Na próxima quarta, o STF julgará a Ação Direta de Inconstitucionalidade contrária ao Decreto 4887/2003, que regulamenta a demarcação e titulação das terras quilombolas.
Tais comunidades quilombolas constituem patrimônio histórico e cultural de todo o povo brasileiro e a perda dessa riqueza e diversidade afeta não apenas os grupos diretamente atingidos, mas se estende a todo o país. Constitui, dessa forma, perda irreversível do projeto civilizacional construído ao longo do processo de constituição do Brasil enquanto país com singularidades e riquezas próprias. A decisão da restrição do espaço de reprodução histórico e social dos quilombolas atinge não só seu direito de propriedade, que a Constituição previu facilitar, mas o próprio cerne do projeto de desenvolvimento e nação que queremos construir. Implica saber se o desenvolvimento consegue agregar diferentes projetos de vida boa e incorporar a ideia de riqueza não apenas como a cúmulo, mas representada pelo direito de plantar, pelo direito de acesso aos rios, às matas, aos espaços de celebração da religiosidade e das expressões dos cantos entoados, dos estilos de vestuário, da culinária, dos instrumentos musicais, da produção agrícola, todos os quais conciliam os projetos de sustentabilidade da mãe terra. Ou se, por outro lado, tal projeto assumirá um formato violador de direitos humanos, dos direitos da natureza e dos grupos étnicos. Modelos de países que seguiram este caminho não nos faltam.
O STF, ao definir sobre o direito dos quilombolas à auto-atribuição, reconhecerá a capacidade de sujeito de direito de tais grupos, com cultura e identidade próprias e ligados a um passado de resistência à opressão e ao racismo. Assegurando, a um tempo, a efetiva participação em uma sociedade pluralista e promovendo a igualdade substantiva. E se pronunciando sobre o pleno exercício dos direitos culturais, não mais na visã o de patrimônio cultural como monumento e tombamento, mas na visão ampliada dos artigos 215 e 216, para abranger as expressões de criar, fazer e viver e tais comunidades.
Mais que isto: pode dar mais um passo para consolidação do sistema de proteção de direitos humanos, no momento em que tanto a Corte Interamericana vem reconhecendo o direito de propriedade a grupos negros formados por descendentes de escravos, quanto diversos governos nacionais vem aceitando a necessidade de regulamentar a consulta prévia, livre e informada, tal como prevista na Convenção 169 da OIT, para os mega-emprendimentos que afetam indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais.
A decisão a ser proferida, tal como aquela de Raposa Serra do Sol, sinalizará, para as próximas gerações, o modelo de desenvolvimento e de sociedade que o Brasil deve deixar como legado. Um projeto uniformizador, etnocida e insustentável. Ou outro em que a diversidade e o pluralismo são chaves para uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos e baseada na dignidade da pessoa humana.
*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Enviada por Ana Maria R. Gomes para a lista superiorindigena.