Sonho haitiano chega a Minas

Myonel Zamor quer "aprender de tudo", como outros 27 companheiros do Haiti, que desembarcaram neste mês em BH, na expectativa de melhorar de vida

Empresas da construção civil da Grande BH e da Zona da Mata contratam trabalhadores que deixaram Porto Príncipe, no Caribe, oferecem treinamento e já planejam mais vagas

Paula Takahashi

O francês e o dialeto crioulo africano se revezam na condição de nova língua oficial de um canteiro de obras localizado na região Nordeste de Belo Horizonte. Ainda sem muita habilidade com as ferramentas, nove haitianos aprendem a manuseá-las, assim como a pronunciar os próprios nomes de batismo no português apoiados por uma cartilha ilustrativa. Nela aparecem, como na didática usada na alfabetização de crianças, as palavras separadas em sílabas acompanhadas pela respectiva ilustração.~

Dominado por um misto de desconfiança e receio, sentimentos típicos de um estrangeiro recém-chegado, Jeune Saintanier, de 25 anos, não fala muito, apenas revela o objetivo de melhorar a qualidade de vida que tinha em seu país, uma das nações mais pobres do mundo. Para isso, está disposto, assim como seus companheiros, a “aprender de tudo”, como reforça Mynoel Zamor. Sem dar muitos detalhes de como chegaram no Brasil, eles contam que levaram sete dias entre Porto Príncipe, capital do Haiti, e Brasiléia, no Acre, onde se refugiaram por dois meses.

A história que já foi contada por brasileiros atrás do sonho americano a partir da fronteira do México, submetidos a ação dos chamados coiotes (agenciadores ilegais de mão de obra), parece se repetir. Porém, diferentemente do fardo de muitos brasileiros, reclusos na ilegalidade, os haitianos exibem CPF – curiosamente, a maioria deles iniciada com a sequência 549 – carteira de trabalho, PIS e visto humanitário concedido pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho.

Jeune Saintanier foi um dos 28 haitianos que chegaram a Belo Horizonte no dia 10, contratados por uma construtora sediada na capital que não quis ser identificada. Com os colegas, Saintanier está alojado em um imóvel custeado pela empresa – o aluguel varia entre R$ 800 e R$ 1 mil para cada um dos três apartamentos locadas. O grupo tem alimentação, cesta básica e todos os direitos previstos pelo sindicato local da categoria, inclusive o piso salarial.

A notícia da chegada desses trabalhadores ao Acre chamou a atenção do proprietário da construtora, Carlos Maschetti. Diante da dificuldade de encontrar gente disposta a trabalhar no canteiro de obras, ele não viu melhor alternativa que recorrer à mão de obra estrangeira que inundou a fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru. “Outras empresas despertaram o mesmo interesse e foram atrás para recrutá-los”, conta.

Na cidade de Brasiléia, a palavra mágica para atrair a atenção dos interessados era “maçon”, pedreiro em francês. “Eles levantavam a mão como forma de demonstrar experiência na construção civil e disponibilidade para trabalhar”, explica Carlos Maschetti. O processo seletivo se resumiu à linguagem de sinais, uma apresentação da empresa e ao acordo salarial. Numa van alugada pela construtora, o grupo enfrentou jornada de três dias do Acre à capital mineira. Aqui, os haitianos foram submetidos a exames médicos e admissionais e já assumiram o posto de trabalho em pelo menos quatro canteiros de obras espalhados pela Região Metropolitana.

Dispostos a trabalhar – A experiência no setor que eles declararam ao chegar ao Brasil não se confirmou. “Detectamos que alguns deles são motoristas”, conta Carlos. “Mas entendemos a situação. Eles disseram que, se não falassem que eram pedreiros, não conseguiriam sair de lá”, reconhece. Os próximos passos, agora, são um programa de qualificação, apresentação de ferramentas e técnicas de construção. Mas o construtor garante que o mais importante eles já demonstraram: vontade de trabalhar. “Eles são muito alegres, atenciosos e estão muito dispostos. Os resultados até agora são satisfatórios”, afirma.

Animado, o dono da construtora planeja uma viagem à capital do Haiti, Porto Príncipe, em agosto, quando pretende trazer 100 pessoas para integrar os canteiros de obra na Grande BH. “Eles aprendem rápido o serviço. É preferível ter uma margem menor por conta da alta dos custos, mas entregar as obras.”

Bom desempenho vira alternativa na indústria

Grupo de imigrantes que estão trabalhando em Tocantins será reforçado com a contratação de mais 30 trabalhadores, que também vão receber o piso salarial da categoria e benefícios sociais

Na Tocantins mineira – cidade da Zona da Mata distante 277 quilômetros de BH –, um grupo de 19 haitianos uniformizados e munidos de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) reforça o quadro de funcionários da Empac, empresa especializada na produção de artefatos de concreto. A diversidade no quadro de pessoal não é algo novo, uma vez que alguns dos 400 empregados deixaram outros estados para trabalhar na cidade. As dificuldades de contratação de mão de obra levaram a Empac a seguir o mesmo caminho das pedras até Brasiléia.

“Fomos informados de que outra empresas já estavam na segunda leva de admissões diante do resultado positivo”, conta o gerente de gestão da qualidade da Empac Adilson Ferraz Cordeiro. E lá foi a empresa, com a expectativa de trazer 20 haitianos. “Na segunda semana de fevereiro fizemos a viagem. Por intermédio do governo do Acre fizemos entrevistas e selecionamos aqueles que demonstraram mais aptidão para trabalhar na área”, lembra Adilson.

Os trabalhadores desembarcaram no Aeroporto Internacional Tancredo Neves, de Confins, e seguiram de van até Tocantins. “Quando chegaram, a casa já estava montada. Tivemos o cuidado de traduzir os procedimentos de segurança para o crioulo africano, fizemos cartilhas ilustrativas e estamos realizando o treinamento em espanhol, que um deles compreende bem e repassa para os demais”, explica o gerente da Empac.

Do canteiro de obras para rede de fast food

Relatório da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos do Acre registra a busca de empresas de todo o Brasil pelos operários haitianos que desembarcaram no estado, a maioria delas da construção civil. Entre as maiores, está a Odebrecht, que recrutou um grupo de 42 trabalhadores para obras em Paranaíta, na divisa do Mato Grosso com o Paraná, onde a gigante da construção pesada constrói a hidrelétrica Teles Pires. A empresa ainda está em processo de seleção de outros 100 haitianos para a usina hidrelétrica Santo Antônio, em Porto Velho (RO). Os contratados vão desempenhar as funções de carpinteiro, pedreiro, eletricista e encanador.

Grupos de haitianos foram direcionadas para Porto Alegre (RS), várias cidades de São Paulo, como Limeira e Soão José do Rio Preto, Curitiba (PR) e Goiás. Até o McDonald’s os recrutou. Pelo menos 14 refugiados foram levados para Florianópolis, para trabalharem em uma das unidades da rede de fast food no Beiramar Shopping, um dos mais consagrados centros de compras da capital catarinense. Por meio da assessoria de imprensa, a Sadia informou que já sondou a possibilidade de recrutar haitianos para suas unidades fabris, mas não confirmou a conclusão do processo. Além disso, garantiu que esses trabalhadores não seriam destinados à fábrica em Uberlândia, no Triângulo Mineiro.

Daqui para o futuro

Mercado aberto

A entrada dos haitianos nos canteiros de obras está longe de ser entendida como uma ameaça aos postos de trabalho dos brasileiros. Com o déficit de mão de obra em setores como a construção civil, a imigração a procura de trabalho tende a crescer e a encontrar guarida nas empresas. Osmir Venuto da Silva, presidente do Sindicato Marreta, que representa os trabalhadores do setor da construção em Belo Horizonte e Região Metropolitana, vai logo dizendo que “há espaço para todo mundo.” A instituição estima que somente na Grande BH a atividade sofra com a carência de 40 mil pessoas. “Existe um otimismo muito grande por parte das empresas, que acreditam que o aquecimento da economia vai durar, pelo menos, mais cinco anos”, pondera Venuto. O diretor da área de política e relações trabalhistas do Sindicato da Indústria da Construção Civil de Minas Gerais (Sinduscon-MG) Ricardo Catão Ribeiro, afirma que as empresas têm autonomia para buscar solução ante a escassez de mão de obra, desde que a legislação trabalhista seja respeitada.

Norte é o porto de contratação

De Brasiléia para Manaus, só mudou o endereço de haitianos, que atraem indústrias de todo país, agora com vistos limitados

Com mais de 2,2 mil haitianos recrutados em Brasileia, no Acre, já não há mais mão de obra para oferecer às empresas. “Elas (as empresas) ligam todos os dias”, conta o secretário de Justiça e direitos humanos do governo do Acre, Nilson Mourão. O fluxo de pessoas vindas da ilha do Caribe começou em 2010, quando o país viveu um dos piores terremotos de sua história. O desastre foi responsável por mais de 200 mil mortes e destruiu a já fragilizada infraestrutura urbana abalada pelas inúmeros guerras civis.

A alternativa para pelo menos 4 mil haitianos que entraram no Brasil no ano passado, segundo estimativas do Ministério da Justiça, foi recorrer à ilha de prosperidade brasileira, imagem que corre o mundo. Entre outubro do ano passado e janeiro deste ano, a imigração se intensificou, fazendo com que o número de refugiados ultrapassasse a casa de 2 mil apenas no Acre.

Amparados pela igreja local, que dá comida e abrigo, os haitianos viraram notícia em todo o país, chamando a atenção das empresas. “Muitos pediam para mandar 40 pessoas. Não mandamos ninguém”, conta o secretário Mourão, do Acre. “O que fizemos foi intermediar a conversa entre os contratantes e aqueles que estavam dispostos a sair daqui”, pondera.

A maioria das empresas oferece salários que superam os R$ 800, o equivalente a U$S 420. “No Haiti, o menor salário pago no país é de US$ 150. Aqui, elas concedem, ainda, outros benefícios, além de alojamento e alimentação”, diz o secretário do Acre. Esgotada a fonte, a atenção se volta, agora, para Manaus, no Amazonas, onde os haitianos aguardam uma oportunidade de trabalho. “Nos últimos 15 a 20 dias chegaram entre 1,3 mil e 1,4 mil haitianos que ficaram retidos na fronteira, na cidade de Tabatinga, aguardando liberação do governo”, conta o padre Gelmino Costa, titular da paróquia São Geraldo e Pastoral do Migrante, que acolhe os recém-chegados.

Gelmino conta que em 12 de janeiro, quando o governo deu ordem para que os vistos fossem liberados rapidamente, como caminho natural, os haitianos começaram a chegar a Manaus. O fluxo vem se reduzindo já que, há cerca de um mês e meio, começaram as contratações por empresas do Paraná, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul aqui.

Para evitar uma nova onda migratória, o governo brasileiro divulgou a Resolução Normativa 97/2012, limitando a 1,2 mil o número de vistos concedidos a haitianos por ano. A medida determina que o visto seja concedido por razões humanitárias e pelo prazo de cinco anos. Além disso, a requisição deve ser feita diretamente na Embaixada do Brasil no Haiti, na capital, Porto Príncipe. Assim, os trabalhadores já vão desembarcar no país regularizados, sem a necessidade de se submeterem as dificuldades vividas pela primeira leva de haitianos. Todos aqueles que chegaram no país antes de publicada a resolução no Diário Oficial receberam o visto de permanência.

A Empac, que contratou haitianos para trabalhar em Tocantins, na Zona da Mata mineira, quer repetir a experiência e enviou um de seus gerentes a Manaus para recrutar 30 imigrantes. “Eles estão comprovando que são pessoas trabalhadoras e dão bons resultados”, diz o gerente da empresa Adilson Ferraz Cordeiro. O novo grupo deverá chegar neste fim de semana.

Memória
À procura de saídas


Em 12 de janeiro de 2010, Porto Príncipe (foto) foi surpreendida por um terremoto devastador, de magnitude de 7 graus na escala Richter, deixando 230 mil mortos e 1 milhão de pessoas desabrigadas. A economia do país de 9 milhões de habitantes encolheu 7% e a taxa de desemprego alcançou inimagináveis 80%. Antes do desastre, os haitianos já vinham sofrendo com indicadores desastrosos, como a taxa de alfabetização de 53% e a esperança de vida de 61 anos.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/cadernos/economia/2012/02/19/interna_economia,25510/norte-e-o-porto-de-contratacao.shtml. Enviada por José Carlos.

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