João Paulo
Um dos maiores pensadores contemporâneos, aos 90 anos Edgar Morin é um homem do mundo. Na verdade, um homem que acredita que o mundo é possível, mesmo afundado em crises. Crítico do pensamento científico, militante de causas libertárias, defensor de um método de interrogação da realidade que não admite fronteiras de saber, Morin construiu uma obra que vai da sociologia à filosofia, passando pela antropologia, história e política. A palavra que melhor define o pensamento de Morin é complexidade, uma provocação que inspira sua obra mais significativa, O método, em seis volumes, que o ocupou por 27 anos, de 1977 a 2004.
Dono de um patrimônio corajoso de conhecimento em várias áreas do saber, Morin foi sempre um ser de risco, que desafiou certezas e lugares acadêmicos em nome do diálogo e do inacabamento. Sem se ligar a paradigmas, fez do pensamento do presente e da crise contemporânea o fulcro de seu pensamento, que deu a ele o papel de porta-voz privilegiado do chamado pensamento do Sul, incluído aí o Brasil, país que frequenta assiduamente. Inspirado por um humanismo questionador, em Morin não se separam vida e obra.
Em sua vasta bibliografia estão presentes alguns volumes em que fala de si e de sua família, da relação com o pai, da perda da mãe, da militância política, do encontro com a poesia, das experiências em vários países e contextos culturais. O mais pessoal de seus livros acaba de ser lançado no Brasil, Edwige, a inseparável, uma longa meditação sobre a perda de seu maior amor, a mulher Edwige, vítima de câncer. Reunindo reflexões, memórias, diários e depoimentos, o livro é um acerto de contas com a vida e uma corajosa aproximação com a experiência da morte.
Edgar Morin conheceu Edwige em 1961 e logo se sentiu atraído por ela, reencontrando-a em vários momentos de sua peregrinação sem fim pelo mundo, até se casar com ela em 1978. Os dois, já maduros, vinham de relacionamentos anteriores, tinham filhos, amigos e uma vida estabelecida. Mantiveram relação clandestina. A união, em casos assim, tende a temperar a paixão com uma temporalidade mais alargada, sem pressa, na qual os carinhos do dia a dia constroem uma narrativa singular.
É assim que o leitor fica conhecendo um casal que decora sua casa como um ninho, cheio de pequenos mimos, que convive com uma gata preguiçosa, que faz das separações das muitas viagens momentos de reflexão e troca de presentes, que constrói um refúgio no interior da França, que cultiva os amigos e ama a música, principalmente as sinfonias de Beethoven. Tudo parece muito singelo, mas aos poucos Morin vai incorporando à narrativa momentos de dor e sofrimentos passados.
Edwige foi uma mulher que sofreu, que foi criada sem o pai, sem amor pela mãe, afastada da instável irmã gêmea, que perde o amor do primeiro marido – a quem trai (nada precisa ser escondido nessa altura da vida) – e tem uma relação difícil com a única filha. Morin é um homem que também carrega seus demônios e perdas. O encontro dos dois, que vai se prolongar por quase 30 anos, até a morte de Edwige, é sua mais profunda experiência de amor. Inseparável.
O sofrimento com a doença foi também cruel. Há como uma homologia entre a perda de vitalidade e os fatos da vida de Edwige, como se o câncer fosse uma criação que ganhasse força contra a vida, em razão da derrota do desejo frente a tantas determinações da existência. “Ela era atacada em diversas frentes: pulmões, tumor, ossos e pele. Quando era subitamente presa por fortes dores, me olhava com enormes olhos surpresos, e isso me fazia desmoronar. Por outro lado, a presença do gás carbônico no sangue, da cortisona, do Ventoline, tudo isso provocava nela uma enorme irritação e nervosismo. Às vezes, parecia que sua mãe tinha vindo se instalar nela, com seu autoritarismo”, registra Morin.
Dia a dia
A crônica da história de Edgar e Edwige, pela dimensão dos personagens, seria já em si exemplar. No entanto o mais tocante do relato está na proximidade da morte. Edwige sofre de câncer, não um, mas quatro, que a prendem à cama e depois a conduzem à morte. O livro é registro do encontro e da perda, permeado por tentativas de decifração do mistério do amor. Em meio a reflexões de origem psicanalítica, Morin se força a compreender Edwige e nela a raiz de seu desejo de amar. Como na sentença de Montaigne, o amor dissolve as diferenças: “Porque era ela, porque era eu”.
No diário do fim, Morin repassa seu empenho em estar próximo da mulher, as dificuldades do tratamento, perda de confiança na ciência, a busca de tratamentos alternativos e mágicos, com a presença de feiticeiros e xamãs, a decisão de se tratar em casa. A solidão vai aplainando a emoção até que Edgar se vê só. Resta cumprir o trabalho do luto e tentar retomar a vida, já na casa dos 90 anos.
Em alguns momentos, o livro lembra Carta a D – História de um amor, de André Gorz (1923-2007), em que o também sociólogo e filósofo francês (que em alguns pontos, como a recusa ao convencionalismo, se aproxima de Morin) homenageia a mulher Dorine, com quem viveu por quase 60 anos. Dorine sofria uma doença degenerativa, decorrente de um erro médico. No entanto, diferentemente de Edgar Morin, a cerimônia de adeus de Gorz e Dorine termina num suicídio duplo.
Edwige, a inseparável é um livro de desespero e esperança, de intimidade e confissão pública do sofrimento, de homenagem à mulher e de memória do que se foi para sempre. Quando, emocionado, o leitor chega ao meio do livro, com o suave apagamento da chama de Edwige em 29 de fevereiro de 2008, Morin passa a narrar como se esforçou para seguir sua vida sem a presença do amor. E, o mais impressionante, é que a tristeza e sofrimento, mesmo reais e pungentes, não apagam a vontade de viver. Embora haja choro e dor, a música de Beethoven começa a ser ouvida novamente.
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/02/18/interna_pensar,25113/a-morte-na-vigencia-do-amor.shtml. Enviada por José Carlos.