“Cento e onze que tinham pai, tinham mãe, tinham advogado, quem recorreu. Mas tinham várias pessoas que não tinham família. Eu creio que morreram aproximadamente uns 250. Eu distribuía alimentação no presídio. Então, naquele dia sobraram quase duas caixas de pão”, declara sobrevivente do massacre
Jorge Américo e José Francisco Neto, da Reportagem
Morador de Jundiaí, na Grande São Paulo, Sidney Francisco Salles, 45, é sobrevivente do massacre. Cumpriu quatro anos de prisão no Carandiru, depois de 17 assaltos a bancos mais sete cargas de caminhão. Sendo menor de idade nas primeiras infrações, só respondeu a dois processos. Quando questionado sobre o número de mortos, Sidney não hesita em concordar com o ex-funcionário da Limpurb. “Cento e onze que tinham pai, tinham mãe, tinham advogado, quem recorreu. Mas tinham várias pessoas que não tinham família. Eu creio que morreram aproximadamente uns 250. Eu distribuía alimentação no presídio. Então, naquele dia sobraram quase duas caixas de pão”, declara.
O ex-detento recorda que a explosão de um botijão de gás provocada por um incêndio na cozinha foi a “deixa” para que cerca de 340 homens dos batalhões de elite da Polícia Militar invadissem o pavilhão 9. O objetivo era conter um motim iniciado com uma discussão entre os renomados presos “Barba” e “Coelho”, mas a ação resultou em 3,5 mil disparos de grosso calibre. Nenhum PM foi alvejado.
A tese de que houve confronto armado entre policias militares e detentos não é sustentada pelas provas dos autos do processo, segundo apurou a Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru. O laudo do Instituto de Criminalística contradiz a alegação de legítima defesa apresentada pela cúpula da Polícia Militar. “Em todas as celas examinadas, as trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando sua arma para os fundos ou laterais”, descrevem os peritos. Além disso, “não se observou quaisquer vestígios que pudessem denotar disparos de armas de fogo realizados de dentro para fora das celas.
Chuva de canivete
A Comissão constatou que, apesar do grande tumulto e de sinais de fogo, não havia perigo de fuga. Também não havia reféns. Com a chegada da Polícia Militar, os presos começaram a atirar estiletes e facas para fora das celas, demonstrando que não resistiriam à invasão. Foram colocadas faixas nas janelas, indicando um pedido de trégua.
Sidney considera que a tragédia poderia ser evitada. “O Choque invadiu, no meu modo de dizer, de uma forma desumana. Se eles tivessem cortado luz, água, se tivessem cortado a alimentação, obviamente nós nos renderíamos”.
A modificação da “cena do crime” é outra violação apontada pela Comissão, pois destruiu provas valiosas que teriam possibilitado a atribuição de responsabilidades individuais pelas mortes. Os corpos foram removidos das celas e empilhados no pátio. “Os policiais mais os agentes penitenciários começaram a catar algumas pessoas pra carregar os cadáveres e eu fui uma das pessoas escolhidas. Carreguei aproximadamente uns 35”, relata Sidney.
O sobrevivente ainda denuncia que houve queima de arquivo. “Um policial falou: ‘aí negão, você e o outro aí sobe pra catar outro cadáver’. Quando eu subi pra catar o cadáver, vi que era o cara que estava ajudando a gente a carregar os outros cadáveres”.
Sidney é palestrante e dirige um centro comunitário de reabilitação para dependentes químicos. Depois do Carandiru, cumpriu mais três anos de detenção em outros presídios, mas garante que decidiu mudar de vida lá. Enquanto tentava deixar a cela no dia do massacre, um policial lançou um desafio sarcástico. “Ele estava com um molhinho que tinha umas 50 chaves e ele falou ‘olha moço, o milagre que vai acontecer é o seguinte: eu não sei qual é a chave do cadeado, mas a chave que eu pegar na mão e bater no cadeado eu vou torcer. Se eu abrir você entra. Se eu não abrir nós vamos te executar agora’. Naquela hora eu me apeguei com Deus. Na hora que ele colocou a chave no cadeado e torceu, o cadeado abriu.”
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