Na entrevista a seguir ela fala sobre como funciona o trabalho na luta contra o tráfico de pessoas e revela porque as mulheres são as maiores vítimas desse crime.”A mulher é uma mão de obra barata, inclusive quando ela é uma escrava sexual”, apontou. A Irmã Beatriz Duarte Gomes é assessora executiva da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). Confira a entrevista.
IHU On-line – Como é o trabalho com os que sofrem a questão do tráfico de pessoas?
Beatriz Gomes – É um trabalho em rede. A nossa rede tem muitos focos de ação. Ela se chama “Um grito pela vida”, e tem quatro anos. Temos trabalhado, principalmente, com as mulheres, que são as maiores vítimas do tráfico de pessoas. Um dos nossos trabalhos mais fortes é para fazer com que esse crime seja conhecido pelas pessoas, principalmente nos meios populares. Nós somos um grupo de religiosas que segue trabalhando diretamente nas comunidades onde isso existe. Uma das coisas que está por trás desse trabalho contra o tráfico de pessoas é a defesa da mulher, pois 80% das pessoas traficadas são mulheres, a maioria bem pobre, que mora em lugares bem distantes, exatamente onde estão nossas religiosas.
IHU On-line – Para que fins se traficam mulheres?
Beatriz Gomes – O tráfico de pessoas tem várias causas, mas todas elas estão conectadas. Problemáticas como a social, a miséria, pobreza, a falta de emprego, a falta de qualificação profissional, falta de perspectiva e a falta de políticas públicas estão ligadas à questão da discriminação do gênero. Diante desta questão da violência contra a mulher surge a questão da “coisificação” das pessoas. Entrando por este lado, a mulher se torna objeto, como a empregada doméstica que mora na casa da família, tornando-se escrava. A mulher é o foco por causa desta situação social em que vivemos. E isso não é uma situação que ocorre somente no Brasil. A mulher é uma mão de obra barata, inclusive quando ela é uma escrava sexual.
IHU On-line – Aqui no Brasil, onde o problema é maior?
Beatriz Gomes – Segundo pesquisas do governo federal, nós temos mais de 300 rotas de tráfico de pessoas dentro do Brasil. A maioria sai de lugares muito pobres, em situação de vulnerabilidade social, principalmente do Nordeste. Grande parte são mulheres de descendência negra e pobre. Elas são enviadas para o exterior. Mas nós também enfrentamos a questão do trabalho escravo dentro do país. Uma menina pobre, lá do interior de Minas Gerais, vira empregada doméstica em São Paulo para uma família rica. Isso é aceitável dentro do nosso país. Há quem diga: “Ah, mas ela não tem condições lá, é melhor ela trabalhar aqui, a família dá tudo para ela, ela consegue estudar um pouco”. Ninguém vê que isso é exploração, isso é tráfico? Essa menina nunca vai ter condições de sair dali.
O tráfico é um crime, uma violação grave contra os direitos humanos e está organizado em rede. Essa organização tem vários personagens e papéis. Muitas vezes, o aliciador, aquela pessoa que faz o primeiro contato, também era uma pessoa daquele meio pobre que, para ganhar um dinheiro, não sofrer tanto, faz esse trabalho. Por isso, existe a dimensão da confiança, porque você não confia em pessoas distantes, você confia se a pessoa é próxima, por isso o aliciador tem este perfil, muitas vezes nasceu e cresceu junto com as vítimas e entrou nesse “ramo” por necessidade também.
Existem outras situações, por exemplo: o aliciador pode agir por trás de agências de emprego, principalmente de moda ou de turismo. Acontece muito isso em São Paulo onde bolivianos vêm por agências para trabalhar em fábricas têxteis na capital. Então, eles vêm para trabalhar, mas não imaginam que irão ficar trancados, que irão ter uma dívida permanente e que o boliviano, que era dono da agência, vendeu o trabalhador por 500 reais ou dólares.
IHU On-line – Quem está na ponta desta pirâmide?
Beatriz Gomes – É uma estrutura tão grande formada, geralmente, por empresários, pessoas que possuem agências de namoro na internet. Eles têm uma visão de que a pessoa é uma coisa. O maior pecado do mundo é vender uma pessoa, uma criança, vender alguém que é um ser humano. Isso tira totalmente a dignidade da pessoa.
IHU On-line – Neste Simpósio, Giuseppe Cocco [2], quando lia o texto de Andréa Fumagalli [3], falava que nesta nova Era o trabalho é corpo e o tempo de lazer e o tempo de trabalho já não são mais tão distintos. A ideia de coisificação da pessoa pode estar ligada a esta nova Era?
Beatriz Gomes – Eu acredito que sim. Essa mercantilização é algo tão absurdo. Enquanto Cocco falava, eu pensava que se nós hoje somos capazes de ver o corpo como mercadoria, assim vemos o corpo do outro também. Isso já acontece no tráfico, que põe no corpo um valor de venda. O aliciador que vende uma mulher não tem sentimento. Para ele o que impera é o prazer. Inclusive, para os aliciadores, essa mulher tem um tempo máximo de uso que, geralmente, é de quatro anos. Porque ou ela arranja uma forma de fugir ou se mata porque não aguenta mais aquela situação.
Sibilia falava sobre o capitalismo cognitivo e como vamos entender nossos corpos em alguns anos, e eu pensava que vamos chegar num ponto em que não vão mais se vender corpos e sim os cérebros. Haverá um tráfico de pessoas que tem uma certa inteligência, que possuem aptidão. Se passarmos da Era do corpo para a Era do cérebro, nós vamos chegar em algo absurdo.
Notas:
[1] Maria Paula Sibilia é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). É graduada em Ciências da Comunicação e em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires. Obeteve o título de mestre em Comunicação pela UFF. Realizou o doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Também fez doutorado em Saúde Coletiva na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Durante o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, conferiu a palestra Biotecnologias, ciências da vida e produção de subjetividade na sociedade contemporânea
[2] Giuseppe Cocco é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É também editor das revistas Global Brasil, Lugar comum e Multitudes (Paris). Coordena as coleções Espaços do Desenvolvimento (ed. DP & A) e A Política no Império (Civilização Brasileira). É bacharel em Ciências Políticas pela Universidade de Paris VIII e em Ciência Política pela Universidade dos Estudos (Pádua, Itália). É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatório Nacional das Artes e Ofícios. Também fez mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de Paris I (Pantheon-Sorbonne). Junto com Antonio Negri escreveu Global: Biopoder e Lutas em uma América Latina globalizada (Rio de Janeiro: Record, 2005). Também é autor de MundoBRaz: O Devir Brasil do Mundo e o Devir Mundo do Brasil (Rio de Janeiro: Record, 2009). Durante o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, apresentou o minicurso Pensar a crise do capitalismo Global na perspectiva do devir-Brasil do Mundo e fez a leitura do texto de Andrea Fumagalli intitulado A financeirização como forma de biopoder.
[3] Andrea Fumagalli é professor da Faculdade de Economia da Università degli Studi di Pavia (Itália). É bacharel em Disciplinas Econômicas e Sociais pela Universidade L. Bocconi (Milão, Itália) e doutor em Pesquisa em Economia Política (Milão, Itália). É autor de La Crisi Economica Globale (Verona: Ombre corte, 2009), Bioeconomia e Capitalismo Cognitivo, Verso un Nuovo Paradigma di Accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007) e Il Lavoro. Nuovo e Vecchio Sfruttamento (Milano: Punto Rosso, 2006). Durante o XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, Giuseppe Cocco leu o texto de sua conferência intitulado A financeirização como forma de biopoder.
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