A crise que nos ronda e que parece sem saída tem nos mercados livres e desregulados, particularmente financeiros, o seu epicentro e sua causa principal. Tudo se fez para liberar o mercado e dar curso à globalização, profundamente injusta e ambientalmente devastadora. Liberalização das economias, desregulação e redução do papel do Estado e das políticas, flexibilização de direitos. Ou seja, todas as barreiras foram enfrentadas para deixar o capital construir o mundo sem entraves, um mundo todo a ser moldado segundo suas demandas de acumulação de riquezas, com desigualdade e destruição sem precedentes na história. O resultado está aí: o mundo todo ameaçado pela crise financeira e todas as outras crises que ele chamou a si e as potencializou.
Neste momento, como por um milagre, a imprensa toda parece unânime no pedido de retomada da intervenção forte do Estado… Para que a crise não seja maior. Depois de pregar pela liberdade para a economia diante da política, os arautos do neoliberalismo clamam por mais política. Só que a política foi destruída, destituída de bases para ser o necessário contraponto da economia. Hoje, certos conglomerados econômico-financeiros são bem maiores do que países. Quem tem poder para regulá-los?
Aliás, a finança domina a política, mesmo pedindo socorro a ela. Até aqui, de 2008 para cá, o que mais os Estados fizeram foi resgatar bancos, evitando que a sua falência levasse de roldão o sistema todo. Bilhões e mais bilhões foram gastos e o resultado mais notável foi transferir o problema dos bancos para os próprios Estados ou, melhor, para a cidadania que os mantém. Hoje, como o exemplo da Europa mostra, a crise é de Estados com dívidas insolventes, tudo para salvar bancos, os mesmos bancos em apuros até ontem, hoje árbitros dos próprios Estados.
Quem são as agências de avaliação de risco, referência da saúde financeira de bancos, empresas e países inteiros? Quem lhe deu tal poder? O incrível é que tais agências estão acima de tudo. São uma espécie de agências privadas controladoras do cassino financeiro que controla o jogo. Nenhum Parlamento no mundo, nenhuma organização multilateral tem mais poder. De fato, estamos vivendo as mazelas da ditadura dos mercados financeiros, que tudo dobram aos seus ditames, a seu jogo sujo de um cassino que foge a qualquer regulação política.
Pior, alguns que ganham muito assim acham isto o melhor do mundo. Em recente entrevista na BBC, em 22 de setembro passado, o operador de mercados Alessio Rastani foi taxativo: “Vou confessar, sonho diariamente com um nova recessão. Se você tem o plano certo, pode fazer muito dinheiro com isso”. E disse mais: “Não ligamos muito como vão consertar a economia. Nosso trabalho é ganhar dinheiro com isso”. O consolo é que os neoliberais assumidos publicamente são muito poucos hoje em dia. O clamor dominante é por regulação dos Estados. Mas como?
Não é por nada que surge de dentro das entranhas das sociedades uma forma nova de protesto, que aponta para o inaceitável de tudo que aí está. Talvez o melhor exemplo seja dos “indignados”. Trata-se de movimentos que contestam o domínio absoluto do capital financeiro sobre nossas vidas e, também, contestam a institucionalidade política como poder capaz e legítimo de regulá-lo. A indignação pode ir do vandalismo a la londrina ao movimento organizado dos estudantes do Chile. Nisto tudo, é muito simbólico que surja nos EUA um movimento de mesmo tipo, já se fazendo notar e provocando reações. Estamos diante de um mundo novo?
O importante a assinalar é que sempre a nova política surge da cidadania e sempre ela é de forma surpreendente, porque inovadora. Movimentos transformadores começam por deslegitimar o que está constituído, tornando tudo velho. Penso que estamos no limiar de grandes movimentos renovadores da política, condição para a renovação do próprio papel dos Estados, os grandes ausentes na crise de múltiplas facetas que vivemos. Mas o processo será lento e não necessariamente tem em si as soluções.
O fato é que o mundo da globalização neoliberal produziu um mundo interdependente, ao menos no nível da consciência humana – seu lado bom –, mas não foi capaz de gestar uma nova forma de poder interdependente, do local ao mundial e do mundo até onde vivemos concretamente, como cidadãos e cidadãs, com endereço e trabalho certo na crosta do planeta Terra. Falta muito para se gestar uma nova “ordem” de compromisso entre todas e todos os envolvidos, a condição indispensável para um outro mundo, da igualdade na diversidade, no bem viver no respeito da integridade da vida e do próprio planeta. Ainda o cassino financeiro fará muitos estragos. Também as elites agarradas a Estados Nacionais tentarão preservar seus toscos privilégios soberanos por muito tempo. Vivemos uma era de turbulências sem solução à vista.
*Sociólogo, diretor do Ibase.