Projetos de desenvolvimento lançados pelos governos são questionados por comunidades rurais
Limoeiro do Norte. Quando avistou que ali era uma terra bendita para a prosperidade econômica, o homem conheceu o lugar, rabiscou projetos, e definiu dia e hora para evacuar a área e iniciar a apropriação do espaço. Chamou mais dos seus e iniciou a transformação em nome do “desenvolvimento econômico e social” e uma “nova cara” para o lugar. A narrativa pode se referir ao projeto de colonização do Brasil pelos portugueses, mas se trata do procedimento adotado em espaços rurais e urbanos no Brasil, ocupados por projetos desenvolvimentistas em detrimento da realidade de valores de identidade e singularidades culturais dos povos.
No Ceará, a falta de estudos de impacto socioambiental desse movimento tem extinto comunidades e, no melhor dos casos, provocado a resistência dos povos, que lutam para reafirmar sua cultura e uma forma própria de desenvolvimento.
O Estado está de norte a sul, sertão e mar, cortado por projetos considerados de desenvolvimento econômico e social, este colocado como consequência daquele. Mas seguindo essa mesma rota está o mapa de conflitos socioambientais de povos que vivem naquele território e que, como resistência, confrontam-se com órgãos públicos e privados usando a bandeira da permanência e do “respeito”. Em alguns casos, não é o projeto econômico que se critica, mas as formas como é concebido, notadamente quando não há diálogo entre as partes e, muito menos, considerada a relação do nativo com a terra, que vai além de um pedaço de chão com área definida.
Comunidades vivendo num território de onde extrai o que necessita para a sobrevivência, em caráter coletivo desenvolvem atividades sociais, as celebrações religiosas, as brincadeiras, as reuniões para decidir os rumos do grupo, e a garantia de que haverá água e comida para viverem muito tempo no lugar, naquilo que resumem numa palavra: sustentabilidade.
Esses povos moram na Prainha do Canto Verde, em Beberibe; em Lagoa dos Cavalos, em Russas; Caetanos de Cima, em Amontada; Fleicheiras, Trairi; e em outros lugares como Itarema, São Gonçalo do Amarante, Limoeiro do Norte e Aracati.
O sentimento foi de “vocês não existem” para mulheres como Maria Ferreira e Ozarina da Silva, quando o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que desenvolve no Vale do Jaguaribe o Perímetro Irrigado Tabuleiros de Russas, justificou em seu relatório a evacuação e nova destino para a área que tem uma “população local rarefeita e que vive de uma economia pouco significativa devido à escassez de recursos hídricos, não sendo tão afetada com a desapropriação”.
Elas fazem parte das comunidades de Lagos dos Cavalos e Bananeiras, respectivamente, que desenvolvem projetos de convivência com o semiárido e mantém as tradições de uma população que há mais de 50 anos vive no lugar.
O Dnocs iniciou a intervenção, indenizou e expropriou famílias, e agora inexistem comunidades como Susuarana de Cima e Massapê de Dentro, que deram lugar à primeira etapa do perímetro irrigado com mais de 10 mil hectares e que ainda está com a maior parte ociosa – mesmo com a segunda etapa já em fase de construção. Para não terem o mesmo fim, as comunidades Escondida, Peixe, Córrego do Salgado, Barbatão uniram-se a Lagoa dos Cavalos e Bananeiras, mas desta última as famílias sairão assim que o governo pagar as indenizações.
Lamento
“A gente não sai porque quer, mas porque é o jeito”, confessa Maria Ferreira de Araújo, a “dona Lúcia”, de Bananeiras. Ela lamenta que sua comunidade não tenha resistido, como tem feito os moradores de localidade Lagoa dos Cavalos.
Considerado um dos melhores exemplos de convivência com o semiárido no Nordeste, Lagoa dos Cavalos desenvolve a agroecologia. Da associação comunitária, as famílias possuem casa de farinha, casa de mel orgânico, cultura agrossilvopastoril, irrigada por meio de barragem subterrânea, cisternas de placas, casa de sementes, escola, quadra esportiva, biblioteca, praça. A resistência da comunidade, apoiada por instituições como a Cáritas Diocesana, pressionou o Dnocs a reavaliar o projeto de ocupação do local, mas enquanto não há consenso parte das obras da segunda etapa – incluída no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), está parada.
Especialistas colocam a falta de estudo de impacto socioambiental como um dos fatores para a desagregação de comunidades que desenvolvem culturalmente um meio sustentável e que consideram mais apropriado para sua convivência com o semiárido. “Estamos diante da desestruturação das famílias, que são levadas a alterarem completamente seu modo de vida e de produzir, quando não são expulsas, dando lugar às obras do Estado”, afirma a geógrafa Bernadete Freitas.
O antropólogo Sérgio Brissac qualifica algumas intervenções de projetos desenvolvimentistas em comunidades como exemplo de racismo ambiental, termo já adotado na luta de muitas comunidades.
Fique por dentro: Racismo ambiental
Chama-se de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre grupos étnicos vulnerabilizados e outras comunidades, discriminadas por sua origem ou cor. Também se refere a qualquer política, prática ou diretiva que afete ou prejudique, de diferentes formas, voluntária ou involuntariamente, grupos e comunidades. A tomada de decisões ambientais muitas vezes reflete os acordos de poder da sociedade predominante e das suas instituições, em detrimento das comunidades nativas, enquanto oferece vantagens e privilégios para as empresas e os indivíduos das camadas mais altas da sociedade. A questão de quem paga e quem se beneficia das políticas ambientais e industriais é também considerada fundamental na análise do racismo ambiental. No atual contexto, observa-se em diferentes países casos derivados do racismo ambiental, referentes às impossibilidades de acesso à terra e água.
MAIS INFORMAÇÕES: Cáritas Diocesana em Limoeiro do Norte
(88) 3423.3222 e (88) 9204.0721
LEVANTAMENTO NACIONAL: Estado no mapa da injustiça ambiental
Limoeiro do Norte. Fazendo uso da informação e do conhecimento, as comunidades que se consideram vítimas de racismo ambiental tem encontrado eco além de suas fronteiras. Um projeto desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e o Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Tabalhador, do Ministério da Saúde, resultou na criação do Mapa da Injustiça Ambiental e de Saúde no Brasil. Foram levantados mais de 300 pontos de conflitos em todo o País. No Ceará, nove municípios estão no mapa das injustiças: Limoeiro do Norte, Aracati, Cascavel, Aquiraz, Fortaleza, Caucaia, São Gonçalo do Amarante, Itapipoca e Acaraú.
A busca de casos pode ser feita por Unidade Federativa (UF) ou por palavra chave. Clicando em cima do caso que aparece no mapa por Estado surge inicialmente uma ficha inicial com os municípios e populações atingidas, os riscos e impactos ambientais, bem como os problemas de saúde relacionados. Clicando na ficha completa do conflito aparecem as informações mais detalhadas, incluindo populações atingidas, danos causados, uma síntese resumida, uma síntese ampliada e as fontes de informação utilizadas no levantamento.
Os conflitos foram levantados tendo por base principalmente as situações de injustiça ambiental discutidas em diferentes fóruns e redes a partir do início de 2006, em particular a Rede Brasileira de Justiça Ambiental. No foco do mapeamento, a visão das populações atingidas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento. As fontes de informação privilegiadas e sistematizadas nos casos apresentados seguiram essa orientação. Consistem principalmente de documentos disponibilizados publicamente por entidades e instituições parceiras: reportagens, artigos e relatórios acadêmicos, ou ainda relatórios técnicos e materiais presentes em ações desenvolvidas pelo Ministério Público ou pela justiça que apresentam as demandas e problemas relacionados às populações. O endereço é www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br.
Após reportagens do Diário do Nordeste, por sua vez consequências das denúncias das comunidades, do Ministério Público, da Procuradoria da República e da Universidade Federal do Ceará, tem-se a seguinte descrição da injustiça ambiental em Limoeiro: uso indiscriminado de agrotóxicos contamina recursos hídricos e é a provável razão da forte incidência de câncer em populações trabalhadoras e moradoras do vale do Jaguaribe. População atingida: agricultores familiares. Impactos e riscos ambientais: alteração no regime tradicional de uso e ocupação da terra, poluição de recurso hídrico, contaminação do solo e do aquífero.
De Itapipoca, o mapa cita que “empreendimento turístico de massa esbarra em grupos de mulheres pescadoras e ameaça a preservação das atividades e costumes de comunidades litorâneas tradicionais do Ceará. São atingidos agricultores familiares, pescadores artesanais, ribeirinhos. Sobre Caucaia se fala da luta pioneira dos povos indígenas Tapeba, enfrentando o preconceito e lutando pela reconhecimento da identidade cultural, do modo de vida e do respeito ao seu território, em parte ocupado por empresas privadas que extraem riquezas naturais.
Antes vista como “terra de infertilidade”, o Nordeste é hoje um dos principais alvos de projetos desenvolvimentistas, de expansão do capital e da diversidade econômica. No Ceará se tem o agropólo da Chapada do Apodi, em Limoeiro, os territórios de mangues no litoral, privatizados pelo turismo de massa, exploração da criação de camarão em cativeiro sem a preocupação de preservar a água dos rios.
Esses e outros pontos de conflito tem causado frustração de populações indígenas e comunidades mestiças tradicionais, que reclamam dos impactos negativos e de um propalado desenvolvimento que não os têm beneficiado.
MUNICÍPIOS
9 municípios do Ceará constam no Mapa da Injustiça Ambiental e de Saúde. São eles: Limoeiro do Norte, Aracati, Cascavel, Aquiraz, Fortaleza, Caucaia, São Gonçalo, Itapipoca e Acaraú
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=846487