Ruben Siqueira
Afluente do São Francisco, hoje tira água dele e “corre ao contrário”, desde que águas da foz passaram a ser bombeadas rio acima em 35 barragens, para sustentar a irrigação empresarial no Médio e Alto Salitre. Até os anos 1970, o vale fértil, principalmente na região do Baixo, fornecia legumes, frutas e hortaliças a Juazeiro e outras cidades. E “salitreiro” era sinônimo de gente forte e próspera.
Nos anos 1980 explodiu ali um novo tipo de conflito: pela água. Empresários e pequenos irrigantes passaram a disputar as parcas águas. Em 7 de fevereiro de 1984, deu-se um confronto armado na comunidade de Campo dos Cavalos. Salitreiros reunidos, já em desespero, desligaram a fiação elétrica para bloquear as grandes motobombas e permitir que a água descesse até suas pequenas roças. Dois empresários acompanhados de capangas foram ao local para religar a energia. No confronto ambos acabaram mortos.
Só então as autoridades esforçaram-se para disciplinar o uso da água no rio. Mais recentemente foi criado o Comitê da Bacia do Salitre.
Em março deste ano, foi inaugurado o Projeto Salitre, obra pública de irrigação. Lula discursou lembrando lutas e personagens históricas do Salitre, como o bispo D. José Rodrigues, que apoiava os salitreiros e foi acusado por políticos de mandante das mortes dos empresários. Mas o projeto é voltado para o agronegócio, com investimentos orçados em R$ 900 milhões, numa área de 34 mil hectares, e só de fachada contempla agricultores locais. Deve aumentar o potencial de conflitos.
Até agora nenhuma medida foi suficiente para evitar o clima de tensão e disputa pelas águas e sinalizar uma solução duradora. O sobreuso das águas volta a conflagrar a região. Outra vez as comunidades do Baixo Salitre têm que tomar atitude, desta vez, em 21 de agosto passado, derrubaram 16 postes de energia, causando transtornos não só a empresários, mas também a quase 30 comunidades rurais da região.
Dentro dos novos marcos legais, o órgão responsável do governo estadual, o Ingá (Instituto de Gestão das Águas e Clima), está propondo o cadastramento dos usuários e a revisão das outorgas de águas. Setores do partido do governo sugeriram o uso do Exército para a segurança da rede elétrica. Não é a primeira vez: as obras iniciais de transposição do São Francisco foram feitas pelo Exército, sob fuzis e até canhões…
Na Velha República, a questão social era “caso de polícia”. Quando pensávamos que tínhamos avançado politicamente, no Brasil de Lula, a questão da água vai virar “caso de Exército”?
O relatório parcial da violência no campo em 2010, lançado pela CPT (Comissão Pastoral da Terra), em agosto, trouxe como surpresa exatamente o crescimento em 32% dos conflitos pela água no território nacional.
A tendência é se agravar na medida em que avançar o negócio da água. Na Bacia do São Francisco está tudo pronto para começar a cobrança pelo uso da água, o que já alvoroça os ribeirinhos. Celeuma maior é o custo da água da transposição, que o governo federal quer por todos os meios que seja mais barato que na própria bacia. Quis controlar a diretoria do Comitê da Bacia, mas perdeu as eleições recentes, com candidatos ligados ao governo baiano. Agora anuncia uma empresa estatal para a gestão das águas transpostas.
O problema fundamental está em toda a lógica de utilização das cobiçadas águas brasileiras. Em síntese, a política mercantilista de águas eleva seu uso ao extremo, ao limite – muitas vezes para além do limite – o que acirra a conflitividade. O que está longe da água como direito humano essencial, declarada pela ONU em julho deste ano.
O caso do Salitre é emblemático. Até onde irá a irresponsabilidade no uso de nossas águas?
jornal A Tarde, 28/09/2010