SP – Ação rescisória da Defensoria Pública quer reaver terras de Quilombo Propava, no Vale do Ribeira

A Defensoria Pública de São Paulo ajuzou ação rescisória para reaver um terreno de antiga comunidade quilombola de cerca de 60 hectares em favor dos descendentes de seus ocupantes. Segundo a ação, há registros de ocupação por descendentes de escravos libertos na área em disputa desde 1850. A ação busca invalidar uma sentença transitada em julgado que transferiu a propriedade da área para produtores rurais, após ação de usucapião proposta em 2005.

A ação rescisória da Defensoria Pública de São Paulo em Registro, no Vale do Ribeira, perante o Tribunal de Justiça de São Paulo foi proposta pelos defensores públicos Andrew Toshio Hayama e Thiago de Luna Cury, que atuam na cidade. Eles argumentam que a área não poderia ter sido fruto de uma ação de usucapião, pois normas da Constituição Federal vedam essa situação ao determinar que as terras remanescentes de comunidades quilombolas são bens públicos. “A comunidade quilombola de Peropava é possuidora das terras usucapidas. O artigo 68 da ADCT (ato das disposições constitucionais transitórias) garante aos remanescentes quilombolas a propriedade dos territórios por eles tradicionalmente ocupados, realizando uma afetação desses solos ao interesse público. Sendo assim, tais terras tornaram-se imprescritíveis”, afirmaram.

Segundo a ação, há registros de ocupação por descendentes de escravos libertos na área em disputa desde 1850. Segundo Toshio e Cury, a identidade da comunidade quilombola — caracterizada pela religião, costumes, formas de expressão, entre outros elementos — sinaliza a presença dessas pessoas no local.

Um laudo antropológico elaborado pelo Itesp (Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo) revela que houve um processo de expropriação e expulsão de terras, causado pela construção do bairro de Peropava. Mesmo assim, em 1972, os membros da comunidade conquistaram o título de domínio da terra pelo governo do de São Paulo. No entanto, por conta da ação de grileiros, aproximadamente 15 das 40 famílias quilombolas deixaram a comunidade entre as décadas de 1960 e 1990. Mais da metade da área passou a ser ocupada, então, por pessoas alheias à comunidade, como os produtores rurais que ingressaram, em 2005, com a ação de usucapião.

“Aqui estão em jogo, de um lado, a preservação do patrimônio histórico e cultural do povo brasileiro que somente será adequadamente protegido e preservado se as terras quilombolas forem mantidas nas mãos de seus legítimos proprietários, os quilombolas, e o direito constitucionalmente previsto dos remanescentes dos quilombos às terras por eles tradicionalmente ocupadas; de outro, o direito à propriedade particular de um latifundiário que se apossou de parte das terras quilombolas por meio de coação”, argumentaram os defensores. Com informações da Assessoria de Imprensa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Veja trechos do pedido:

A história da comunidade remonta ao ano de 1850, onde se encontram os primeiros sinais e registros de ocupação por descendentes de escravos libertos advindos do bairro Guariruva e da cidade de Iguape.

Os personagens que inauguram a constituição da comunidade são Francisca e Domingos Alves, que figuravam nos registros da Coroa Portuguesa como negros livres, em fenômeno conhecido como “brecha camponesa”, reflexo da complexidade que permeava o padrão latifundiário-escravocrata.

Habitantes de Iguape deram origem aos desbravadores de Peropava, José Francisco Alves e Chico Alves, que ocuparam o local em busca de terras livres. O grupo familiar original permaneceu próximo a um ribeirão, conhecido ao longo dos tempos pelos membros da comunidade como ribeirão do Mocafe, a ponto de tal nome ser mencionado inclusive oficialmente, em mapa do IBGE confeccionado em 1974. A expressão Mocafe ou Mucafre passou a designar os membros da família, denominados desta forma até os dias presentes.

Evidentemente, como conclui o estudo, a vinculação entre território e grupo familiar aponta para estabilidade, permanência e memória, elementos formadores de identidade comunitária.

Por volta de 1870, novo sujeito relevante aparece em cena, Senhor Antonio Evaristo Bruno de Melo, escravo liberto vindo de Iguape, que acaba por se unir aos Mucrafes, cuja descendência até hoje está fortemente presente na comunidade.

Documentos da época em que se iniciaram tentativas de regularização fundiária da área já apontavam os Mucafres como moradores das terras de Peropava (fls. 39 do Relatório Técnico-Científico).

Mas a identidade entre grupos e território não é a única característica a sinalizar a constituição de identidade comunitária quilombola: religião, costumes, formas de expressão, sistema de agricultura coivara são elementos compartilhados pelos membros.

“O grupo populacional denominado Quilombo Peropava está localizado em um bairro rural do Município de Registro no Estado de São Paulo. O território reivindicado por essa comunidade está situado a nordeste da sede do Município de Registro, tendo por limite ao Sul Juquiá e a Sudeste Iguape. (…) Nesse lugar residem 25 famílias, que sobrevivem do trabalho como mensalista e diarista nas fazendas dos arredores de suas terras; trabalhando nas plantações de banana e pupunha. Além disso, comercializam em Registro o produto excedente de pequenas roças que mantém para o consumo doméstico; e mudas de plantas ornamentais.” (Relatório Técnico-Científico, p. 17).

O início do processo de expropriação e expulsão de terras se dá após a construção da estrada do bairro de Peropava, como relata o Laudo Antropológico (fls. 41):

“(…) os Mucafre começaram a sofrer ameaças de expulsão de suas terras, principalmente, da mineradora de fosforita – SOCAL. Segundo Felix, por diversas vezes os funcionários dessa empresa foram até Peropava para fazerem propostas de compra de terras. Certa vez, quiseram colocar um portão na estrada e foram impedidos por um advogado amigo da família. (…) Devido a constantes ameaças os Mucafre assustados e temendo por suas vidas resolvem sair das terras próximas ao ribeirão do Mocafe passando a ocupar outra parte do seu território”.

Em 1972 os membros de Peropava conquistam título de domínio por reconhecimento do Governo do Estado de São Paulo. Contudo, como não possuíam condições de registrar o documento, aceitaram, como forma de pagamento exigida por João Augusto Aby-Azar, ofertar 36 hectares dos 199 hectares contemplados.

O Senhor Orides, portanto, ao ingressar com a ação, já possuía, por aquisição onerosa, 36 hectares dos 199 reconhecidos, na década de 70, a três famílias da comunidade quilombola de Peropava. O uso da terra, na parte que cabia aos membros da comunidade, era coletivo, sem divisões e demarcações. Concepção comunitária de propriedade, baseada no trabalho com a terra.

Entretanto, o Senhor Orides iniciou processo de expulsão e intimidação, ampliando seu território original. Ao longo da história, entre as décadas de 1960 e 1990, por conta da ação de grileiros e em razão do assédio e da intimidação de aproveitadores, como o Senhor Orides, 15 famílias deixaram a comunidade, restando atualmente 25. Mais da metade das terras pertencentes aos remanescentes são ocupadas por pessoas estranhas à comunidade.

Prática semelhante, e que se repete na trágica e covarde história de espoliação dos negros no Brasil, narra Débora Stucchi, perita da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, em seu Laudo Antropológico realizado sobre o Bairro do Carmo, situado no município de São Roque:

“Da década de 1930 em diante quando houve sucessivo, contínuo e violento processo de expropriação das terras dos pretos do Carmo, revelado pelo registro das disputas judiciais e pelo noticiário escrito da época, realizada por meio de compras por valores subdimensionados, à base de troca por outras glebas localizadas em regiões mais distantes, por gêneros alimentícios ou por pequenos animais de criação doméstica, pela simples apropriação de áreas por meio da expansão das cercas, as terras de negros foram abarcadas pelos fazendeiros aos advogados constituídos na defesa dos descendentes dos escravos. A Província Carmelitana Fluminense deixa o cenário na década de 1930, após a divisão definitiva da fazenda em 1932, processo que já insere nas terras da Santa os novos proprietários, em sua maioria advogados, que detinham, ao todo, 1.005 alqueires de terras.

(…) Negociações que levaram a trocas favorecidas pelas subordinações de patronagem e pelas vinculações do compadrio – comprometendo indivíduos em relações assimétricas de poder – ou ainda meras ações de expropriação marcam as décadas que se seguem no século XX, estabelecidas em base a transações formais e informais que, gradativamente, reduziram drasticamente a área ocupada por aqueles descendentes de escravos. Advogados locais, alguns dos quais constituídos anos antes visando à defesa dos negros nos processos judiciais fundiários, transformaram-se nos detentores da maior parte da área no interior das Terras da Santa, as negociaram no decorrer do tempo com outros proprietários, que passaram a ocupar as valorizadas terras da região. A pressão pela liberação das áreas continua até a década de 1970, quando se estabelecem os novos interesses imobiliários, motivados pela implantação de condomínios fechados de alto padrão na região. A essa altura quase todas as antigas áreas dos descendentes de escravos estavam em mãos de grandes proprietários, apenas restando o pequeno quinhão da Santa, com extensão de três alqueires, um modesto patrimônio composto pela Capela de Nossa Senhora do Carmo rodeada por conjunto de casinhas, resguardado desde 1932, quando titulado em favor da Igreja. Nesse momento, relatam os moradores, ainda houve a tentativa frustrada de abarcamento dos limites da pequena vila aos domínios da área que formaria o condomínio vizinho que recebe o emblemático nome de Patrimônio do Carmo. Na década de 1970 esse novo ator inserido no cenário, após negociação realizada com fazendeiro, denominado pelos moradores de a firma, compra porção significativa de terras a área de entorno da capela. O bairro do Carmo, então, encontrava-se cercado, de um lado, pela Fazenda Icaraí e, de outro, pelo novo empreendimento, o condomínio de alto padrão que atualmente representa significativa fonte de renda aos descendentes de escravos da Santa. O residencial consolida-se na década de 1980, estabelecido em meio a crescentes pressões contra as terras ocupadas pelos moradores negros. Relatos atuais indicam que, mesmo o patrimônio restante da Santa, com seus diminutos três alqueires para onde confluíram todos os moradores que resistiram no Carmo, foi alvo dos tratores enviados para deitar abaixo as casas. No entanto, a demolição deveria abater somente as casas. Nas propagandas da época destinadas a anunciar os lotes, a Capela do Carmo seria divulgada como atrativo cultural e bem de valor histórico integrante do Condomínio Patrimônio do Carmo disponível ao desfrute dos novos proprietários.

(…) Como resultado dos processos de expropriação aqui indicados, praticamente a mesma população estimada no início do século XX ocupa, atualmente, 16 hectares oficialmente declarados, equivalentes a pouco mais de 6 alqueires, o que representa área 300 vezes menor do que a efetivamente ocupada em 1900 e 58 vezes menor do que a titulada em 1919 em nome dos descendentes de escravos de Nossa Senhora do Carmo”.

O Relatório Técnico-Científico produzido pelo ITESP a respeito da comunidade quilombola de Peropava (em anexo) confirma a existência de comunidade quilombola, com fundamento em critérios de etnia e territorialidade, ingredientes construtores e formadores da identidade comunitária. Aponta como influências importantes a cultura indígena (técnicas de pesca e agricultura itinerante) e a religião petencostal, cuja crença convive harmonicamente com as tradições quilombolas. Muitos trabalham como mensalista e diarista nas fazendas dos arredores, que cultivam banana e pupunha; outros comercializam em Registro produto excedente de pequenas roças ou decorrentes de plantações de várias culturas (arroz, feijão, mandioca, café, cará, milho, cana-de-açúcar, palmito, verduras e legumes).

Tais elementos sinalizam, sem dúvida, para a existência de autêntico “povo” quilombola: eis a conclusão da competente antropóloga:

“Com base no estudo técnico-científico da comunidade Peropava, considero que os trabalhos antropológicos não deixam dúvidas sobre a origem quilombola da mesma. Estive durante meses fazendo uma pesquisa de campo e documental que possibilitaram a reconstrução da história deste grupo, bem como, de sua identidade étnica, essa última fundamentada pelas redes de sociabilidade calcadas no parentesco, nas relações de trabalho e simbólicas que o grupo mantém com as terras que ocupa. Constatei que a comunidade Peropava é realmente constituída por descendentes de escravos que construíram um território quilombola e ocupam há 160 anos. Durante as décadas de 1960 e 1990 sofreram processos de expropriação que reduziram seu território para um terço do tamanho que tinha na década de 1940”, (Relatório Técnico-Científico, fls. 52).

Iniciado no ano de 2004, por meio de requerimento formulado pela Prefeitura de Registro (Relatório Técnico-Científico, fls. 62), o estudo encerrou-se no ano de 2011, concluindo (fls. 52):

“1) que os membros do grupo denominado Peropava são remanescentes de comunidade de quilombos, de acordo com as definições que embasam os critérios oficiais de reconhecimento adotados pelo Estado de São Paulo, e devem, portanto, gozar dos direitos que tal identificação lhes assegura; 2) que se faz urgente a regularização fundiária do território quilombola aqui demonstrado, de área de 395,98 hectares”.

Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2012.

http://www.conjur.com.br/2012-mai-03/acao-rescisoria-reaver-terras-quilombolas-interior-paulista

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