“Não é possível o convívio do agronegócio, dos transgênicos e dos agrotóxicos com a agroecologia. Não é possível o convívio de um modelo de desenvolvimento capitalista com as redes e cadeias de produção, comercialização e consumo solidários. A agroecologia e a economia solidária trazem em seu seio os germes de uma sociedade onde a cooperação e a vida estão acima da competição e do lucro. O agronegócio, as corporações e o mercado financeiro se orientam pelos interesses econômicos de algumas poucas e influentes famílias e grupos empresariais ou de acionistas”, constata Daniel Tygel, secretário executivo do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sua opinião, quais foram pontos fortes do Encontro de Diálogos e Convergências, ocorrido em Salvador entre os dias 26 e 29 de setembro deste ano?
Daniel Tygel – Primeiramente, o fato de o encontro ter sido construído junto, durante quase dois anos, entre nove redes diferentes, constitui um ponto forte. São elas: Articulação Nacional de Agroecologia (ANA); Associação Brasileira de Agroecologia (ABA); Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES); Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA); Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN); Grupo de Trabalho de Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO); Rede Alerta contra o Deserto Verde (RADV); e a Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Estamos em um momento de várias crises, e ao mesmo tempo de expressão massiva de indignação contra a financeirização da vida. Os indignados de países árabes, europeus, latinoamericanos, africanos, asiáticos e norte-americanos estão cada vez mais visíveis. As ocupações dos “Wall Streets” nas metrópoles, no dia 15 de outubro, ampliaram o movimento.
Com o Encontro de Diálogos e Convergências, nos somamos a esta indignação, trazendo junto a ela a proposta concreta de alternativas no campo econômico e da produção agroalimentar. Vivemos, portanto, um tempo de ousadia, indignação e de proposição criativa, e por isso saio muito entusiasmado com as possibilidades de ação que aquelas 300 pessoas das nove redes construíram durante o Encontro de Diálogos e Convergências.
A metodologia do encontro enfrentou o desafio de buscar sempre associar três elementos em todos os debates: a denúncia crítica, a resistência e a construção de alternativas. Há redes, como a Rede de Justiça Ambiental e a Rede Alerta contra o Deserto Verde, que focam bastante na denúncia quanto às inconsistências e danos do atual modelo de desenvolvimento e de agricultura. Já o Fórum Brasileiro de Economia Solidária e a Articulação Nacional de Agroecologia têm foco bastante forte na construção de alternativas concretas às necessidades da sociedade, buscando superar o modelo. Além disso, dentro das redes, há várias iniciativas de resistência dos povos e comunidades tradicionais, a resistência em manter seu modo de vida, sua cultura, sua terra, a apropriação coletiva dos resultados, sua lógica econômica. Isso vale também para as iniciativas de afirmação da autonomia das mulheres. A articulação entre denúncia, resistência e construção de alternativas, que se destaca bastante na carta política final, traz uma riqueza gigantesca ao debate e um maior poder de ação de cada uma das redes e movimentos que construíram o Encontro.
Tenho a convicção de que o Encontro de Diálogos e Convergências não é o ápice de um processo, mas uma etapa importante, um “engatar no trilho” rumo a uma ampla construção, a partir deste método experimentado e apropriado, de diálogos e convergências nos territórios, que é onde as lutas são travadas e onde a vida acontece. O encontro será avaliado pelos seus desdobramentos na construção de ambientes territoriais de diálogos e convergências, e não somente pelas suas deliberações. Não há novidade na necessidade de buscar convergências entre os movimentos no Brasil. A novidade neste encontro, portanto, foi a proposta de metodologia para se avançar nesta busca e fazer política de maneira inovadora, que se mostrou bastante consistente com a realidade dos atores que compõem a base de cada uma das redes e movimentos promotores do Encontro e teve uma apropriação e ressonância muito positiva.
Já começam a se desenhar alguns resultados concretos, como a realização, nos próximos meses, de encontros locais de diálogos e convergências em diferentes estados. Outro desdobramento positivo foi a iniciativa, na primeira semana de outubro, de convergência entre três campanhas: a Campanha contra os agrotóxicos e pela vida; a Campanha pela Lei da Economia Solidária, e a Campanha pela Reforma Política. Do Encontro também saiu uma agenda bastante concreta e importante, a meu ver, que é a construção do Intermapas, uma ferramenta de visibilização, numa mesma plataforma da internet, de um “mapa de mapas”, ou seja, a disponibilização das informações produzidas por diferentes mapas, como o de agroecologia, o de economia solidária, os projetos financiados pelo BNDES e o das injustiças ambientais num mesmo mapa interativo (um protótipo do intermapas encontra-se em www.fbes.org.br/intermapas).
IHU On-Line – De que maneira pode ser realizado o consumo consciente e responsável? Quais são as estratégias para que haja maior aproximação entre agricultores e consumidores?
Daniel Tygel – O consumo consciente e responsável acontece quando quem consome passa a desnaturalizar o ato de consumir e percebe que este ato é fazer um investimento numa determinada forma de produzir, num modelo de sociedade, e não é, de forma alguma, definido simplesmente pela vontade e pelo gosto de cada um e cada uma. É, portanto, um ato político e de investimento econômico. Frequentemente, confunde-se o consumo consciente e responsável a certos dogmas do politicamente correto e das boas práticas: “jogue o lixo no lixo”, “não use descartáveis”, “mantenha a torneira da pia fechada”, etc. Não é assim que o vemos. Para nós, o consumo responsável significa ter um olhar constantemente curioso sobre o mundo, sobre a forma como e em que condições cada produto é fabricado, sobre a maneira como as lojas, feiras e supermercados funcionam. Portanto, para consumir responsavelmente, basta ser curiosa/o sobre o mundo à nossa volta, e se perguntar: “será que este produto que vou consumir, ou este supermercado em que vou entrar, tem uma história e uma forma de funcionamento que vão de acordo com valores como a preservação ambiental, a justiça social, a equidade e autonomia de gênero, raça e etnia?”.
A partir daí, todo um universo se abre, e as alternativas podem ser encontradas em feiras locais, centrais de comercialização, na organização do consumo coletivo, na priorização de produtos e produtores locais (mercearias, lojinhas), na valorização da cultura e culinária locais, etc. O consumo responsável é, portanto, uma opção política pelo fortalecimento de um outro tipo de relação econômica onde todos saem ganhando: o consumidor por acessar produtos de qualidade, conhecendo inclusive sua origem, e os produtores e comercializadores por poderem estabelecer esta relação direta com o consumidor
A aproximação entre produtores e consumidores é de fundamental importância. As grandes redes de supermercado e de distribuição dominam as cadeias produtivas, tiram a autonomia dos produtores e alienam os consumidores. Há várias estratégias em curso para superar esta distância, seja na consolidação de espaços e canais de comercialização solidários (pontos fixos, mercadinhos, circuitos locais e feiras), seja na organização do consumo coletivo (coletivos e redes de consumidores), seja na criação de empreendimentos solidários de comercialização que têm como base a transparência da composição do preço e a justiça nas relações. Durante o seminário sobre agroecologia, soberania alimentar e economia solidária, no Encontro de Diálogos e Convergências, todas estas alternativas foram apresentadas, da forma como acontecem nos quatro cantos do país. É incrível o acúmulo e o avanço que existem nesta área com resultados admiráveis. O seminário também teve, como um de seus principais resultados, o compromisso de construirmos de forma coletiva entre as várias redes e movimentos participantes uma campanha pelo consumo responsável, que seja uma ferramenta pedagógica para contribuir com a denúncia crítica do atual modelo e com a apresentação e visibilização das alternativas agroecológicas e da economia solidária para uma alimentação saudável e adequada. Esta campanha será um meio importante para estimular a aproximação entre consumidores e produtores da economia solidária e da agroecologia.
Já há formas de encontrar produtos da Economia Solidária e da Agroecologia, seja através do contato direto com as redes e movimentos na sua região, seja utilizando-se de ferramentas na internet tais como o Farejador da Economia Solidária (www.fbes.org.br/farejador) ou oCirandas (www.cirandas.net).
IHU On-Line – Quais as vantagens disponíveis na agroecologia e na Economia Solidária?
Daniel Tygel – As vantagens podem ser percebidas em uma vasta gama de dimensões, dentre as quais destaco algumas:
Para o desenvolvimento: territorialização dos processos econômicos e produtivos, dinamizando economias locais, coordenadas e realizadas pelas próprias pessoas que habitam o território. Para o meio ambiente: são processos em que a finalidade maior não é o lucro, mas o bem-viver, e, portanto, a lógica de produção envolve diretamente o cuidado e a responsabilidade com o lugar onde vivemos, resgatando a diversidade dos agroecossistemas na perspectiva de trabalhar a biodiversidade original da relação entre o ser humano e a natureza. O simples fato, também, das pessoas que estão determinando a produção serem as mesmas que dependem totalmente daquele espaço para viver, traz outra lógica com relação ao meio ambiente local. Isso é diferente de empresas em que os donos vivem em jardins floridos em condomínios de grandes capitais, bem longe do estrago que suas empresas estão fazendo nos locais de produção.
Para a diversidade cultural, étnica, racial e autonomia das mulheres: a agroecologia e a economia solidária se baseiam em uma diversidade de lógicas de mercado e de produção (auto-produção, agroextrativismo tradicional, reciprocidade, gratuidade), na luta pela equidade de gênero, raça e etnia, na emancipação econômica das mulheres, entre outros aspectos que promovem a diversidade socioambiental e cultural.
Para o consumidor: na agroecologia e na Economia Solidária, o produtor produz o que ele mesmo consumiria em casa. Sendo a finalidade o bem-viver, a preocupação com a qualidade dos produtos e alimentos é de outra magnitude. Há uma relação e um compromisso de confiança entre produtores e consumidores que vai além de uma simples relação de mercado.
Para o trabalho e a renda: em empresas convencionais, o custo de mão-de-obra é uma variável que pode ser mexida, ou seja, quando uma empresa está com dificuldades, começa a demitir funcionários, mantendo os altos rendimentos do proprietário. Já na agroecologia e na economia solidária, como todos são associados do processo produtivo, a “demissão” está fora de questão. A forma da Economia Solidária e da Agroecologia lidarem com crises econômicas nunca passa pela exclusão de seus trabalhadores, mas por outras estratégias, como solidariedade comunitária, busca de ampliação do leque de produtos e serviços a oferecer, e articulação em rede nos territórios. Trata-se, portanto, de atividades econômicas enraizadas nos territórios e em que o ser humano e o bem estar coletivo estão no centro, e não o lucro e a acumulação de capital.
Para a cultura: A agroecologia e a economia solidária são um exercício cotidiano de aprendizado da cultura da cooperação, que vai em outro sentido que a da competição. Suas práticas promovem a ideia de que estamos no mesmo barco, já que nestas iniciativas é preciso aprender a viver processos democráticos nas tomadas de decisão.
Para a construção do conhecimento: a produção agroecológica e de economia solidária depende de um olhar investigativo, de um diálogo de saberes populares, tradicionais e acadêmicos, de processos participativos de trocas que, quando sistematizados e partilhados, geram novos conhecimentos e consolidam conhecimentos tradicionais. Nesta partilha de saberes, há uma adaptabilidade destes conhecimentos a cada contexto e conjuntura locais.
Para a democracia do país: um Estado Democrático pleno só existe se a população está organizada, fazendo o controle social das políticas públicas e propondo novas políticas através de sua criatividade e diversidade. As práticas de economia solidária e agroecologia são, por si mesmas, processos pedagógicos de exercício de democracia: normalmente, trabalhadores de empreendimentos solidários e de iniciativas agroecológicas, pela vivência em sua forma de produzir e comercializar, são mais ativos politicamente, participam mais de conselhos, sindicatos e debates políticos sobre o futuro da sociedade e da justiça social.
IHU On-Line – No que consiste, de fato, a economia solidária? Quem são os maiores beneficiários desta alternativa?
Daniel Tygel – Do ponto de vista econômico e da oferta de produtos e serviços, a Economia Solidária se expressa em iniciativas em que não há patrão nem empregados: todas as trabalhadoras e trabalhadores são ao mesmo tempo donas/os do empreendimento, ou seja, responsáveis pela tomada de decisão coletiva sobre os rumos de cada empreendimento. Isso é chamado de autogestão. A Economia Solidária é também um movimento social, pois seus atores se organizam e debatem politicamente o atual modelo de desenvolvimento e as alternativas necessárias, as políticas públicas e a articulação com outros movimentos sociais de transformação social. Ela se baseia em um desejo de transformação social, política, cultural e econômica através da radicalização da democracia no âmbito econômico. É também um jeito de estar no mundo e de olhá-lo, baseado nas perspectivas da cooperação, da diversidade, da autonomia e da afirmação dos vários saberes e lógicas econômicas, tanto individuais como coletivos.
A economia solidária se expressa através de iniciativas econômicas dos mais diversos tipos e setores de atividade. Grupos de produção urbana, catadores de material reciclável, artesãs e artesãos, coletivos de prestação de serviços, iniciativas comunitárias de finanças solidárias (bancos comunitários e fundos rotativos), empresas recuperadas pelos antigos operários e operárias, iniciativas agroextrativistas, agroecológicas, cooperativas solidárias… A lista não para. Pelas vantagens que citei na questão anterior, percebe-se a intencionalidade do movimento de economia solidária em se comprometer com o bem viver da sociedade como um todo. No aspecto produtivo, mais especificamente, com o bem viver das trabalhadoras e dos trabalhadores já organizados em empreendimentos ou que querem se organizar coletivamente. No aspecto do consumo e do desenvolvimento justo e sustentável, a Economia Solidária dirige-se ao cidadão comum, enquanto consumidor.
IHU On-Line – Quais são as alternativas para o atual modelo agroalimentar?
Daniel Tygel – Há um mito da eficiência e produtividade do sistema agroalimentar hegemônico que é simplesmente falso. A produção agrícola extensiva depende de insumos químicos, agrotóxicos, grandes máquinas e exige concentração de terras e monoculturas. Por isso, tem custos sociais, ambientais, de saúde e culturais enormes, que normalmente são velados e cobertos pelo Estado. Há uma infinidade de exemplos em que circuitos agroalimentares locais, sobre os quais os agricultores e a população local têm o controle, dão conta de garantir a alimentação saudável e adequada a quem vive no território. Estes circuitos são totalmente diferentes dos circuitos globais não territorializados que dependem de flutuações mercantis e dos interesses de acionistas ávidos por fazer render seus investimentos. Portanto, a construção de alternativas ao atual modelo agroalimentar passa pelo estabelecimento, organização e fortalecimento de redes e circuitos de produção, de comercialização e de consumo solidários, avançando na autonomia, nas relações de confiança, na proximidade e na transparência entre os produtores e os consumidores.
O fortalecimento destas alternativas passa também pela alteração das políticas públicas de fomento e assessoria técnica e dos instrumentos de financiamento e crédito. Além disso, devem ser superadas as inúmeras barreiras e bloqueios existentes ao acesso a políticas públicas pela produção artesanal, agroecológica e da economia solidária, em especial na inspeção e vigilância sanitárias e nas cargas tributária e fiscal. Além disso, o atual marco regulatório e de políticas públicas nestes campos é totalmente voltado a uma lógica de desenvolvimento, mercado e produção das grandes empresas, do latifúndio e do agronegócio, sendo, portanto, totalmente inadequadas para a consolidação de alternativas agroalimentares para a sociedade. Sem a alteração deste marco, não é possível a popularização e consolidação de outros modelos agroalimentares agroecológicos e com base na economia solidária.
IHU On-Line – Em que sentido programas como o de alimentação escolar (PNAE) e de aquisição de alimentos (PAA) contribuem para a agricultura familiar e camponesa?
Daniel Tygel – As iniciativas que formaram a base dos debates do seminário de soberania alimentar, agroecologia e economia solidária reafirmaram a importância do PAA e do PNAE como políticas públicas em que o Estado exercita seu papel de consumidor de forma responsável. Estes programas garantem o escoamento, a preços estáveis, de parte da produção da agricultura familiar e camponesa. Estes programas, entretanto, não são e nem devem ser a única ou a principal fonte de sustentação financeira destas iniciativas.
Eles, entretanto, ainda atingem a uma parcela muito pequena da produção da agricultura familiar, e não há uma meta bem definida da expansão dos mesmos, seja no valor global, seja na quantidade de agricultores familiares a se beneficiarem. Durante o seminário no Encontro, estes programas foram avaliados, e um aspecto importante foi a reação que tem ocorrido nos territórios por parte de grandes empresas ou de seus sindicatos patronais que normalmente dominam o mercado institucional e que passam a se sentir ameaçados com estes programas.
Têm ocorrido casos, especialmente no setor da agroindustrialização e do processamento, como, por exemplo, a produção de doces, compotas e polpas, em que estas empresas promovem uma guerra através de denúncias à vigilância sanitária e de propaganda negativa (em rádios e TVs locais) buscando destruir a imagem da agricultura familiar e camponesa, dos assentamentos e da produção coletiva e associada.
Percebe-se, nesta disputa, como os agentes de inspeção sanitária dão tratamento diferenciado: enquanto fazem vista grossa ao fiscalizar grandes empresas, dando pequenas notificações e alertas, agem, por outro lado, com severidade e rigor ao visitarem os pequenos estabelecimentos da agricultura familiar e camponesa, causando prejuízos ao fecharem imediatamente estes espaços.
IHU On-Line – Por que a agroecologia e a Economia Solidária ainda são alternativas pouco utilizadas no Brasil? O que falta para suas reais efetivações? Quais são os desafios para a implementação da economia solidária e da agroecologia no país?
Daniel Tygel – Não existe atividade econômica independente da estrutura, organização e apoio do Estado. O BNDES, por exemplo, desembolsou mais de 190 bilhões de reais em financiamento a empresas em 2010. A indústria automobilística se beneficiou de descontos impressionantes do IPIdurante a crise de 2008 e agora na nova onda de crise em 2011 (estudos do IPEA deste ano comprovam que o poder público investiu mais no automóvel individual do que no transporte público nos últimos anos!). A liberação de sementes transgênicas beneficia diretamente um império restrito de gigantescas corporações multinacionais. A política de assessoria técnica privilegia uma lógica de produção agrícola baseada no agronegócio insustentável ambientalmente e as receitas sem diálogo com a realidade local. A impunidade a assassinatos de lideranças de movimentos sociais de luta pela terra estimula um sentimento de ameaça e de intimidação à organização popular. A liberação de Belo Monte e apoio financeiro público a esta obra, apesar de seus enormes impactos ambientais e duvidosos resultados econômicos e energéticos, desestimula a produção descentralizada e ambientalmente limpa de energia. A simplificação cada vez maior da organização em micro e pequena empresa e como empreendedor individual, ao mesmo tempo em que se dificulta a organização coletiva em cooperativas e feiras populares, implica no fortalecimento de uma lógica competitiva e individualista de produção, centrada no lucro, e fragilização de conquistas no âmbito das relações trabalhistas.
Poderia continuar esta lista por um longo tempo, para afirmar algo muito simples: o modelo hegemônico de produção agrícola e de desenvolvimento é completamente contrário à produção agroecológica e a uma Economia Solidária. Não é possível o convívio do agronegócio, dos transgênicos e dos agrotóxicos com a agroecologia. Não é possível o convívio de um modelo de desenvolvimento capitalista com as redes e cadeias de produção, comercialização e consumo solidários. Portanto, é natural que estas práticas sejam ainda muito marginais e invisibilizadas. Estamos, portanto, falando de interesses antagônicos: a agroecologia e a economia solidária trazem em seu seio os germes de uma sociedade onde a cooperação e a vida estão acima da competição e do lucro. O agronegócio, as corporações e o mercado financeiro se orientam pelos interesses econômicos de algumas poucas e influentes famílias e grupos empresariais ou de acionistas.
Neste sentido, os desafios são muito grandes, no acesso a crédito, a conhecimento, a assessoria técnica, a mercado, na participação efetiva na elaboração e no monitoramento de políticas públicas, inclusive a política econômica. As políticas existentes, sejam elas de fomento ou de promoção do desenvolvimento, não são adaptadas às especificidades da agroecologia e da economia solidária, e não é por acaso. Cada iniciativa agroecológica, cada empreendimento de Economia Solidária, significa uma resistência revolucionária, um passo rumo a mudanças estruturais de nosso país e do mundo. O domínio, por parte destes mesmos grandes grupos econômicos, dos meios de comunicação e sua influência sobre o parlamento através das doações de campanha, produz um ambiente simbólico (propaganda, novelas, telejornais ideologicamente controlados, promoção da cultura da competição, do consumismo e do individualismo) e político (criminalização dos movimentos sociais, bloqueios ao acesso da agroecologia e economia solidária às políticas públicas) que é contrário à consolidação da economia solidária e da agroecologia. Haja vista este ambiente extremamente adverso, temos, ao contrário do que parece, uma quantidade enorme de empreendimentos, redes, e iniciativas agroecológicas bem sucedidas e que efetivamente trazem consequências positivas para os territórios em que estão, como se pôde observar nas exposições durante o seminário do Encontro. Imagine então se houvesse um ambiente favorável!
No âmbito interno aos movimentos sociais, há o grande desafio de lidar com a eterna tensão entre a necessidade de sobrevivência econômica e a luta política. Tanto a agroecologia quanto a economia solidária estão no campo produtivo e econômico, ao mesmo tempo em que são movimentos políticos com horizonte de transformação estrutural da sociedade.
IHU On-Line – É possível existir uma alimentação saudável tendo como base o agronegócio, o latifúndio e a produção baseada no mercado e no lucro?
Daniel Tygel – A resposta é curta e direta: não, de forma nenhuma. Já está mais do que comprovado, não só no Brasil como em todo o mundo, que o mercado e o foco no lucro não melhoram a qualidade de vida nem a saúde da vasta maioria da população, com exceção dos acionistas e ricos proprietários, que são menos de 1% da população mundial. A produção e comercialização em base agroecológica e da economia solidária já implicam naturalmente e de forma indissociada na promoção da alimentação saudável, da preservação ambiental, da saúde, do desenvolvimento territorial sustentável e da justiça social.
IHU On-Line – Como podemos definir a soberania alimentar?
Daniel Tygel – Vejo a soberania alimentar como sendo a garantia de alimentação saudável e adequada à população nos territórios, sem depender dos humores do mercado financeiro e dos royalties. Significa garantir que boa parte da produção agrícola seja voltada diretamente para a alimentação saudável e adequada, e não voltada simplesmente para as empresas de ração e outros produtos industrializados causadores de câncer, obesidade e outros problemas de saúde. Significa garantir o direito à biodiversidade, em especial às sementes crioulas, e a não dependência de agrotóxicos, insumos químicos e sementes industriais e transgênicas produzidas por algumas poucas mega-corporações agroalimentares. Significa garantir que os territórios sejam suficientemente autônomos na produção agrícola local e na independência de insumos externos. Significa a valorização dos saberes, tradição, cultura e culinária populares, da sazonalidade e do modo de ser de quem vive na região. Por isso, ao falarmos de soberania alimentar, estamos falando de autonomia, auto-determinação dos povos e qualidade de vida sobre todos os aspectos, inclusive do acesso à terra e à água. O sistema agroalimentar nas mãos das empresas e redes capitalistas de distribuição implica numa dependência econômica de um território a alguns poucos grupos, que certamente não têm interesse para além da maximização do lucro. E a maximização do lucro não implica, comprovadamente, em emancipação, qualidade de vida e alimentação saudável.
IHU On-Line – Desejas acrescentar algo?
Daniel Tygel – Gostaria de partilhar aqui os principais resultados do seminário Agroecologia, Economia Solidária e Soberania Alimentar e Nutricional durante o Encontro de Diálogos e Convergências, que foi bastante rico. Foram identificados mais nove campos de convergência, que devem se desdobrar em agendas e lutas comuns entre as redes e movimentos. São eles: a legislação e inspeção sanitárias e tributárias; as compras institucionais governamentais; os canais, redes e circuitos de produção e comercialização solidários; o consumo consciente, responsável e solidário; a certificação, em especial os sistemas participativos de garantia orgânico e do comércio justo e solidário; a construção do conhecimento em suas diferentes dimensões; as práticas e lógicas produtivas, de mercado e econômicas dos povos e comunidades tradicionais; o estudo e enfrentamento às grandes empresas agroalimentares e o controle social das políticas públicas relacionadas direta ou indiretamente à economia solidária, à agroecologia e à segurança e soberania alimentar e nutricional.
A partir destes temas centrais, o seminário propôs algumas ações concretas de convergência, dentre os quais eu destacaria os seguintes: priorizar questão da legislação e inspeção sanitárias: fazer um estudo dos principais bloqueios existentes ao acesso da agroecologia e da economia solidária a políticas públicas, e traçar estratégias e táticas comuns de ação para visibilizar e lutar contra estes bloqueios, além de fomentar a troca de experiências bem sucedidas e boas práticas em superá-los; formação comum: convidar sempre integrantes das demais redes nos processos de formação específicos a cada rede e movimento, e buscar construir alguns processos formativos políticos em conjunto; realizar uma incidência articulada em Conselhos e Conferências, a começar pela Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional em novembro; articular campanhas existentes e convergentes, como as da economia solidária, de agrotóxicos, de alimentação saudável, de reforma agrária, a da luta contra alteração do Código Florestal, entre outras, além de realizar conjuntamente uma Campanha Nacional pelo Consumo Consciente, Responsável e Solidário, com uso de metodologias e de comunicação populares.
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