Na escola da aldeia Fulni-ô, o Yaathe é ensinado com o mesmo status do Português
O interesse da professora Januacele da Costa, da Faculdade de Letras da Ufal, começou quando ela ainda era criança. Natural de Águas Belas – Pernambuco, onde fica a aldeia dos fulni-ô, Januacele presenciava os índios conversando na língua materna. “Mas era uma comunicação cercada de preconceitos. As pessoas da cidade mantinham uma certa distância. Diziam que os ‘cabocos’ estavam ‘cortando língua’”, conta a pesquisadora.
Quando começou o mestrado em Letras, na Universidade Federal de Pernambuco, o interesse da infância se tornou objeto de estudo, abraçado com muita paixão por mais de duas décadas. A dissertação de mestrado foi dedicada ao perfil sociolinguístico dos Fulni-ô e a tese à descrição da língua, o Yaathe. “É um fato extraordinário que, mesmo depois de 300 anos de contato com a colonização branca, com todo o peso das missões católicas e da dominação cultural, os fulni-ô tenham conseguido manter a língua ancestral viva e funcional, sendo utilizada no dia a dia da comunidade”, diz com entusiasmo a pesquisadora.
Na Ufal, desde 1993, como professora da graduação e pós-graduação em Letras, Januacele já orientou e produziu vários trabalhos científicos sobre a gramática da língua Yaathe, teoria e análise linguística e documentação da língua. Mas toda essa pesquisa é pautada por um grande respeito pela cultura fulni-ô. “Para eles é uma língua sagrada, que não é ensinada a pessoas de fora da aldeia, por isso, os trabalhos de caráter didático que produzimos ficam na aldeia. O que divulgo são os artigos científicos”, ressalta a linguista.
A pesquisadora relata que, na escola da aldeia, o Yaathe é ensinado com o mesmo status do Português. “Não são palavras isoladas, ensinadas como curiosidade. Os Fulni-ô são bilíngues, pelo menos 90% deles falam fluentemente as duas línguas, o Português e o Yaathe”, destaca Januacele. A língua e os rituais sagrados mantêm a nação unida, com fortes vínculos culturais e tradições que são repassadas para as novas gerações.
Da tribo ao universo acadêmico
Preservar a cultura indígena não significa se manter à margem do conhecimento acadêmico, muito pelo contrário. A comunidade científica demonstra um grande interesse pela forma como os Fulni-ô mantêm com orgulho a sua identidade cultural. As novas gerações de índios também buscam se apropriar das ferramentas científicas que estão ao alcance deles.
É dessa forma, com um pé na aldeia e outra na academia, que Fábia Pereira da Silva se identifica como fulni-ô e é doutoranda em Linguística da Universidade Federal de Alagoas. “Para nós é motivo de muito orgulho preservar a nossa língua sagrada. É uma língua falada internamente pelo meu povo e temos algumas regras para manter o respeito por essa cultura. Por isso, mesmo como objeto de pesquisa científica, temos muito cuidado sobre como divulgar a nossa língua”, conta a estudante do doutorado em Linguística.
O estudo da língua materna já rendeu muitos estudos para Fábia. Desde a graduação, ela já era bolsista de iniciação científica com trabalhos voltados para a língua da sua etnia, pesquisas que renderam dois prêmios de excelência acadêmica. No mestrado, concluído em 2011, ela elaborou um trabalho sobre a sílaba em Yaathe. No doutorado, iniciado este ano, a estudante pretende continuar seus estudos sobre Fonologia da Língua. “Meu objetivo é aplicar os conhecimentos adquiridos na sistematização de uma escrita para o Yaathe, que poderá ser usada no ensino da língua nas escolas da aldeia”, informa a estudante Fulni-ô.
Grupo de pesquisa em Fonética e Fonologia
O grupo de pesquisa em Fonética e Fonologia, da Faculdade de Letras (Fale) da Ufal, está registrado no diretório de pesquisas do CNPq desde 2006. O grupo é coordenado pelos professores Januacele Francisca da Costa e Miguel José Alves de Oliveira Junior. Ao todo, são seis professores pesquisadores e mais nove estudantes, entre eles, a estudante indígena Fabia Pereira.
Em 2010, o projeto “Documentação da Língua Indígena Brasileira Yaathe (Fulni-ô)” foi aprovado pelo CNPq. O objetivo do trabalho científico é compor um banco de dados da língua, com registros variados de palavras, cânticos e outras formas de expressão na aldeia que preservam a fala ancestral. “Na aldeia, existe uma quantidade razoável de material coletado, mas é preciso um trabalho de digitalização e organização para armazenamento, de modo que esse material possa efetivamente vir a constituir um banco de dados da língua”, relatam os coordenadores da pesquisa.
Apesar de preservada, a língua Yaathe corre o risco de extinção, por isso uma questão importante deste trabalho é que toda a documentação conta com a participação dos índios fulni-ô. “A transcrição e tradução dos dados são feitas com o auxílio dos professores de Yaathe, o que proporcionará uma discussão acerca de um modelo adequado de grafia a ser adotado, com aprovação da comunidade”, destacaram os pesquisadores.
Sobre os fulni-ô
Segundo o site Culturas Indígenas, fulni-ô significa “povo que vive ao lado do rio”. De acordo com Fábia, na verdade, fulni-ô significa, literalmente, “povo que tem rio”. A aldeia, de 11 mil hectares, se localiza no município de Águas Belas, em Pernambuco, entre o Rio Ipanema, a Serra Comunaty e a Serra Preta. Em 2007, a população da tribo era de aproximadamente 4.500 pessoas. De acordo com informações dos pesquisadores, atualmente, a aldeia deve ter cerca de seis mil índios da etnia Fulni-ô.
http://primeiraedicao.com.br/noticia/2012/04/02/ufal-pesquisa-a-unica-lingua-indigena-que-permanece-viva-no-nordeste