Para pesquisador, o brasileiro está abandonando a sua histórica tolerância com a corrupção
SÃO PAULO – Nas imagens da TV, nas denúncias dos jornais, nas conversas de rua e em abaixo-assinados encaminhados ao Congresso Nacional, o tema da corrupção – um velho conhecido do debate público brasileiro – ganhou mais espaço nos últimos anos. Como você será informado na entrevista a seguir, pesquisas registram inéditos 74% dos cidadãos a considerarem “muito grave” o problema, que contamina amplos setores da sociedade, sem discriminação, de funcionários públicos a empresários, passando por políticos de todas as colorações ideológicas e até magistrados.
O trabalho responde à perplexidade causada essa semana pelas cenas exibidas pelo Fantástico no último domingo – quando um repórter se fez passar por gestor do Hospital Clementino Fraga Filho, no Rio de Janeiro, a combinar propinas e manipulação de licitações com representantes de empresas do setor de saúde. Indignação amplificada pela denúncia, feita pela reportagem do Estado, do envolvimento de 4 dos 12 desembargadores do Tribunal de Justiça do Tocantins em um esquema de corrupção e venda de sentenças.
O pesquisador rejeita a ideia de que a corrupção seja um fenômeno inevitável, inerente ao sistema político brasileiro e tributário de nossa herança ibérica: “Os EUA, no começo do século 20, eram considerados pelos europeus um país com níveis altíssimos de corrupção e mudaram essa percepção”. Vê alguns sinais de mudança expressos na mobilização pela Lei da Ficha Limpa e no aperfeiçoamento de instituições como a Polícia Federal, o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União (CGU). Mas alerta para o risco que a deslegitimação da classe política brasileira representa para nossa jovem democracia. O antídoto, diz Avritzer, vai além da faxina voluntarista empreendida pela presidente Dilma Rousseff – passa por uma série de reformas pontuais que altere o financiamento de campanhas eleitorais e as relações entre o Executivo e o Legislativo no País. “A corrupção só vai diminuir se o custo de ser corrupto aumentar.”
O que as cenas que vimos na TV revelam?
Elas mostram como a corrupção é uma via de mão dupla: é difícil falar em corrupto sem falar em corruptor. Não dá para falar em corrupção estatal sem falar na corrupção de grandes fornecedores que vivem de contratos com os governos federal, estadual e municipal. São cenas que preocupam, pois o Brasil tem um Estado relativamente grande, que não pode crescer mais – ele tem que ser eficiente. As imagens mostram por que o gasto social é tão pouco eficiente no País.
E quando a corrupção está entranhada em instituições que deveriam puni-la, como o TJ do Tocantins, outro caso divulgado agora?
O problema do Judiciário é que ele ainda tem um sistema de controle muito limitado de seus membros, em relação ao que existe nos outros dois poderes. É um absurdo que a lei orgânica que rege a magistratura date do período anterior à redemocratização e um desembargador condenado ganhe como punição a aposentadoria antecipada – isso é quase um prêmio por ter se corrompido. O advento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é uma tentativa de mudança, mas está apenas começando e enfrenta muita resistência, como vemos.
Existe diferença entre a corrupção para fins de enriquecimento pessoal e aquela para financiamento de campanha – como se tentou argumentar na época do mensalão?
Nenhum tipo de mau uso do recurso público é justificável. Sei que existe uma discussão frequente no Brasil sobre o péssimo sistema de financiamento de campanha – que, com o tempo, criou uma regra implícita de que se pode desviar dinheiro do Estado para financiar campanhas. Mas uma vez que você autoriza esse tipo de prática em relação aos gastos do Estado não é mais possível saber o que vai para o partido ou para o bolso da pessoa – o ilícito está autorizado. E ele deve ser punido.
Há quem diga que certa dose de corrupção é inerente ao sistema político.
A corrupção é um fenômeno com diferentes tipos de consequência: moral, financeira, política. Embora no Brasil não haja uma literatura tão vasta sobre o tema, nos EUA o debate é bastante comum. Por exemplo, existe um trabalho sobre Nova York feito nos anos 90 que mostra como a cidade, ao tentar controlar obsessivamente todas as formas de corrupção, reduziu demais a eficiência dos serviços públicos. A lição é de que, como não é possível controlar tudo, é preciso ter foco. Para voltar ao caso revelado pelo Fantástico, se o controle fosse feito em termos de quantos recursos são gastos ao ano por paciente ou sobre a mortalidade média no hospital, talvez tivesse sido possível evitar aquilo ali.
O sr. critica autores que consideram a corrupção um fenômeno quase ‘natural’ no País, ligado a nossa herança ibérica. Por quê?
Porque países com alta incidência de corrupção no passado conseguiram controlá-la. Os próprios EUA. No começo do século 20, eram considerados um país com níveis altíssimos de corrupção, o que preocupava demais os europeus, que já vislumbravam seu futuro de liderança. E os americanos conseguiram controlar essa corrupção. É exatamente isso que se debate com mais força no Brasil hoje: a possibilidade real de se controlar a corrupção. Porque a opinião pública quer, já não existe mais a ideia do “rouba mas faz” do (ex-prefeito e ex-governador de São Paulo entre as décadas de 40 e 60) Adhemar de Barros, e porque o Estado precisa ser mais eficiente para justificar os recursos que arrecada da população. Além disso, melhorou a ação de certas instâncias de controle do Estado brasileiro: a CGU, a PF, o próprio Judiciário.
É fato que a sociedade brasileira não aceita mais o ‘rouba mas faz’?
Em 2008 e 2009, fizemos no Centro de Referência do Interesse Público, uma série de enquetes. Vamos aplicar outra até o final deste ano. A ideia é ter uma série histórica sobre como a opinião pública brasileira vê a corrupção, que serviria para orientar políticas públicas para a área. A primeira coisa que a gente pergunta é se a corrupção é grave, muito grave, pouco grave ou nada grave. Hoje, 74% dos brasileiros a consideram muito grave, e mais 20% dizem que é grave. A corrupção está na ordem do dia como um problema que a população quer ver enfrentado pelo governo, a cidadania e o sistema político.
Mas será que essas pessoas que condenam publicamente a corrupção não a praticam no seu dia a dia?
A corrupção vem de um sentimento de impunidade. E o custo de ser corrupto no Brasil é baixo. Mas a sociedade brasileira está vivendo um processo de mudança em relação a algumas atitudes. Um exemplo é o visível anseio por punições mais rigorosas nos casos de acidentes de carro com morte relacionados ao alcoolismo. Nossa cultura sempre foi leniente na punição desses casos, mas parte significativa da sociedade está preocupada em botar um fim nisso.
A presidente Dilma anda às turras com sua base aliada no Congresso, mas a julgar pelos altos índices de aprovação de seu governo nas pesquisas, a ‘faxina’ atribuída a ela agradou ao eleitorado. É outro sinal de que a sociedade não aceita mais a corrupção?
Sim. Mas embora a presidente tenha dado um passo à frente ao dizer que não iria tolerar corrupção em seu ministério, não gosto da ideia de “faxina”. Pois a saída ou não de um ministro de determinada pasta não significa que a corrupção vá deixar de existir ou de que os “malfeitos” vão receber tratamento adequado por parte do governo. A corrupção só será de fato coibida no País no médio prazo, com o aprimoramento institucional dos órgãos de controle. O problema só vai diminuir se o custo de ser corrupto aumentar. A sinalização política de Dilma é importante, mas não basta.
Em que medida o presidencialismo de coalizão à brasileira favorece práticas escusas?
Uma coisa é o presidencialismo de coalizão, outra é ele tal como praticado no Brasil. Não existe, em princípio, nada de errado ou estruturalmente incorreto no fato de o presidente criar uma base forte, muito mais ampla que o partido dele, para governar. O problema não está aí, mas na ideia de que um ministério “porteira fechada” entregue a um partido seja usado para financiamento de suas campanhas. Aí temos um problema dos mais graves para o sistema político. Porque ele deslegitima não só o Congresso Nacional, mas o sistema como um todo, o que é ruim para a democracia. É preciso mexer no modo de distribuição de ministérios e no sistema de financiamento de campanha. A maneira como o presidencialismo de coalizão está sendo praticado no País leva, de fato, água ao moinho da corrupção.
Autores como Barry Ames acham que o sistema político brasileiro não funciona, pois produz crises sucessivas de governabilidade. Outros, como Fernando Limongi, sustentam que o importante na análise é a taxa de aprovação de propostas do Executivo, que gira em torno de 71%. Quem tem razão?
Nosso Executivo tem capacidade de governar, mas paga um preço alto demais. É claro que se quer que um governo consiga aprovar uma parte grande das propostas que ele leva ao Congresso. O problema é como ele consegue essa taxa de sucesso e o que isso vai deixar de rastro. E esse “como”, a gente sabe, é através de emendas parlamentares mandando recursos a associações, prefeituras e lugares onde são frequentemente mal utilizados. No fim do ano passado surgiu uma proposta de inovação interessante, de os prefeitos pedirem diretamente as obras que querem ver incluídas no orçamento e isso deixar de ser função do parlamentar. Pessoalmente, sou a favor. Quem tem que dizer quais são as obras prioritárias são as prefeituras, as cidades. E o parlamentar tem que cuidar de questões legislativas e que não estejam tão diretamente ligadas financeiramente a sua base de apoio eleitoral.
O sr. cita como marco zero do aprimoramento das instituições de controle do País a Constituinte de 1988. De lá para cá, quais delas se aperfeiçoaram?
O Tribunal de Contas da União (TCU) já existia antes da Constituinte, mas a lei orgânica de 1992 deu a ele um conjunto de atribuições novas que o ajuda a desempenhar melhor seu papel – um exemplo é a possibilidade de interrupção de obras. A CGU, que começou a atuar entre 2002 e 2003, também tornou-se muito importante pelo controle que exerce dentro do próprio governo, no momento em que ele está realizando suas ações. E a PF tem sido fundamental por seu papel de coibir a corrupção, especialmente nos casos de crime organizado, e também por ser uma instituição que melhorou demais a qualidade dos processos que realiza – o que, com o tempo, terá impacto no número de casos efetivamente punidos no Judiciário. Mas é preciso fazer mais.
Qual é o nó na questão da impunidade?
O problema da presunção de inocência. Tal como ela é entendida pelo nosso Judiciário, torna a punição muito complicada. A condenação de uma pessoa em duas instâncias já deveria ter alguma consequência. Frequentemente, no entanto, pode-se recorrer até ao Supremo Tribunal Federal – e o que a gente verifica é que, dos cerca de 5 mil recursos que chegaram até ele, apenas 7 foram aceitos. Ou seja, ir ao STF transforma-se em mero subterfúgio para adiar a punição. É preciso rever isso.
Para alguns, a reforma política é a ‘mãe de todas as reformas’ que o Brasil precisa fazer. Outros a consideram uma ‘falsa panaceia’. Qual é sua opinião?
Eu defendo a reforma política, mas concordo também que ela é frequentemente tratada como panaceia. Uma reforma só será possível no Brasil se ela for pontual: essas propostas generalizantes que apareceram nos últimos anos, alterando todas as regras do sistema político, são impossíveis de serem aprovadas no Congresso. Em segundo lugar, ela precisa de uma participação mais ativa da sociedade civil. Uma proposta como a (Lei da) Ficha Limpa estaria guardada em alguma gaveta do Congresso se não tivesse sido proposta pela sociedade e entrado na Câmara com 1 milhão de assinaturas, com forte apoio da imprensa.
E quais seriam os pontos dessa reforma?
Um ponto é o financiamento público de campanha, que nem precisa ser exclusivo, mas garanta um montante suficiente para viabilizar uma candidatura. O que temos de criar é uma equalização no sistema, pois como ele está hoje a gente ouve a queixa de que “não dá para concorrer sem botar a mão no dinheiro sujo”. É papel do Estado criar essa alternativa. Outro ponto diz respeito à relação entre o Executivo e o Legislativo. Infelizmente, todos esses problemas que comentamos aqui tornaram o Legislativo um poder muito mal avaliado pela opinião pública brasileira. E um dos desafios da democracia brasileira neste momento é aumentar a legitimidade do Poder Legislativo. Atualmente ele se encontra espremido entre dois poderes: um que é forte desde 1930, o Executivo, e outro que é forte desde 1988, o Judiciário. É preciso, entre outras coisas, criar um corpo técnico de qualidade no Congresso para ajudar o parlamentar a decidir e preparar seus projetos. Hoje o que existem são assessorias eleitorais.
Essa semana uma operação da Justiça italiana prendeu 40 pessoas, entre elas 16 juízes que colaboravam com a máfia. Alguns cientistas políticos chamam a atenção para a crise institucional que houve na Itália após a Operação Mãos Limpas. Uma faxina em grande escala traz riscos à democracia?
A ideia de que se você retirar um grande grupo de pessoas do sistema político fará com que ele se torne imediatamente honesto, limpo e eficiente depois disso não se sustenta. A Itália está aí para mostrar que não é assim. Provavelmente houve mais corrupção na era Silvio Berlusconi (do partido Liga Norte), depois da Operação Mãos Limpas, o que no período Bettino Craxi (primeiro-ministro de 1983 a 1987), quando ela começou. Isso porque as instituições se fragilizaram, a Itália se tornou praticamente um país sem partidos e abriu espaço para o populismo que vimos nos últimos anos. Por isso, meu argumento é de que o Brasil combata a corrupção com uma agenda positiva, que é a do fortalecimento dos órgãos de controle mais a realização da reforma política. Só assim avançaremos na direção de uma democracia estável e de qualidade mais alta.
http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,cenas-de-ilicitude-explicita,852846,0.htm. Envida por José Carlos.