A política nos quartéis, de Maud Chirio, analisa a divisão do Exército brasileiro a partir da história dos protestos e mobilizações de oficiais dos setores médios da corporação
João Paulo
Uma “verdade” se constrói com muitas mentiras. Dito de outra forma, uma afirmação que ganha força de realidade muitas vezes é fundada em noções que escondem seus reais propósitos. Na história recente do Brasil, uma das afirmações que seguem essa receita é a que tira das Forças Armadas sua inspiração política e suas motivações ideológicas. Envolvido em política em toda a sua história, o Exército, com a ditadura militar de 1964, tentou vender a ideia de uma intervenção em nome do interesse nacional, levada a cabo por instituição una e coesa, sem divisões internas.
Para defender sua visão de história, usou de vários instrumentos, entre eles o silêncio forçado de suas fileiras, deixando apenas ao generalato a função de falar em nome da instituição. No entanto, por dentro, a política fervia. Se, com o tempo, o cidadão aprendeu a identificar a inspiração conservadora do Exército, que à época se traduzia como direita, não se sabia que o núcleo mais reacionário se localizava nos setores dos oficiais do estrato médio. Alimentada por um ideal revolucionário que descartava a política – considerada foco de corrupção –, a massa dos oficiais foi silenciada, mas não deixou de se movimentar.
A análise dessa rede de insatisfação e mobilização interna das Forças Armadas é o tema do estudo A política dos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira, de autoria da historiadora francesa Maud Chirio, que acaba de ser lançado no Brasil pela Editora Jorge Zahar. Trata-se de pesquisa que reúne conhecimento histórico e sensibilidade para analisar a instituição militar. O golpe militar de 1964, na sua aparente unidade das Forças Armadas, será um momento importante para entender as divisões que passam a atravessar a corporação.
Maud Chirio mostra que o ativismo que antecede a intervenção militar em 1964 não perde sua força com a aparente vitória dos setores mais radicais da oficialidade. Se o golpe pode ser visto como encarnação dos ideais revolucionários desse estrato, nem por isso eles participam de seus rumos e condução. Se há um imaginário que unifica os resultados, nem por isso deixou de existir tensão interna, que vai se manifestar em diferentes momentos do ciclo da ditadura militar brasileira.
O livro leva ao leitor uma história pouco conhecida, garimpada em documentos e entrevistas, que permite uma visão do regime militar de baixo para cima. Em seis capítulos, a autora parte das conspirações que antecedem o golpe à distensão do fim dos anos 1970, analisando etapas marcantes dessa trajetória, como os primeiros momentos da ditadura e a constituição de uma linha-dura de frente; as divergências do período 1966-68, com a militarização da vida política; a crise da sucessão em 1969; a mobilização da oficialidade radical contra o que considerava fraqueza dos generais presidentes.
Em todo esse período, vai sendo construído o imaginário que não apenas estabelece a presença do Exército como agente revolucionário único como anatematiza os inimigos do regime, compostos de todos os “defeitos” da vida política, da corrupção do período populista ao risco do movimento comunista internacional, agregando ainda características como o entreguismo e a participação em movimentos sociais.
Hoje se completam 48 anos do golpe de Estado que instalou a ditadura militar brasileira. Os personagens do livro de Maud Chirio já são história. Mas o mesmo ideário vencido pela redemocratização não deixa de enviar sinais. A cada manifestação contra a política e a memória, como se vê no debate em torno da Comissão da Verdade, com o patente desconforto de setores militares ligados a crimes de Estado contra os direitos humanos, uma luz se acende. A boa pesquisa histórica é um instrumento a mais na derrubada de meias verdades e mentiras inteiras…
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/03/31/interna_pensar,30141/guerra-da-memoria.shtml
Entrevista com Maud Chirio, hitoriadora
Pesquisadora francesa analisa as divisões ideológicas no interior das Forças Armadas durante o período da ditadura militar brasileira e desvenda o falso apolitismo por parte dos generais
João Paulo
O livro A política nos quartéis – Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira é obra de uma historiadora francesa, Maud Chirio, que faz inveja ao leitor brasileiro. Além do domínio das informações sobre a vida política dentro das Forças Armadas (algo sempre negado por uma instituição que diz não gostar de política), a autora demonstra conhecer bem o clima da caserna brasileira. Se a face visível para o cidadão sempre foi a dos generais, o que a pesquisa mostra é o setor médio da corporação metido em política até os ossos, sempre à direita, com um empenho mais “revolucionário” que o da cúpula.
Longe da paz dos quartéis, o que ela descreve é um ambiente de pressões e protestos, dominado a custo pelos princípios da hierarquia e da obediência, mas que encontrava escape nas eleições do Clube Militar e, mais grave, em momentos marcados por violência e atentados. Esse ambiente de divisão, escamoteada pela defesa de uma atuação profissional do Exército, pode ser percebido, em outro contexto, em episódios recentes como o da discussão da Comissão da Verdade.
Em entrevista ao Pensar, Maud Chirio chama a atenção para a necessidade de conhecer em profundidade o período recente da ditadura militar, de modo a influir democraticamente nos rumos da instituição. Os tempos são outros, mas a persistência de uma certa “cultura histórica institucional” obriga ao cuidado histórico, vigilância política e reflexão permanente. Para isso, ela defende a abertura de arquivos e as pesquisas sobre o período.
Para o brasileiro o Exército, depois do golpe de 1964, é identificado com a direita. Em seu estudo, percebe-se que havia um setor à direita da direita, formado pelos setores médios da corporação. Como se construiu o consenso em torno das Forças Armadas, de modo a esconder essa diferenciação ideológica?
O Exército brasileiro não foi sempre identificado com a direita. Falando só do pós-1945, houve momentos de intensa bipolarização, com setores importantes de oficiais e praças apoiando os governos getulistas e as políticas nacionalistas implementadas por estes. Foi o que aconteceu, em particular, durante o segundo governo Vargas, quando o Clube Militar virou um espaço de lutas políticas violentas entre a facção “nacionalista” e a “entreguista”, usando o vocabulário da época. Mais para a frente, os sargentos foram uma força progressista importante e uma base de apoio fundamental para o governo de João Goulart. Esses setores mais à esquerda foram expulsos das Forças Armadas após o golpe de 1964, e a instituição militar inteira migrou para a direita. Alguns grupos de oficiais de patente intermediária (em geral tenentes-coronéis e coronéis) eram, é verdade, ainda mais extremados e entraram em conflito com o poder militar, por querer uma “revolução” mais radical, ou seja, a construção rápida de um regime autoritário e repressivo. Esse conflito não foi sempre escondido. Em 1964 e 1965, fazia manchete todo dia. Mas, aos poucos, a autoridade hierárquica dos generais foi se restabelecendo. Os conflitos não desapareceram, mas sumiram dos jornais e dos olhos do mundo civil. No mesmo momento se reafirmou o discurso “oficial” de uma instituição militar “unida e coesa”, sem conflitos políticos internos. Foi essa imagem que a memória coletiva guardou.
Com o golpe de 64, além do papel político, o Exército assumiu tarefas administrativas e econômicas. Houve um pensamento econômico nos quartéis naquele período?
Há, de uma certa forma, mas é muito pouco elaborado. Todos os grupos de oficiais ativistas que estudei se consideram nacionalistas economicamente, e criticam o “entreguismo” dos governos militares contra os quais eles lutam. Mas geralmente não passa de uma postura, sem reivindicações concretas. Não que seja só uma maneira de desqualificar o adversário, pois esses oficiais são convencidos do nacionalismo econômico deles; mas eles não têm a formação nem os contatos para elaborar uma política alternativa àquela do poder.
A separação entre elite militar e setores intermediários deixou marcas nas Forças Armadas?
A elite militar da ditadura, os generais, nascidos em 1900 ou 1910, já morreu; e a jovem oficialidade ativista, que tinha geralmente a patente de major a coronel, está hoje na reserva, com 75, 80, 85 anos. O conflito entre essas duas gerações já é história. Houve rancores, certamente, em particular por parte dos oficiais intermediários mais ativos politicamente, e por essa razão marginalizados pelo poder. Quanto àqueles que fizeram parte do aparelho repressivo, eles nunca perdoaram Geisel e Figueiredo por ter aberto o processo de distensão. Mas o discurso da “revolução traída”, que era a acusação sistemática da época, não aparece mais hoje e as críticas contra os governos militares sucessivos são bem menos violentas. O que aconteceu é que, depois da ditadura, os rancores e atritos entre os ex-golpistas foram cobertos por um discurso consensual sobre a ditadura – que o golpe foi uma “revolução democrática” necessária para salvar o país do comunismo, que a repressão não foi bem repressão, mas uma “guerra suja” contra um inimigo armado e perigoso, que “governos militares” modernizaram e enriqueceram o país etc. – e por um ódio comum de todos os “revanchistas”, na mídia e no mundo universitário em particular. Ou seja, todos os golpistas de ontem se encontram hoje no mesmo campo na “guerra da memória”, e esqueceram numa larga medida os conflitos passados.
Sem o temor do comunismo, o radicalismo de direita das Forças Armadas identifica hoje outro tipo de inimigo preferencial (como os movimentos sociais) ou se volta de forma mais genérica contra o sistema político e a corrupção?
Para responder a essa pergunta, teria que estudar a produção da direita militar hoje, coisa que eu não fiz. Só posso dizer que o pensamento do “inimigo interno” é, desde a formação do Exército brasileiro, imutável e ao mesmo tempo “migrante”: nunca desapareceu, mas identificou ao longo do tempo inimigos diferentes – o separatista, o comunista, o criminal… – com características imaginárias comuns. O inimigo interno divide a nação, está a serviço do estrangeiro e é moralmente condenável. Ora, são características que a direita militar sempre atribuiu também ao mundo político, que dividiria a nação por seus conflitos partidários, seria vendilhão da pátria, corrupto e interesseiro. Na verdade, o inimigo identificado por essa direita militar é sempre o contrário, a imagem no espelho do “militar ideal”, um homem puro, desinteressado, firme, nacionalista…
Como se manifesta e que papel ocupa a “jovem oficialidade radical” de décadas atrás?
Como falei, hoje esses oficiais já estão na reserva. Alguns continuam a militância no Clube Militar, como vimos recentemente, ou em associações políticas, que têm geralmente por objetivo a defesa de uma memória positiva da ditadura. É muito difícil saber quais são suas conexões com o mundo da ativa.
Como a senhora percebe a atual conjuntura do pensamento militar, com o Ministério da Defesa sob comando civil e a presidência ocupada por uma ex-guerrilheira?
O “pensamento militar” em geral é algo dificilmente sondável, no passado como no presente, justamente porque os militares da ativa não são autorizados a adotar publicamente posições políticas. Além disso, não acredito que haja um pensamento militar. Para os oficiais que viveram e apoiaram o golpe e a ditadura, a chegada ao poder da Dilma foi obviamente uma derrota histórica e vista como uma ameaça. Quem é hoje tenente ou capitão e nem era nascido em 1964 não pode ter a mesma perspectiva sobre essa situação. Mas existe claramente uma “cultura institucional”, incluída uma “cultura histórica institucional”, que foi transmitida de geração em geração, e sobre a qual é importante influir democraticamente. Com a abertura de arquivos, a realização de pesquisas sobre o período e a divulgação dos trabalhos da Comissão da Verdade, por exemplo.
Moralismo e apolitismo e nacionalismo foram instrumentos fortes da ideologia linha-dura. Hoje eles parecem alimentar outros estratos conservadores da sociedade. Há o risco de uma nova onda reacionária baseada naqueles elementos?
É muito difícil dizer. Essa cultura política, autoritária, que não foi sempre nacionalista, existe no Brasil desde o início do século 20. Ela, em si, não provoca golpes de Estado e ditaduras. Mas me parece que o desprezo radical pelo mundo político, por ser considerado inerentemente corrupto, fraco e interesseiro – que eu não chamaria de “apolitismo”, mas de uma cultura “antipolítica civil” –, fragiliza qualquer democracia.
O conhecimento sobre o pensamento político do Exército é relativamente recente no Brasil e vem sendo estudado a partir de novas fontes, muitas delas ainda secretas. O que falta pesquisar sobre as Forças Armadas e sua participação na história brasileira contemporânea?
Falta pesquisar muita coisa, pois por enquanto há pouquíssimos arquivos liberados. Só sobre o período do regime militar, que conheço melhor, precisamos de arquivos para poder pesquisar as conexões entre facções militares e grupos ativistas civis, a integração da participação ao aparelho repressivo nas carreiras profissionais dos militares, e a evolução da formação dos militares no pós-ditadura, entre outras coisas
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/03/31/interna_pensar,30141/guerra-da-memoria.shtml. Envida por José Carlos.