnica. Nesse sentido, tem uma ambição teórica que extrapola esse caso, na medida que advoga que qualquer identidade étnica se define em relação a outras identidades étnicas: é uma abordagem estrutural da etnicidade.

Por fim, tenho orgulho da pesquisa iconográfica que ilustra o livro.

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

http://revistacult.uol.com.br/home/2012/10/%E2%80%9Ccotas-nao-atacam-a-raiz-do-problema%E2%80%9D/

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