A ação do MPF contra torturador da ditadura, por Luís Fernando Camargo de Barros Vidal*

Em boa hora o Ministério Público Federal ofertou denúncia criminal contra Sebastião Curió, acusando-o de sequestro na guerrilha do Araguaia. A primeira das acusações foi prontamente rejeitada por um juiz federal, que com prontidão e velocidade inversamente proporcionais à longevidade dos crimes imputados, qualificou a iniciativa como desprovida de suporte legal e legitimidade social. Expressou certa consciência social e institucional que deve ser avaliada.

A ideia central da acusação está no fato de que várias vítimas simplesmente desapareceram pelas mãos de agentes da repressão e que delas nada mais se sabe. Para o direito penal, isto é sequestro, um crime permanente cuja consumação se perpetua e só termina com a restituição das vítimas à liberdade. Deste modo, o crime não está sujeito à anistia e nem à prescrição, pois está a acontecer ainda hoje.

Setores sociais temerosos da Verdade e da Justiça argumentam que a acusação é uma ficção porque sabemos que as vítimas morreram e até uma lei as reconheceu como tal. O argumento é falso. O direito processual penal tem como dogma a busca da verdade. A verdade deve ser construída num procedimento judicial a partir de instrumentos e mecanismos de prova que lhes garanta o caráter de racional. A verdade racional é a verdade pesquisada e provada. Não existe verdade sabida. E a morte, no processo penal, só tem um jeito de provar: mostre-se o corpo (art. 158 do Código de Processo Penal). Por isso, nem mesmo a lei que reconheceu a morte civil das pessoas desaparecidas (Lei n.º 9.145/95) pode gerar qualquer efeito no processo criminal, apesar de querê-lo (art. 1.º).

Processos

Portanto, o Poder Judiciário só tem uma forma de abordar o problema conforme o princípio constitucional do Devido Processo Legal: autorizar a abertura dos processos criminais, permitir a produção das provas e dar aos valorosos e corajosos agentes da repressão o direito constitucional de permanecer em silêncio, ou de produzir a defesa que lhes convém. Assim faz com ladrões de bicicleta, assim deve fazer com todos. Afinal de contas, a Justiça é cega porque não faz distinções de classe origem, condição social e política! Ou será que não?

Outro argumento reside na decisão do STF que validou a auto-anistia dos agentes da repressão, dizendo-a conforme a Constituição Federal (ADPF n.º 153), a impedir os processos. Só que a decisão não se aplica ao caso, pois o crime de sequestro é permanente, está a acontecer ainda hoje (art. 4.º do Código Penal) e, portanto, não foi alcançado pela Lei de 1979. Mas, ainda que se entendesse aplicável o entendimento do STF, haveria de se ponderar que é só um entendimento de uma corte nacional e interna, que não fez nada além de examinar a constitucionalidade de uma certa interpretação da Lei de Anistia. Há, ainda, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que examinou o problema à luz das convenções internacionais de direitos humanos e respondeu não à auto-anistia. Daí que, não é correto afirmar que existe a tal da coisa julgada impeditiva dos processos criminais, pois se os juízes não podem declarar a auto-anistia inconstitucional, podem declará-la anticonvencional com o suporte da corte internacional. Há, aqui, um desafio colocado ao corpo judiciário: vai se comportar como cordeirinho para o STF ou agir com independência em direção à Corte Interamericana?

Pacificação

A Justiça, sabe-se, foi instaurada para pacificar. Leis não se prestam a isso. São meros instrumentos de pacificação, se e quando bem interpretadas e aplicadas. Dizer que a Lei da Anistia pacificou o país e assim negar acesso das vítimas ao Judiciário é um absurdo. Primeiro porque desqualifica a razão de ser do sistema de justiça. Depois, e não menos importante, porque significa recusar a presença e o clamor das vítimas que batem às portas dos tribunais. Que Justiça é essa?

Curió, na língua nativa, é a ave Amigo do Homem, caçada e aprisionada pelo seu canto apreciado. O acusado Sebastião, pelo que a história nos dá a saber, é o caçador. Talvez, segundo a sabedoria popular, é amigo dos ‘home’ e tem boas razões para estar tranquilo e calcular que nada lhe acontecerá. As regras do jogo foram dadas pelos artífices da ditadura militar e sua política de abertura controlada, que no plano normativo tiveram solo fértil na cultura jurídica positivista e formalista. Lamentavelmente, a julgar pelo que vemos, o Poder Judiciário ainda está sob o jugo dessas regras, tem um pacto de bem viver com elas e não está preparado para dar um passo decisivo para a consolidação da democracia no país.

E ainda desqualifica as iniciativas que o convocam a mudar como desprovidas de legitimidade social! Se não mudar, fica a lembrança da música de Caetano que fala ‘enquanto os homens exercem seus podres poderes…’ Que nos salve a heróica iniciativa do Ministério Público Federal. Que a escutem alguns juízes!

*Luís Fernando Camargo de Barros Vidal é juiz de direito em São Paulo, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.

http://carosamigos.terra.com.br/index2/index.php/artigos-e-debates/2673-artigo-analisa-acao-do-mpf-contra-torturador-da-ditadura

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