O terror na foto de Herzog

Jornal do Sindicato dos Jornalistas de São PauloFoto do jornalista Vladimir Herzog morto em uma cela, em 25 de outubro de 1975; fotógrafo revelou a farsa do "suicídio"

Luiz Caversan*

A Folha deste domingo revela, por meio de excelente reportagem de Lucas Ferraz, nome e endereço do autor daquela que talvez seja a foto mais icônica do imaginário político brasileiro do século passado, a em que o jornalista Vladimir Herzog aparece atado pelo pescoço a uma tira de pano, morto.

Dada como resultado de suicídio, a morte de Herzog, sabe-se agora, foi registrada já consumada pelo santista Silvaldo Leung Vieira, então aprendiz de fotógrafo da Polícia Civil de São Paulo, convocado para a missão pelos órgãos de repressão política centralizados no Doi-Codi de São Paulo.

Vieira conta como foi chamado a registrar o “suicídio” e instado a manter silêncio a respeito, corroborando, segundo ele involuntariamente, a farsa montada pelo terror estatal que atemorizava a chamada sociedade civil sob ditadura.

Como bem destaca o texto de Lucas Ferraz, a morte de Herzog, e logo depois, em circunstâncias semelhantes, a do operário Manuel Fiel Filho, colaboraram decisivamente para apressar o desmonte do chamado aparelho repressor do Estado –que tinha entre suas estrelas o famigerado delegado Sérgio Paranhos Fleury.

A foto montada escancarava a desfaçatez do crime e comprometia definitivamente seus autores. Mas isso soube-se depois, porque para quem estava vivendo na própria pele os acontecimentos daqueles dias tenebrosos, a fotografia não serviu de nenhum alívio ou alvíssara, muito ao contrário. Aumentou o medo de um regime que, aquela era uma prova aterrorizante, passara de todos os limites.

Então com 20 anos e cursando jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, eu vivia intensamente a movimentação dos estudantes no esforço de resistência democrática. Assim como a maioria, não pertencia a nenhum partido, agremiação ou movimento político de qual tendência fosse. Fazia parte dos que eram contra a ditadura e contra ela lutavam com as armas de que dispunham, bem poucas, aliás: panfletos, passeatas, assembleias, e muita, muita indignação por não poder ler, falar, pensar, fazer o que não estivesse permitido pelos militares.

Ao tomar conhecimento da morte e posteriormente da foto de Herzog (jornalista querido e respeitado da TV Cultura de São Paulo, que era tão letal para a ditadura assim como quase todos nós, “do contra”…) o sentimento que nos assaltou não foi nem um pouco alentador.

Se os caras têm a ousadia de matar o Herzog e apresentar como prova de suicídio uma fotografia tão ridícula, ele com os pés arrastando no chão, do que mais são capazes?

Esta pergunta estava na cabeça de cada estudante, cada professor, militante ou simpatizante que compareceu em massa (cerca de 8 mil) ao culto ecumênico realizado em memória de Herzog na catedral da Sé, corajosamente comandado pelo Don Paulo Evaristo Arns, mais o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright dias depois do assassinato.

Todos ali, estava claro, eram passíveis do mesmo tratamento recebido pelo Herzog, todos temíamos ser presos, mortos e fotografados como ele, apenas pelo fato de reivindicarmos democracia.

Pode parecer piegas, mas o medo que me dominava por aqueles dias –inclusive sendo fotografado pelos “fotógrafos” da repressão na praça da Sé– , é um sentimento do qual jamais vou esquecer e que só aumentou com a morte em seguida de Fiel Filho e ainda a prisão de muitos outros cidadãos, entre eles, amigos e professores da minha faculdade.

Somente a perspectiva histórica proporcionada pelo tempo permitiu perceber que a iconografia daquela foto apressou o fim dos poder paralelo dos porões da tortura.

Mas em 1975, 76, 77 e mais, aquela imagem triste de Herzog contra a parede fria do cárcere assombrava a todos os que sonhavam com um país justo e um povo livre: era tão somente o emblema do horror, o horror…

Quase quatro décadas depois, é muito importante que esta luz seja introduzida sobre o período vergonhoso de nossa história, em que se prendia em nome da liberdade e se matava em nome da vida.

Lembrar para nunca esquecer que a história se constrói com a memória dos que por ela morreram, eis uma atitude que sustenta a democracia.

*Luiz Caversan é jornalista e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos “Cotidiano”, “Ilustrada” e “Dinheiro”, entre outras funções. Escreve aos sábados para a Folha.com.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizcaversan/1044248-o-terror-na-foto-de-herzog.shtml. Enviada por José Carlos.

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