Monteiro Lobato, Lya Luft e Minha Sensibilidade

Duas observações: o texto abaixo, assim como o diálogo que a autora estabelece, na segunda parte, com um artigo da escritora Lya Luft, são longos mas extremamente ricos; e os destaques em negrito são meus. TP.

Katia Costa-Santos

Este ano eu iniciei um texto que intenciono postar aqui sobre a mais completa ignorância e desinformação em que cai a grande maioria dos intelectuais, pensadores, dramaturgos, ficcionistas não-negros brasileiros quando o assunto são as relações raciais no Brasil – ele já existe e virá assim que fizer os arremates. É impressionante! Não importa o quão brilhante essas pessoas sejam. Quando se trata das sensibilidades do negros brasileiros nenhum deles ou delas pensa duas vezes: calçam suas botinas de sinhozinhos e sinhazinhas e pisoteiam essas sensibilidades outras como quem destrói erva daninha, com aquela pisada forte, “se deixar crescer e se espalhar não terá mais jeito!” E eles têm razão. Porque ser negro brasileiro é, muitas vezes, ser negro retinto e passar por uma catarse qualquer na vida adulta e descobrir, neste lance, que se é negro – graças às Deusas não é o meu caso, minha família não tinha espaço pra essa disfunção, tínhamos outras, não essa. Assim como, uma vez que “se vê a luz”, não há mais caminho e volta. É por isso que às vezes esses “novos negros” se refugiam no seio branco da sociedade – quando têm cacife para tanto – e afastam-se completamente de qualquer relação direta com negros e negras, especialmente, porque não têm resistência, estrutura psíquica para seguirem “se olhando no espelho”, agora que a venda caiu, a que cobria seus olhos. E eu acho, sinceramente, que este é um direito que lhes cabe. Ninguém pode ou deve se meter, cada um sabe de si.

Mas o problema, para os donos das botinas — aquelas que herdaram de seus antepassados escravocratas, junto com os outros capitais da família – é que quando a clareza sobre o racismo brasileiro e suas artimanhas, camadas, implicações e alcance vira bússola e holofote a história é outra. É por isso que digo que os pisoteadores de sensibilidades negras têm razão quando nos massacram como a ervas daninhas: eles sabem que este é um caminho sem volta: a verdade de que nós negros brasileiros sempre fomos “coisas” prestadoras de serviços e ilustrações sem importância do cenário cultural brasileiro como um todo. Até os criadores e criadoras bem intencionados desse país defecaram em nossas sensibilidades, humanidades. E continuam a fazê-lo. Até porque, “todos sabem como se trata os pretos!” Inclusive os pretos fujões, aqueles que fogem do espelho, e é por isso que os respeito, porque sei que ninguém tem o direito de enfiar ninguém numa luta covarde, perversa, e esquizofrênica como essa dos negros brasileiros contra o racismo à brasileira.

Esquizofrênica, para mim, é a melhor explicação para a experiência negra brasileira. Sempre que as pessoas de outras paragens me pedem que explique para eles como é ser negro no Brasil, para encurtar a ópera, e se for alguém com quem eu realmente queira discutir o assunto, a primeira coisa que digo é que é, no mínimo, esquizofrênico ser negro no Brasil. Estamos juntos, misturados, separados, apartados, brutalmente hierarquizados pelo tom de nossas peles. Nós somos, não somos, super-somos, não contamos, apenas nós somos, ainda não deixamos de ser, e sabe Olorum se um dia seremos.

Em muitos países, principalmente na America do Norte e Europa, negros e brancos, na real, vivem cada um em seu quadrado. Eles não têm a nossa graça. Mas também não têm as nossas desgraças. Por exemplo, os artistas que gosto e admiro no Brasil foram eleitos pela minha sensibilidade, independente de quem sejam. O meu problema é que eu não fiquei no meu quadrado, aquele que o senso comum, sempre limitado, entende como sendo “as coisas” que me interessam. Assim, uma ida ou teatro, uma leitura de textos mais eruditos brasileiros, uma película mais reflexiva, um programa de televisão num nível mais decente, um entretenimento qualquer do lado Sul do túnel que divide a cidade do Rio de Janeiro, pode representar um soco forte e certeiro na boca do meu estômago de negra. E sem direito a reclamações ou mesmo a externar a dor que me abata. Nada me é permitido! O país escravocrata em que vivo já se apegou muito profundamente ao fato de ser eu a piada, o animal, o torto, a “preta da guiné”, o amálgama bestializado da coesão da harmonia racial da nação. E que não mexamos em seus paradigmas! Por favor! A vida já anda dura demais.

Mas o “problema” é que a Educação, a informação, agora nos coloca em rota de coalizão. Não que minha mãe semi-analfabeta, por exemplo, não soubesse qual era a real do lance, nessa relação de cima pra baixo que sempre teve com as pessoas além túnel, desde criança, na má condição de doméstica mineira e menina de 9 anos de idade na cidade do Rio de Janeiro. Aqueles tempos eram outros, as reações eram outras. Lembro-me que quando criança as conversas dos adultos em nossa casa nos fins de semana eram tratados sociológicos orgânicos – hoje o sei – sobre relações raciais nessa cidade, nesse país. Mas agora, hoje, até mesmo sem sabermos, estamos reagindo às agressões todas, velhas e novas. Temos nos encontrado em espaços onde antes só havia uma etnia das que habitam o país. Assim era fácil, tudo ser lindo e maravilhoso.

Uma vez, na faculdade, numa matéria eletiva que fiz no departamento de Educação, fomos instruídos a analisar uma colocação de um determinado texto, num trabalho para nota. Eu li o tal texto, mais de uma vez, e expressei minha opinião sobre o mesmo texto. Quando devolveu meu trabalho, a professora, com quem até então eu tinha muito boa relação, já veio me atacando, dizendo que “nós”, os “críticos do Marxismo” estávamos precisando mudar nossos discursos, argumentos, pois dizia ela que “nós” queríamos derrubar a melhor explicação da sociedade em que vivemos sem que tivéssemos nada para colocar no lugar e que desse conta das dinâmicas sociais como o Marxismo. Ela nem me deixou falar. Disse-me para reescrever, reconsiderar, ou minha nota seria aquela mesmo, 6.5. Eu não sabia o que dizer. Até onde eu sabia, eu havia me manifestado quanto ao que eu tinha lido, eu não sabia que eu estava detonando o marxismo. Quem gostou foi minha irmã, aluna do curso de Serviço Social e quem estava sempre querendo me explicar mais sobre o marxismo e eu não tinha saco. Minha irmã, então, depois de rir muito do imbróglio, leu meu trabalho e me explicou onde estava a ofensa à professora. Eu, então, escolhi uma outra questão do mesmo trabalho para responder e minha nota passou para 9.7, e acabamos o semestre sem nos olharmos mais. Essa história ilustra bem o que quero dizer quando digo que até sem querer, ou mesmo sem saber, nossa tendência será reagir a muitas coisas que nos atingem, quase que fisicamente, no universo cultural brasileiro. Natural. Assim como será natural também a reação dos que sempre tiveram essas mesmas coisas como banalidades de seus cotidianos.

Outro exemplo: uma amiga branca, que faz um trabalho lindo de alfabetização em português de seus filhos brasileiros que cria no exterior emprestou-me alguns disquinhos de músicas educacionais, infantis, que usava com seus filhos. Eu ouvi junto com eles o CD “Zeropéia” do saudoso Betinho e fiquei encantada, e assim pedi para gravar algumas de suas músicas para a filhinha mulata de minha prima negra-mulata. Acumulei um bom estoque de música infantis que daria de presente para a minha priminha. Mas aí, resolvi ouvir o disquinho “O macaco e a velha”, que segundo minha amiga era um clássico infantil. Horrível! Eu estava sentada no chão, fazendo malas, quando ouvia. Num determinado momento em que alguém xinga alguém de “preto da guiné!” eu levantei correndo, desempacotei os CDs, e fiz uma triagem do que entregaria à criança não-branca e de família majoritariamente negra-retinta. Eu fiquei perplexa de saber que os disquinhos infantis utilizados pela classe média branca brasileira ainda ensinam às suas crianças, na mais tenra idade, a utilizar um xingamento racial e tão datado como “preto da guiné”.

Se minha amiga não tivesse me perguntado eu nem teria dito a ela que nem tudo chegaria às mãozinhas e cabecinha inteligente e rápida da linda Larissa. Ela então, com ar de confusa e surpresa, perguntou-me, “Ah, mas você não vai dar a ela porque ela é negra, né?”, no que respondi, “Eu não daria aquilo à criança alguma! Independente da etnia da criança.” E por mais que eu tenha explicado não conseguimos nos entender sobre isso até hoje. Acabei ficando com a historinha macabra pra mim, assim como fiquei com o CD de uma gravação do Sitio do Picapau Amarelo também, porque era aquela primeira versão da TV, que me fazia lembrar da minha infância diante da TV. Eu adorava a Cuca, era de quem eu mais gostava. “Cuidado com a Cuca, que a Cuca te pega! Te pega daqui, te pega de lá”. Se eu falo “Cuca” eu acabo cantando essa música. E foi assim que eu soube que existia o Sitio da Cuca, através da TV, pois na minha casa, de adultos analfabetos ou semi-analfabetos, não havia livros. Minha tia lia muitas foto-novelas, as quais devorei mais tarde, e meu tio comprava uma revista chamada Modinha Popular pra aprender as músicas das AMs do momento pra tocar com sua cabaça. E eu devorava as Modinhas também, e cantava muita Claudia Barroso com ele – uns “textos” que de infantis não tinham nada, para uma menina de 6/7 anos.

Quando fui alfabetizada, demorou bem até que eu passasse a ler livros, por determinação da escola ou por iniciativa própria. Enquanto isso, eu imitava minha tia com cada vez mais precisão, na leitura das foto-novelas. Até o dia em que um homem “namorou uma mulher à força” (eu não tinha entendido que fora um estupro) e ela ficou numa tristeza profunda e se matou. As fotos que espelhavam a tristeza da moçoila outrora tão bonita e animada, me impressionaram mais que a foto dela quando foi achada banhada em sangue depois de cortar os pulsos. Eu não entendi muito bem o ocorrido, minha tia não me explicou tudo e ainda me deu uma bronca porque aquela revista, especificamente, ela tinha colocado no alto pra eu não ler, mas eu a peguei com o bambu que suspendia o varal de roupas, no quintal.

O primeiro livro que li de verdade, entrando na história, viajando na história, foi “Memórias de um cabo de vassoura”, de Orígenes Lessa. Amei! Eu via o menino correndo pela casa cavalgando seu cabo de vassoura. Melhor ainda foi no segundo livro, a continuidade, “Napoleão em Parada de Lucas”, do mesmo autor. Eu gostei mais ainda porque a história tinha se aproximado bastante de mim: o cabo de vassoura promovido a cavalo, Napoleão, é doado para o filho da empregada no Natal e por isso passou a morar em Parada de Lucas, um bairro pelo qual passávamos quando íamos, agora, a Caxias visitar os parentes, já que meus pais reataram o casamento e nós nos mudamos para Jacarepaguá. Era uma delícia! Tudo tão familiar. Amo esses dois livros até hoje. Foram eles que fizeram de mim uma leitora de verdade. Dos livros didáticos eu só lembro de uma historinha: um indiozinho pede a um menino branco que leia uma carta que ele recebera porque ele não sabia ler. E como a carta era pessoal, o indiozinho tampou os ouvidos do menino que lhe lia a carta para que ele, o leitor, não soubesse do que se tratava. Eu ri muito daquele “índio bobo” – era assim que eu o chamava quando contava essa história pras pessoas.

Para a minha felicidade, se eu passei pelo livro “O mundo de Talita”, responsável por traumas profundos em muitas crianças negras alunas da rede pública, eu não lembro. Enquanto que minha irmã caçula, quatro anos, tem pavor até mesmo do nome Talita, por causa do mesmo livro.

Quando cheguei à faculdade, católica carioca, sempre me chamava atenção o fato de quase todas as minhas colegas do curso de Letras terem se tornado leitoras a partir dos livros de Monteiro Lobato. Era mesmo interessante, isso sempre me chamava a atenção e me fazia pensar nas profundas diferenças entre o ensino privado e o público. Quando me perguntavam eu dizia a verdade, que nunca tinha lido Lobato, e que o Sitio que eu conhecia era o da televisão, e aí elas diziam sempre que aquilo era outra coisa, que não chegava nem aos pés dos livros. Assim sendo, como boa leitora, eu tinha planos de um dia ler Lobato, nem que fosse um único livro.

O outro contexto em que ouvi falar de Monteiro Lobato foi numa fala pública da professora Eliana Yunes, de quem fui assistente de pesquisa num projeto sobre a construção do leitor brasileiro, junto com outras duas colegas de curso. A professora Yunes, por quem sempre tive muita admiração, comentava o texto de Lobato sobre um tal presidente negro e falava o quão racista o texto era. Levei um choque! Seria o mesmo Lobato? O Lobato das minhas colegas de sala? Sim, era ele.

O tempo passou e não li Lobato. Quando passei a freqüentar espaços e eventos de movimentos sociais, mais especificamente, espaços de militância negra, ouvi mais sobre o suposto eugenismo apregoado por Monteiro Lobato. E um dia, passando num sebo na Cinelândia, vi um livro de título “Negrinha” e me aproximei. Quando cheguei perto descobri que era um livro de contos do Monteiro Lobato. Comprei-o, comecei a lê-lo, não consegui terminá-lo, desinteresse-me, perdi-o. E assim, resolvi que Lobato talvez um dia acontecesse. Ou não! E agora, em mais uma enxurrada de emails de amigos negros ou simpatizantes, vim a saber da nova onda de ataques, desqualificação, e calúnias que os negros brasileiros estão sofrendo por conta de um livro de Monteiro Lobato, “Caçada de Pedrinho”. Depois de uma semana de gritarias, pensei em sair pra comprá-lo e me inteirar do que se passava. Mas antes que isso acontecesse, eu recebi o tal texto em que os leigos gritantes não-leitores dizem estar a determinação, de Nilma Lino Gomes, para que o livro fosse banido das escolas.

Vejam como são as coisas: a recomendação para uma nota explicativa, assim como aconteceu no mesmo livro no que se refere à questão da caça, transformou-se numa “questão nacional” para os “defensores da liberdade de expressão” e de Monteiro Lobato, os mesmos que desconhecem completamente o conteúdo do texto que se empenham em debater, destruir. A palavra “banir” é fruto das matérias noticiosas de nossos cada vez mais anti-profissionais e anti-éticos meios de comunicação, essa calúnia é reproduzida na maior desfaçatez e irresponsabilidade por 99% dos defensores de Lobato. E para não deixar que eu tenha dúvidas sobre o país verdadeiro onde o destino quis que eu exercesse minha negritude, hoje me chegou o link para um texto sobre o assunto e que atribuem a uma das escritoras que mais gosto na vida: Lya Luft.

Lembram da esquizofrenia de que eu disse acima? É assim: a gente, negros, vai vivendo, interagindo, trocando, lendo com pessoas cujos trabalhos nos sensibilizam. E aí, de repente, essa pessoa vem a público mostrar que também sabe “como se trata os pretos!” Acontece o tempo todo. E aí a gente segue, coração na mão, sabendo que a qualquer instante – ainda mais se for uma pessoa como eu, que tem a informação como matéria prima na vida – vai ter que deixar mais alguém na estrada. Até porque meu organismo não sabe retroceder, não sabe fazer de conta de que eu não sinto, não penso, não sofro, não odeio, não seleciono, não milito. E esses acontecimentos fazem com que eu me sinta tão ridícula, tão inocente. Tem um diabinho que fica aqui falando no meu ouvido, em meio a gargalhadas: “E por que você achou que ela/ele pensaria diferente? Só porque você os acha sensíveis, gosta de seus trabalhos? Tolinha… Esqueceu-se de que você é negra?!”

Eu não assino, não compro, não leio a revista em que dizem que Lya Luft escreveu o texto atribuído e postado no blog que me indicaram. E eu só acreditei porque há poucos dias assisti a uma entrevista dela com a Marília Gabriela e ela prenunciou, também, uma denúncia precipitada à tal censura apregoada pelos alarmistas desinformados e mal intencionados. Ela não teve tempo para desenrolar a conversa mas deu para saber onde ela estava na questão. Mas não adiantou eu fugir, hoje recebi sua ideia sobre o assunto esticada no tal post. Eu a li como quem vai sendo estapeado, e só na “cara!” E quando o tapa vem de quem você gosta dói muito mais. Ainda bem que já a li bastante, e dos textos que mais gosto eu os tenho no meu coração, mas não os revisitarei porque agora fica uma descrença grande na capacidade que essa pessoa tem, ou teria, de enxergar e considerar a minha humanidade também.

Numa forma de despedida que não me deixasse engasgada, resolvi dialogar com a senhora Luft aqui, numa forma de separação amigável. E só me resta desejar felicidades àquelas pessoas que ela não jogará nunca fora em sua caminhada, seja lá qual for a bandeira que levante. Mas antes preciso dizer umas coisas que me ocorreram quando li seu texto pela primeira vez. Vamos ao diálogo.


Crucificar Monteiro Lobato?

por Lya Luft

No curso de uma vida somos submetidos a muita insensatez e muita tolice. Nem tudo é Mozart ou Leonardo da Vinci, carinho de amigos e filhos, abraço da pessoa amada. Então, a gente vai ficando calejado, para não expor demais a alma como alguém a quem retiraram a pele, e a quem a mais leve, mais doce brisa parece um fogo cruel.

— Preciso aprender isso, Lya. Preciso aprender. Eu aprendo.

Pois nestes dias me deparo na imprensa com algo que rompeu minhas defesas e me fez duvidar do que estava lendo. Reli, mais de uma vez, em mais de um jornal, e ali estava: querem banir das escolas um livro (logo serão todos, logo serão de muitos autores, não importa por que motivo for) de Monteiro Lobato, porque alegadamente contem alusões racistas.

— Até tu, Lya?! Vejo que é verdade mesmo. A revista para qual você trabalha não informa mais a ninguém mesmo, tão pouco aos seus colaboradores. E outra: não é “alegadamente”, as marcas de racismos estão lá, sim. É compreensível que as mesmas não sejam perceptíveis à sua sensibilidade alemã bem nascida. Mas isso não faz com que tais marcas hediondas desapareçam.

Ora, gente, eu fui nutrida, minha alma foi alimentada, com duas literaturas na infância; os contos de fadas de Andersen e dos irmãos Grimm, e Monteiro Lobato. Duas culturas aparentemente antípodas, mas que se completavam lindamente. Narizinho e Pedrinho moravam no meu quintal. Emília era meu ídolo, irreverente e engraçada. Dona Benta se parecia com uma de minhas avós,

— Que família e lar lindos, harmônicos. BenzoDeus!

e tia Nastácia era meu sonho de bondade e aconchego.

— Bingo!

Eu me identificava mais com elas do que com as princesas e fadas dos antiquíssimos contos nórdicos, porque jabuticaba, bolinho, bichos e alegria eram muito mais próximos de mim do que as melancólicas histórias de fadas e bruxas – raiz da minha ficção.

— Deve ser muito legal e saudável poder falar com legitimidade, com certeza, de conhecimento de narrativas “antiqüíssimas” nas quais você se veja de alguma forma e positivamente. Deve ser mesmo.

Toda essa introdução é para pedir às autoridades competentes: pelo amor de Deus, da educação e das crianças, e da alma brasileira não comecem a mexer com nossos autores sob essa desculpa malévola de menções a racismo. Essa semente terá frutos podres: vamos canibalescamente nos devorar a nós mesmos, à nossa cultura, à nossa maneira de convivência entre as etnias.

— Pelo bem dessas mesmas almas brasileiras, desses autores, dessa cultura, é que você deveria pedir ao mesmo Deus que nos ajudasse a rever, repensar, com honestidade, solidariedade e senso de justiça a “convivência entre as etnias” nesse país. E a semente que dá frutos podres foi muito bem plantada nesse território. A semente chama-se escravidão, e o fruto é o racismo, e somos todos bichinhos desse fruto, bichado. E quando nos cruzamos mais de frente, nesse pomar, mais de perto, mais de igual para igual, vamos reconhecendo em nós todos as marcas, cheiros, da semente, do fruto…

Com esse perigosíssimo precedente, vamos começar a “limpar”, isto é, deformar, muitos livros. Japoneses, árabes, alemães, italianos, poloneses, índios e negros (ou não posso mais usar essa palavra?) sofrem ou podem sofrer ataques racistas.

— Se você pode falar negro? Eu não sabia que você também, a autora da biografia mais poética que já li em minha vida, também “batia em cachorro [supostamente] morto”, como dizia minha negra avó. [sigh…]

Isso é motivo de penalidades da lei para os racistas, se for o caso. Racismo dói, eu sei disso.

— Tell me about it! [sigh…]

Quando menina, certa vez um grupo de crianças nem louras nem de olhos azuis me cercou no pátio da escola, e elas dançavam ao meu redor cantando “alemão batata come queijo com barata”. Não gostei. Doeu-me. Hoje acho graça: na hora não foi engraçado.

— Ah! Eu lembro disso. Acho que está o no seu livro “O Quarto Fechado”. E aí, a personagem alemãzinha diz para as crianças que a cercam: “E vocês [brancos brasileiros], que têm sangue de negros?!” Lembro, lembro, sim…

Mas por isso vamos cavoucar em livros de história e banir os amores – o que só se admite em casos claros de repugnante racismo, não importa contra que raça for, diga-se de passagem?

— Como?! Não entendi – estou começando a achar que esse texto não é da escritora que tanto admiro.

Essa planta rasteira, que vai contaminar nossa cultura, tem de ser cortada pela raiz.

— E assim começa o pisotear das supostas “ervas daninhas”. Ainda bem que meu povo é especialista em sobrevivência, nossa graça e desgraça, admito.

Ou a caça às bruxas vai se disseminar feito peste, pois é uma peste, iniciando um processo multiplicador de maldades comandadas por inveja,

— Meu Deus… Lya Mainardi… Diga-me com quem andas e…

ou seja o que for, destruir obras, vidas, memórias, e atacar sobretudo as almas infantis como insetos daninhos.

— Não, senhora. São exatamente os insetos daninhos que estamos tentado impedir que cheguem ao espírito das crianças negras brasileiras sem que elas saibam que são insetos, sim!

Não permitam isso, autoridades responsáveis e competentes: uma vez iniciado, esse processo não terá fim.

— Esse processo começou com Zumbi dos Palmares e os Malês. Não há mais volta. E que Ogum continue à frente desse processo, com sua espada, nos ajudando a abrir caminho nessa mata densa e nebulosa que é a sociedade brasileira, nosso campo de batalha.

O politicamente correto pode ser perigoso e hipócrita.

— Perigoso e hipócrita é reduzir a questão a uma mera contestação de supostas formalidades/revisões lingüísticas.

Os meus olhos azuis, como os de um de meus filhos, e os olhos escuros dos outros dois, como os oblíquos dos japoneses e os olhos pretos dos árabes, são todos da famí1ia humana, muito maior e mais importante do que suas divisões raciais.

— E os olhos dos negros? Não coube no texto? Não são humanos, Lya? Ou não precisa, “já estão representados”? Ah, tá! Os árabes…

Nem comecem a dar ouvidos a essas buscas mesquinhas por culpados a ser jogados na fogueira: livros queimados foram um dos índices sinistros – ao qual nem todos deram a devida importância – da loucura nazista. Muita tragédia começa parecendo natural e desimportante: no início, achava-se Hitler um palhaço frustrado. Deu no que deu, e manchará a humanidade pelos tempos sem fim.

— Tem certeza de que você ainda está falando do caso Lobato? – Tomara que você tenha mudado de assunto sem que eu percebesse. Não é porque eu não te lerei mais que não quero que você se mantenha sã. Longe de mim.

Que não comece entre nós, banindo um livro infantil de Monteiro Lobato, o mais brasileiro dos nossos escritores:

— O que faz de Lobato o escritor mais brasileiro dos escritores? O fato de ele ser o mais explicitamente racista?

será uma onda do mal, uma nova caça às bruxas, marca de vergonha para nós. Não combina conosco.

— Claro, com vocês não combina mesmo. Nunca vi a lavadeira falar mal da sua própria trouxa de roupas. O problema só aparece quando a lavadeira do tanque ao lado a aponta. E aí, aprende-se que não falar da roupa mal lavada não a torna limpa.

Não combina com um dos lugares nesta conflitada e complicada Terra onde as etnias e culturas ainda convivem melhor, apesar dos problemas – devidos em geral à desinformação e à imaturidade: o Brasil.

— É o contrario, senhora. São exatamente a informação e a maturidade política que vão continuar tirando muita sujeira debaixo desse grande tapete: o Brasil. Até sem querer – como no caso que narro acima, do marxismo – esse tapete será suspenso levantando poeira na ventania. E antes que eu me esqueça: enquanto houver qualquer etnia engolindo sapo para que qualquer outra possa dizer que a paz [para si!] está feita, a harmonia será fake, fake, e fadada a evaporar no primeiro baque sócio-cultural, como um pedido de uma nota explicativa num texto racista entregue a crianças negras. Pode escrever aí.

*Kátia Costa-Santos é pesquisadora e blogger em www.webneguinha.blogspot.com

http://www.pambazuka.org/pt/category/comment/68733

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.