Dentre os apetites, o apetite de saber é dos mais poderosos

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Mauro Barbosa de Almeida e Manuela Carneiro

Por Lígia Apel

“No dia em que não mais se subsistir das florestas, todo um mundo de conhecimentos e de possibilidade de descobertas será perdido”. Tal afirmação é dos antropólogos Professores Doutores Mauro Barbosa de Almeida e Manuela Carneiro construída ao longo de suas trajetórias de estudos e pesquisas lapidados nas diversas publicações que cristalizam seus olhares antropológicos. Nela está declarada uma provocação para as sociedades atuais: é primordial rever as lógicas que pautam a vida no “pressuposto da racionalidade econômica”.

Esta afirmação, assim como outras importantes reflexões sobre a ciência, o conhecimento acumulado, os processos de busca para a compreensão do mundo, bem como os anseios, sonhos, conquistas, problemas e desafios que os povos indígenas e populações tradicionais possuem, foram compartilhados por Manuela Carneiro e Mauro Almeida, no mini-curso de Antropologia Aplicada, que aconteceu na Biblioteca da Floresta, no começo desta semana, promovido pela Comissão Pró-Índio do Acre.

Reflexões sobre sociedades indígenas, conhecimento básico de antropologia, confronto entre conhecimentos das ciências humanas e biológicas, modos diferentes e divergentes dos estudos da natureza, a floresta como cultura ao invés de pura natureza, a sinergia existente ou que está para existir entre povos indígenas e populações tradicionais, entre outras reflexões foram tratados pelos professores doutores. Temas que necessitam da manifestação das pessoas e da troca de opiniões e visões entre elas para poderem ser compreendidas e assimiladas.

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mini-curso de Antropologia Aplicada, que aconteceu na Biblioteca da Floresta

Partindo do fato de que não existe conhecimento universal, mas conhecimentos contextualizados próprios e únicos de cada lugar, Mauro Almeida diz que a antropologia busca, justamente, a compreensão dos conhecimentos locais e que o conhecimento só existe se os seus estudos contemplarem a compreensão do contexto em que ele existe. Sem desmerecer o saber científico, Almeida chama a atenção para a “verdade” do cientista comparando-a com o Mito da Caverna, de Platão: “Parte da ciência vive como se estivesse dentro de uma caverna e recebesse uma luzinha que vem lá de fora e acha que aquela luz é universal. Todo mundo que vive lá fora sabe que existem diferentes contextos, diferentes verdades em diferentes países com diferentes conhecimentos. E cada uma dessas verdades deve ser contextualizada”, explica Almeida enaltecendo a diversidade de realidades e saberes.

Para o antropólogo, que há mais de 30 anos realiza estudos (e com eles comprova a importância) sobre a necessária união entre os saberes científicos e tradicionais, o conhecimento local tem, também, sua ciência, “e uma ciência com metodologia científica, com experimentação e com conclusões tão verdadeiras quanto a ciência laboratorial. Esta busca pelo saber de forma estruturada e experimentada para verificação de sua veracidade faz parte da cognição humana”, afirma Mauro Almeida.

Alinhado às idéias de Mauro Almeida está o pensamento de Manuela Carneiro que compartilhou seu trabalho com as comunidades do rio Negro, no Amazonas, que cultivam “mandioca braba” para a produção de farinha. Nesta região, há uma grande diversidade de “manivas” (estacas de reprodução da mandioca) que estão sendo preservadas pelas comunidades, inclusive com o reconhecimento pelo Iphan como Patrimônio Cultural Brasileiro do Sistema de Agricultura Tradicional do Rio Negro.

As comunidades indígenas que cultivam a maniva nesta região atribuem às mulheres, a responsabilidade pela agricultura e, portanto, da sua mandioca. Estas mulheres chegam a possuir em seu roçado, doze variedades de mandioca, que recebem um tratamento no cultivo comparado ao da mãe para o filho. “Ao realizar a capina, as mulheres indígenas cantam para dar alegria às plantas e o ato de limpar as fileiras do roçado é como se estivessem penteando os cabelos de seus filhos”, explica Manuela, dizendo que essa forma de cultivo proporciona sucesso na produtividade porque o que se almeja ali é, simplesmente, o crescimento saudável das plantas.

A diversidade de espécies de maniva do rio Negro não fica restrita a um determinado grupo ou uma determinada comunidade. Ela se expande quando os “parentes indígenas” realizam trocas de mudas ou quando a “noiva” recebe como presente de casamento da sua família uma quantidade significativa de mudas para começar o roçado em sua nova casa. Estes caminhos levam as plantas a produzirem mais e melhor em outros lugares, possibilitando um processo de adaptação natural que dispensa, definitivamente, qualquer pesticida. “O controle é natural à base da experimentação e da observação do desenvolvimento da planta”, declara Manuela com a devida obviedade científica e continua: “o que move esse processo que mantém e dissemina o conhecimento tradicional e que o permite ser mantido e fortalecido não é nenhuma demanda utilitária, mas o simples gosto pela coleção”, explica.

Para a antropóloga colecionar diversidade de espécies de maniva e manter um sistema de disseminação através das relações sociais estabelecidas no local é promover valorização do produto e segurança alimentar pra toda uma região. “A preservação da diversidade biológica não será eficiente se estiver dissociada da preservação dos modos de produção dessa diversidade, os quais são inerentes aos conhecimentos tradicionais”, afirma a pesquisadora.

Com isso, Manuela chama a atenção de cientistas que, apesar de reconhecerem os produtos gerados pelos conhecimentos tradicionais, não compreendem que a alta e qualificada produtividade está condicionada ao contexto socioambiental e cultural da comunidade produtora. A antropóloga não esconde sua decepção pela ausência de “um devido reconhecimento do valor dos modos tradicionais de produção dessa diversidade, mesmo havendo conhecimento científico suficientemente comprobatórios de que a diversidade nas lavouras é benéfica para o produto e eficiente para a produtividade. Exemplo comprovado é o controle biológico de pragas”, atesta a antropóloga que transita pelo mundo da biologia para suas observações antropológicas.

Com olhares atenciosos e concordantes estavam os indígenas presentes no curso. O Agente Agroflorestal Indígena (AAFIs) e realizador de vídeos documentários indígenas, Nilson Sabóia Kaxinawá, concordando com as reflexões dos antropólogos, deu ênfase no seu argumento de que “a riqueza que os índios querem é o seu território com biodiversidade preservada e que tem coisas de fora (à Terra Indígena) que não servem, como o agrotóxico por exemplo. Mas, têm conhecimentos que são necessários para melhorar a produção. A agroecologia e o aperfeiçoamento dos Sistemas Agroflorestais (SAFs) são algumas delas. Com essas técnicas, se sabe que a produtividade aumenta e melhora por que é diversificada. Só depois da comunidade abastecida é que se pensa em vender”, esclarece o AAFI.

Já para o morador da Reserva Extrativista Alto Juruá, Antonio Teixeira da Costa, mais conhecido como seu Caxixe, as reflexões, idéias e opiniões compartilhadas durante os três dias do curso chamam a atenção para uma responsabilidade maior do que abastecer a comunidade, melhorar e/ou ampliar a produtividade, unir conhecimentos tradicional e científico: “Tudo isso tem uma finalidade, que é a finalidade da vida. Quando penso em alimento, penso alimento para outras vidas, não só a minha. Minha responsabilidade é maior porque é para o outro. É por isso que eu, produtor, quando planto coloco vida na planta que vai levar vida pro mundo”.

A intenção da Comissão Pró-Índio do Acre ao promover o mini-curso de antropologia aplicada na Biblioteca da Floresta foi de oportunizar esta troca de olhares e promover o aprimoramento na perspectiva de aliar os conhecimentos tradicionais e científicos. Duas maneiras de construir saberes que contém inumeráveis formas de ver, conhecer e interagir com os mundos que existem no mundo. Para suas eficiências, ouvir e respeitar são os métodos aplicáveis.

Mauro Almeida e Manuela Carneiro são os organizadores da “Enciclopédia da Floresta – o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações”. Uma das maiores e mais completas obras sobre a região que abriga uma das maiores diversidades biológicas registradas no planeta. Comprovando que sua preservação é uma questão de responsabilidade e ética humanas.

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