Ameaçados e agredidos por alunos, professores sofrem de estresse pós-traumático
Márcia Vieira / Rio – O Estado de S. Paulo
A primeira ameaça veio após 23 anos de magistério. “Você é muito abusada. Aqui nesta escola não se manda bater. Se manda matar.” Nádia de Souza, de 55 anos, sentiu as pernas tremerem e o coração disparar, mas insistiu. Por cinco meses, apartou brigas entre alunos e ouviu barbaridades, como a do menino de 13 anos que colocou a mão em formato de pistola na sua cabeça e disparou a sentença: “Você aqui não é nada”.
Nádia é professora por vocação. Formada em Ciências Sociais, História e pós-graduada em História da África, recebeu prêmios por resultados com alunos do ensino fundamental de uma escola em Realengo, na zona oeste do Rio, e de Botafogo, na zona sul, no pé da favela Dona Marta.
Sempre achou que valia a pena ensinar, apesar das salas superlotadas e do salário baixo (com horas extras e matrícula em duas escolas, ganha em torno de R$ 3 mil). Há um ano, depois das ameaças num colégio no Centro, está em tratamento psiquiátrico. Toma antidepressivos, não sai de casa sozinha e nunca mais pisou em uma escola. Só de passar por perto tem taquicardia e falta de ar. “Eu ando na corda bamba.” O nome científico para o mal que a aflige é síndrome do estresse pós-traumático, doença psíquica que começou a ser diagnosticada nos anos 1960 com ex-combatentes da guerra do Vietnã.
Casos como o de Nádia mostram como estão tensas as relações nas salas de aula. É um fenômeno nacional, que não se restringe às escolas de periferia. Em São Paulo, segundo dados do Observatório da Violência do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), os casos de agressão a professores cresceram 40% por semestre nos últimos três anos.
Em Minas, agressão física e verbal a professor virou tão frequente que o Sindicato dos Professores das Escolas Particulares acaba de lançar uma campanha. O slogan é “Tem algo de errado na escola. Está na hora de corrigir”.
O disque-denúncia aberto para ouvir as queixas dos professores mineiros registrou em oito meses um caso de violência contra docentes a cada três dias. “Um conjunto de fatores leva a esse processo. O professor perdeu prestígio. A sociedade está mais violenta. Só que ficamos jogando lixo debaixo do tapete. Não são tomadas medidas para enfrentar o problema”, diz Gilson Reis, presidente do sindicato dos professores da rede particular de Minas.
Ainda não se sabe o tamanho do problema. “Precisamos de dados sobre violência nas escolas. Não temos ideia do que acontece no ambiente escolar”, diz Miriam Abramovay, coordenadora de Juventude e Políticas Públicas da Faculdade Latino-Americano de Ciência Sociais, que investiga o tema há dez anos.
Mas há pistas. Uma pesquisa realizada pelo Apeoesp em 2006 mostra que os professores apontam a superlotação das salas e a aprovação automática como as maiores causas do aumento de violência dentro de sala. “A escola foi esvaziada nos últimos anos”, arrisca Edna Félix, diretora do sindicato dos professores do Rio. “Não tem mais o professor que ajudava na organização da sala, o supervisor pedagógico, o professor-substituto. Não tem inspetores em número suficiente. O professor hoje não tem tempo para preparar aula. E entrar numa sala com 40 alunos sem ter planejamento é uma loucura.”
Apesar disso, segundo Edna, os professores não gostam de denunciar. “No ano passado, a direção de uma escola em Vila Isabel foi agredida, os alunos fizeram motim, parecia revolta de presídio. E ninguém quis dar queixa. Há uma pressão grande da coordenação regional e da Secretaria de Educação para não tornar os casos públicos”, diz.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio, em 2010 apenas dois casos de agressão a professores tiveram sindicâncias abertas.
A coleção de horrores que Edna acompanha é variada. Um aluno de 13 anos quebrou o dedo da professora de português porque ela mandou que ele desligasse seu tocador de MP3. Numa escola da zona norte, duas alunas colocaram veneno no café da sala de professores. Ninguém bebeu porque uma professora desconfiou do cheiro. Em outra escola, uma mãe deu soco numa professora porque não gostou da nota do filho.
“É preciso mais apoio. Uma escola só funciona bem quando há respeito entre alunos e professores. Ensinar é maravilhoso, mas o clima de violência afasta os professores”, diz Edna.
Tão triste quanto afastar os professores é impedir que os alunos aprendam. “Todos são vítimas. Professores e alunos. Está todo mundo infeliz”, pondera Miriam Abramovay. “Tem de mudar a escola toda. Os professores estão muito pouco preparados para receber alunos do século 21 numa escola que está no século 18.”
Há movimentos para tentar melhorar o clima. “Estamos conversando com o Ministério da Educação para fazer cursos de capacitação, para que os professores possam entender o que está acontecendo”, diz Miriam.
Em Minas, a secretaria fez um acordo com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal do Estado.
“Estamos oferecendo curso de mediação de conflito para mais de cem professores e diretores”, anuncia Maria Céres Pimenta, secretária adjunta de Educação do Estado de Minas. “Não adianta ter só uma perspectiva repressora. Nós precisamos educar as crianças para respeitarem os professores. Para isso, elas também precisam ser respeitadas.”
‘Ameaças levam professor ao esgotamento’
Especialista, que atende docentes com estresse pós-traumático, diz que não há vida saudável com violência e sofrimento
Vera Lemgruber, chefe do setor de Psicoterapia da Santa Casa de Misericórdia, abriu as portas para o tratamento gratuito de uma professora. E no rastro vieram outras oito, com os mesmos sintomas.
Metade delas foi diagnosticada com síndrome do estresse pós-traumático. As outras tinham depressão ou sofriam de estresse agudo.
Nesta entrevista ao Estado, a especialista ajuda a entender a doença, motivada por episódios ameaçadores e composta de três aspectos diferentes: revivência da ameaça, reação semelhante a um ataque de pânico e retração social.
O que provoca a síndrome do estresse pós-traumático?
O fator estressante tem de ser considerado muito grave para a maioria dos seres humanos. Essas reações ocorrem depois de guerras, estupros, ocorrências de violência doméstica, assaltos, sequestros ou qualquer episódio de agressão em que você se sinta ameaçado.
Como a síndrome do estresse pós-traumático se manifesta?
A reação do paciente envolve três aspectos. O primeiro é o flashback. A pessoa revive a ameaça, como se ela estivesse acontecendo de novo. É o caso de um ex-combatente de guerra que revive a batalha ao ouvir um estrondo qualquer.
O segundo é uma reação muito forte do sistema nervoso, que provoca uma descarga de adrenalina e também elevação de batimentos cardíacos, tremores, sensação de desmaio. É como se a pessoa estivesse tendo um ataque de pânico.
E o terceiro é o ensimesmamento, a pessoa se retrai socialmente.
Uma pessoa pode passar por essas situações de ameaça à vida e conseguir não desenvolver a síndrome do estresse pós-traumático?
Pode. A probabilidade de desenvolver a síndrome do estresse pós-traumático é pequena, de apenas uns 5%.
O ser humano tem uma capacidade de adaptabilidade darwiniana. Nós somos bichos. É a lei da sobrevivência.
O que determina se uma pessoa vai ter ou não a síndrome do estresse pós-traumático é a vulnerabilidade pessoal, que pode ser genética ou da própria experiência de vida. O tratamento é terapia e medicação.
Por que estas professoras desenvolveram a síndrome do estresse pós-traumático?
As condições na escola não são favoráveis. Elas sofrem com um estresse muito grande. Mas o mais comum é desenvolverem o burnout, uma reação de esgotamento agudo. Algumas profissionais são mais sensíveis a isso. São anos de sofrimento.
É como o jovem que trabalha no mercado financeiro. Ele vive estressado, mas tem recompensa financeira. Enquanto o professor não tem dinheiro, não tem formas de compensações, como viajar nas férias.
O Estado poderia minimizar o sofrimento. Não é só dinheiro que compensa o estresse. Se elas tivessem respeito e reconhecimento da sociedade, se os colégios fossem mais decentes, elas ficariam melhores. Mas vai chegando a um ponto em que fica tudo insuportável. E aí elas adoecem.
Impunidade magoa as vítimas de agressão
“Vou te matar, sua vagabunda.” Logo depois da ameaça, veio o chute. A sorte de Maria Aparecida de Fátima, de 55 anos de idade e 18 como diretora, foi o pontapé ter acertado a parede antes de atingir sua perna. “Se ele me acertasse em cheio, eu estaria de cadeira de rodas”, lembra.
“Ele” é um aluno de 15 anos da Escola Caíque Maria Silva Lucas, em Contagem, região metropolitana de Minas.
O motivo da agressão foi banal. “Mandei ele entrar na sala para assistir à aula. Ele se recusou. Eu o encaminhei para a supervisão e disse que ia chamar sua mãe. Ele veio atrás de mim, gritando que ia me matar.”
Um funcionário gravou tudo e a cena da agressão, há 40 dias, foi parar no YouTube. O aluno foi detido pela patrulha escolar e está acautelado numa instituição para menores. Vai ficar lá por 45 dias. “Para esta escola ele não volta. Vai ser transferido. Ele tem problemas sérios, mas nada justifica a agressão.”
As agressões a professores não costumam terminar em punição. “A maioria nem faz denúncia à polícia. E quando o processo criminal chega ao fim, geralmente o juiz determina uma transação penal, como prestar serviço à comunidade ou pagar cesta básica”, explica Jorge Bulcão, advogado do sindicado dos professores do Rio, que atualmente acompanha dez casos na Justiça.
A falta de punição magoa os professores. “Punições mais severas impediriam outros casos. A escola não pode passar a mão na cabeça dos meninos”, defende Antonio Mário Cardoso da Silva, de 40 anos, professor de história da rede estadual em São Paulo. Há dois meses, ele foi agredido por um aluno de 12 anos enquanto conversava com ele e a mãe sobre problemas de disciplina. “De repente, ele se levantou, pegou o vaso de cerâmica e quebrou na minha cabeça. Podia ter me matado.” Pior que a dor foi não entender o motivo da violência. “Os alunos sempre me respeitaram. Sou professor por ideologia. Acredito que a educação mude a sociedade.” O aluno segue na escola.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,impunidade-magoa–as-vitimas-de-agressao-,792381,0.htm