Em nome do futuro, Rio está destruindo o passado

Por Theresa Williamson e Maurício Hora*

Os Jogos Olímpicos de Londres terminaram no domingo, mas no Rio de Janeiro a batalha pelos próximos Jogos acaba de começar; as manifestações contra despejos ilegais de alguns dos moradores mais pobres da cidade estão se espalhando. De fato, as Olimpíadas do Rio parecem dispostas a aumentar a desigualdade em uma cidade já conhecida por essa característica.

Em julho, a UNESCO atribuiu a uma parte substancial da cidade do Rio de Janeiro o status de Patrimônio Mundial da Humanidade. É uma área que inclui algumas de suas favelas e morros em que vivem mais de 1,4 milhão dos seus seis milhões de habitantes. Nenhuma favela pode reivindicar maior importância histórica do que a primeira a surgir no Rio, a do Morro da Providência. No entanto, os projetos de construção olímpica estão ameaçando precisamente o futuro dessa área.

A favela Providência começou a se formar em 1897, quando veteranos da sangrenta Guerra de Canudos, no nordeste do Brasil, receberam a promessa de concessão de terras no Rio de Janeiro, que na época era capital federal. Ao chegarem, descobriram que não havia terras disponíveis. Depois de acamparem em frente ao Ministério da Guerra, os soldados foram removidos para um morro das proximidades, que pertencia a um coronel, mas não receberam os títulos de propriedade da terra.

Originalmente batizada de “Morro da Favela”, nome da planta espinhosa típica das colinas de Canudos, onde  haviam passado inúmeras noites, a Providência cresceu ao longo do começo do século 20, à medida que escravos libertos se juntavam aos antigos combatentes. Grupos de novos migrantes europeus também se estabeleceram por lá; esse era o único modo acessível de viver perto dos empregos no centro da cidade e no porto.

Com vista para o local por onde centenas de milhares de escravos africanos entraram no Brasil pela primeira vez, a Providência é parte de um dos sítios culturais mais importantes da história afro-brasileira, berço da criação primeiros sambas comerciais, onde floresceram tradições afro-brasileiras como a capoeira e o candomblé e onde se fundou o Quilombo Pedra do Sal. Hoje, 60% dos moradores da área continuam sendo afro-brasileiros.

Mais de um século após o surgimento, a favela da Providência ainda carrega a marca cultural e física dos seus primeiros habitantes. Mas agora está ameaçada de destruição em nome das melhorias olímpicas: a ideia é demolir quase um terço da comunidade, uma decisão que inevitavelmente desestabilizará o que restar da favela.

Até meados de 2013, a Providência terá recebido 131 milhões de reais (US $65 milhões) em investimentos do plano de revitalização da zona portuária carioca, capitaneado pelo setor privado, iniciativa que engloba um teleférico, um bonde funicular e ruas mais amplas. As intervenções municipais anteriores, realizadas com o intuito de melhorar a comunidade, sempre reconheceram sua importância histórica, mas os projetos atuais não têm essa preocupação.

Embora a prefeitura alegue que esses investimentos beneficiarão aos moradores da região, um terço da comunidade já foi marcada para remoção e as únicas “reuniões públicas” organizadas visavam apenas informar aos moradores qual seria seu destino. Durante o dia, as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação e um número são pintados nas paredes das casas com tinta-spray. Moradores voltam para casa e descobrem que suas casas serão demolidas, mas não recebem nenhuma orientação sobre o que vai acontecer com eles e nem quando será.

Um passeio rápido pela comunidade revela a assustadora situação de insegurança em que os habitantes estão vivendo: no topo da colina, aproximadamente 70% das casas estão marcadas para despejo: uma área que a princípio deverá ser favorecida pelos investimentos que estão sendo realizados em transporte. Mas o teleférico de luxo vai transportar entre mil e três mil pessoas por hora durante os Jogos Olímpicos. Portanto, não serão os moradores os beneficiados, e sim os investidores.

Os habitantes da Providência estão temerosos. Apenas 36% deles possuem documentos comprovando seus direitos de propriedade, em comparação com 70 a 95% na mesma situação em outras favelas. Mais do que em outras comunidades pobres, esses moradores estão muito desinformados sobre os seus direitos e apavorados diante da possibilidade de perderem suas casas. Some-se a isso a abordagem da prefeitura de “dividir para conquistar”, — os residentes são confrontados individualmente para assinar o reassentamento e não se permitem negociações comunitárias — e a resistência é silenciada de modo efetivo.

A pressão exercida pelos grupos de direitos humanos e pela mídia internacional tem ajudado. Mas os despejos brutais continuam e surgem formas de remoção novas, mais sutis. Como parte do plano da prefeitura para a revitalização do porto, as autoridades declaram que os “reassentamentos” são do interesse dos próprios moradores, porque vivem em “áreas de risco” onde pode haver deslizamentos de terra, e porque supostamente é necessário que haja uma “desdensificação” para melhorar a qualidade de vida.

Porém, existem poucas evidências de risco de deslizamentos ou de superlotação perigosa; 98% das casas da Providência são feitas de concreto e tijolos robustos, e 90% delas têm mais de três cômodos. Além disso, um relatório importante produzido por engenheiros locais demonstrou que os fatores de risco anunciados pela prefeitura haviam sido inadequadamente estudados e são imprecisos.

Se o Rio conseguir desfigurar e desmantelar sua favela mais histórica, abrirá o caminho para novas destruições em centenas de outras favelas da cidade.  O impacto econômico, social e psicológico dos despejos é calamitoso: famílias removidas para unidades isoladas perdem o acesso aos significativos benefícios econômicos e sociais da cooperação comunitária, e também perdem a proximidade do trabalho e das redes de contato, sem mencionar os investimentos feitos por várias gerações familiares em suas casas.

O Rio de Janeiro está se tornando um playground para ricos. E a desigualdade gera instabilidade. Seria muito mais eficaz economicamente investir em melhorias urbanas, definidas com a ajuda das comunidades dentro um processo democrático participativo. Em última instância, essa estratégia poderia fortalecer a economia e desenvolver a infraestrutura da cidade; e ao mesmo tempo, reduzir desigualdades e fortalecer a população afro-brasileira, que ainda hoje é marginalizada.

* Reportagem publicada hoje (13/08) na página do The New York Times. Theresa Williamson, editora de RioOnWatch.org, fundou a Catalytic Communities (Comunidades Catalisadoras), um grupo que trabalha em defesa das favelas.  Maurício Hora, fotógrafo, dirige o programa Favelarte na favela Providência. Esta reportagem foi traduzida do inglês por Mónica Baña-Alvarez.

http://www.fazendomedia.com/em-nome-do-futuro-rio-esta-destruindo-o-passado/

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