Pré-vestibular comunitário leva a favela até a universidade

Estudantes de baixa renda na UFMG e na PUC representam cerca de 5% do total

Flavia Martins y Miguel

O som do forró vindo de um bar vizinho diariamente obriga a professora de química a aumentar o tom de voz e os poucos alunos a se esforçarem para tentar ignorar o incômodo. Na pequena casa de muro pichado cedida por uma ONG do Conjunto Taquaril, aglomerado da região Leste de Belo Horizonte, um pré-vestibular comunitário tenta driblar o ambiente desfavorável para oferecer aos moradores aulas preparatórias para o ingresso na universidade.”Antes, eram dois bares concorrendo para ver quem colocava a música mais alta”, conta Jéssica da Silva, 21, que quer fazer biologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e completou o ensino médio na rede pública.

A iniciativa, também presente em outras poucas comunidades da capital, em sua maioria é desenvolvida por entidades sem fins lucrativos ou religiosas que lutam contra grandes desafios na tentativa de aumentar a diversidade socioeconômica no ensino superior do país. A estrutura dos cursos conta, na maioria dos casos, apenas com a boa vontade de professores voluntários e com a dedicação de alunos de diferentes faixas etárias que enxergam no curso gratuito uma chance única de conseguir um diploma acadêmico.

E para quem não consegue ter sucesso no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o lugar na sala de aula continua garantido no próximo ano. É o caso do pedreiro Claudemir Rodrigo Marinho, 27, que pela quinta vez tenta uma vaga no curso de engenharia civil da UFMG. “Já trabalho em construção e entendo de obra”, afirma.

Nas duas maiores universidades de Minas, os alunos de baixa renda representam apenas 5% do total de estudantes matriculados. Na UFMG, 2.653 alunos com grandes dificuldades de se manter nos estudos procuraram a instituição. O total representa 5,2% dos 50.948 universitários. Já na PUC Minas, outros 2.600, cerca de 4,3% dos 60 mil alunos dos campi, são considerados carentes.

Adversidades

Próximo à Vila São José, na região Noroeste, a sede usada pela Educafro, ONG que busca a inclusão de pobres e negros na educação superior, já conviveu com o perigo de tiroteios entre traficantes durante as aulas preparatórias. No entanto, como conta a professora de redação do cursinho, Kátia dos Santos, 31, os problemas se tornam minúsculos quando o nome de um aluno aparece na lista de aprovados no vestibular.”É difícil explicar a felicidade que sentimos quando conseguimos uma aprovação”.

Faxineiras, donas de casa e operários dividem a sala de aula e o sonho de ter um curso superior com jovens da comunidade recém-saídos do ensino médio. O mecânico José Aparecido Pereira, 49, conta que escolheu o direito porque viu parentes serem presos e dependerem de advogados poucos preparados. “Quero ajudar a minha família.”

Para a antropóloga da PUC Minas Sandra Tosta, embora os cursinhos existam em pequeno número, a iniciativa desempenha um papel importante na comunidade. “O curso comunitário tem uma dimensão que é a de estimular concretamente grupos a retornarem para a escola, ou, pelo menos, tentar o retorno”, analisa.

Melhoria do ensino público é o maior desafio

Os resultados positivos da tentativa de fazer diferença na vida de pessoas com projetos como os pré-vestibulares comunitários, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, dependem diretamente da melhoria da qualidade do ensino público.

“Você tem casos excepcionais de pessoas que acabam conseguindo entrar na universidade. Mas para a maioria, o desempenho no fim do pré-vestibular comunitário reflete um acumulado de anos de educação sem qualidade”, afirma o especialista em educação Cláudio Moura e Castro.

Para a antropóloga e professora da PUC Minas Sandra Tosta, é urgente o investimento na educação básica das escolas públicas, por meio da melhoria da formação de professores e ancorada aos desafios socioeconômicos e culturais. “A tão almejada qualidade de aprendizagem e de formação deve atingir a todos, sem distinção de cor e condição econômica. E que o acesso à universidade possa, num futuro não muito remoto, dispensar políticas de cotas”.

Aulas atraem pais e filhos aos estudos

É comum ver nas salas de aulas do pré-vestibular comunitário no Alto Vera Cruz, na região Leste da capital, alunos que tiveram filhos que passaram pelo cursinho e hoje estão em faculdades públicas ou particulares.

No caso de Brenda Cândida Malta, 18, no entanto, aconteceu o contrário: sua mãe passou no curso de pedagogia do Cefet e ela ainda tenta uma vaga na UFMG. “Foi ela que me trouxe para cá. E o exemplo dela me ajuda a ter mais garra”, diz.

Eles conseguiram uma chance

Para especialista, projeto nas favelas deve ser pensado de maneira global

Criado por ex-alunos da UFMG há 16 anos para atender estudantes de baixa renda com preço popular, o cursinho Pré-Federal iniciou, em 2004, o trabalho comunitário em vilas e favelas da capital mineira. De lá para cá, como conta o coordenador dos projetos da entidade, Ramon de Faria, pelo menos 50 estudantes passaram no vestibular da UFMG, a universidade mais concorrida do Estado. “Tem ano que passa dois ou três em cada turma. Às vezes, nenhum. Mas quando acontece a aprovação na federal o impacto positivo é instantâneo na comunidade”, afirma Faria.

Faixas de pano são colocadas em frente às casas dos aprovados, os nomes são divulgados pelas ruas e becos. A comemoração faz parte da tentativa de atrair outros moradores para as salas de aula do próximo ano. Lídia Soares Costa, 25, ex-aluna do pré-vestibular do Conjunto Taquaril, localizada em um morro na região Leste de Belo Horizonte, é um dos exemplos de sucesso da iniciativa. A jovem, primeira geração da família a cursar o ensino superior, não esconde o orgulho de ter garantido sua cadeira no curso de cinema na UFMG.

“Entrei no pré (curso comunitário) e tentei duas vezes. Lembro do meu pai batendo palma e gritando. Foi uma festa lá em casa”, relembra a universitária, que sempre gostou de desenho e fazia grafite pelos muros da cidade. “Agora, quero fazer animação.”

Foi pelo Facebook, rede social mais popular da internet, que a estudante de história da UFMG Raquel Marques, 18, tomou conhecimento de sua aprovação no curso tão sonhado desde os anos no ensino público da rede estadual. Com uma dose considerável de aplicação nos estudos, a ex-aluna do curso comunitário passou na primeira tentativa na universidade. “Se eu passei, todos podem passar. Não tem desculpa para não tentar”, incentiva a jovem.

Perseverança 

A vontade de ter um diploma universitário nunca saiu da cabeça de Marília Francisca dos Santos, 46, moradora da Vila São José, na região Noroeste. Em meio a risadas, a estudante de serviço social do Centro Universitário de Belo Horizonte (Uni-BH) confessa que tentou cinco vezes até conseguir sua vaga na faculdade. “Primeiro criei meus filhos para depois estudar. E valeu a pena”, afirma a ex-aluna do cursinho comunitário da Educafro. Ao lado dela, outras três amigas conseguiram passar no vestibular da faculdade no mesmo ano. Rosemari Aparecida Pereira, 41, colega de sala de Marília, comemora o primeiro estágio na área em um posto de saúde da capital. “É muito melhor do que ser babá”, diz.

Para o coordenador do Observatório de Favelas, ONG sediada no Rio de Janeiro, Mário Pires Simão, o trabalho realizado pelos cursinhos nas favelas é bem-vindo desde que seja pensado em uma perspectiva de conjunto. “É um movimento que sinaliza para o poder público a necessidade de melhoria da educação básica. O grande desafio é como os grupos se mobilizam para tentar trazer o conhecimento universitário de volta para a comunidade”, analisa.

Governo não oferece alternativas para estudante

Se depender de programas do governo federal ou do Estado, a população de baixa renda continuará sem opções no que se refere à oferta de aulas gratuitas de preparação para o Enem. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), algumas universidades federais oferecem vagas em pré-vestibulares a estudantes de baixa renda, mas o órgão não regula esse tipo de iniciativa nem estuda fornecer incentivos do tipo para os interessados. Em Minas, no entanto, a UFMG informou que não oferece cursinhos.

A Secretaria de Estado de Educação (SEE) informou que dá aos alunos da rede a oportunidade de estudo no período de contraturno de suas aulas regulares, “como forma de consolidar o conhecimento já abordado em sala de aula”. O conteúdo, no entanto, é dado pelos mesmos professores da escola, e o estudante tem o direito de escolher apenas três matérias.

http://www.otempo.com.br/noticias/ultimas/?IdNoticia=204268,OTE

Enviada por José Carlos.

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