É fundamental lembrarmos ainda que a “hidra”, no caso em questão, ocupa também irregularmente terras indígenas dos Pataxó. TP.
A hidra de Lerna é uma criatura mitológica grega com corpo de dragão e várias cabeças de serpente. De acordo com a lenda, tem um hálito venenoso e possui a capacidade de se regenerar quando atingida. A citação que intitula este texto foi proferida pelo promotor de Eunápolis Dr. João Alves da Silva Neto na ocasião do 13º Fórum Sócioambiental do Extremo Sul da Bahia, realizado em julho de 2010 com a participação de alguns movimentos sociais da região. Evocando a imagem da hidra, o promotor pretende denunciar um grupo inteiro de corporações e indivíduos que cometem irregularidades ao permitir uma prática econômica predatória e nociva aos povos tradicionais, trabalhadores rurais e também à comunidade urbana local.
O Extremo Sul da Bahia é um importante pólo de produção de commodities no Brasil. As indústrias de eucalipto e celulose se instalaram na região a partir da segunda metade da década de 1980 e, em anos recentes, programas de incentivo federal e estadual tem incentivado a expansão da cana-de-açúcar em larga escala com vistas à produção de agrocombustível.
Políticas governamentais de estímulo ao agronegócio brasileiro têm causado enormes impactos sobre a região, como o aumento da concentração de terras e sua valorização frente ao pequeno produtor. Essas políticas tem viabilizado o processo de ampliação da Veracel Celulose, atualmente produtora de 1,2 milhão de toneladas por ano e que pretende alcançar, de acordo com a proposta apresentada, a marca dos 2,5 milhões.
Sediada no município de Eunápolis e com plantios na região desde 1992, a antiga Veracruz Florestal teve sua fábrica em operação no ano de 2005. Hoje, o empreendimento conta com 96 mil hectares próprios licenciados e mais 23 mil hectares regularizados sob regime de fomento. Segundo dados da própria empresa baseados no ano de 2009, gera 396 empregos próprios além de 2.210 postos em empresas chamadas parceiras, ou seja, de terceirização de serviços e mão-de-obra.
Estes números, ainda que ilustrativos, não dimensionam a proporção dos impactos adversos da vinda deste negócio para a cidade e região. Desde a década de 1990 se observa às vistas claras o processo de expulsão do homem do campo, o inchaço da cidade, o aumento do custo de vida e da violência, a degradação da Mata Atlântica e o enfraquecimento e extinção de cultivos agrícolas para comercialização e subsistência.
Atualmente em processo de licenciamento, a ampliação da Veracel Celulose tem gerado um debate sobre a sua efetiva contribuição para o desenvolvimento social e econômico do Extremo Sul do estado. Organizações da sociedade civil e do Ministério Público têm levantado a bandeira de que não deve ser acentuado um processo que, em dezessete anos, trouxe tantos ônus à região.
Entretanto, ações dos representantes do Governo e dos órgãos fiscalizadores têm revelado uma postura parcial e comprometida com os objetivos econômicos do empreendimento. Tal condição se cristaliza nos procedimentos para licenciar novos plantios e para a expansão da fábrica. Conforme apontam denúncias levantadas pelo Centro de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Extremo Sul (CEPEDES), as instituições que deveriam regular e fiscalizar as práticas da Veracel na verdade participam do jogo de interesses que beneficia a própria empresa, comprometendo assim a resolução de conflitos e a reparação das desigualdades cometidas pelo negócio. Além disso, tais órgãos estão colocando obstáculos à possibilidade de se trilhar outros rumos para a economia regional baseada na geração de empregos, renda e qualidade de vida para a população das áreas rural e urbana.
Um exemplo das condutas ilícitas envolvendo representantes do estado e da empresa é ilustrada na Ação Civil Pública Ambiental mobilizada contra o Governo, o CEPRAM (Conselho Estadual de Proteção Ambiental), o IMA (Instituto de Meio Ambiente) e a própria Veracel Celulose S.A., instada pelo Ministério Público Estadual da Bahia por intermédio do promotoria Regional de Eunápolis, em 19 de fevereiro de 2009. Tal texto sustenta em seus argumentos a investigação da “origem das inúmeras licenças ambientais que, de forma desordenada e sem qualquer cautela na proteção ao meio ambiente, privilegiavam as atividades de silvicultura desenvolvidas pela Veracel Celulose S.A. no município de Eunápolis e adjacentes”.
De acordo com o artigo 225, § 1º, da Constituição Federal, é necessária a realização de estudos de impacto ambiental para empreendimentos de potencial efeito de degradação da natureza. No caso da Veracel, uma licença ambiental deferida pelo CEPRAM autorizou o plantio de 48 mil hectares em 1993. Entretanto, em 1996, quando este número aumentou para 96 mil hectares, o mesmo não foi acompanhado por um estudo do impacto do avanço da monocultura de eucalipto. Um dos retratos da expansão desordenada da silvicultura fica evidente hoje ao se considerar que 40% das áreas agricultáveis do Extremo Sul, ou seja, mais de 450 mil hectares, estão ocupados apenas por eucalipto, ao passo em que destes, 37 mil hectares são totalmente desconhecidos pelos órgãos fiscalizadores.
Além disso, depoimentos e processos abertos na justiça deixam evidente que desde a instalação da empresa na região se observam inúmeros casos de corrupção envolvendo os órgãos públicos responsáveis pela regulação. Neste esquema também participam empresas terceirizadas, o que configura a prática de “crime organizado”:
“Para bancar a corrupção de agentes do Estado da Bahia, a empresa de fornecimento de alimentos […], teve que criar um “caixa 2”, conforme declarações do contador da aludida empresa, o Sr. […]. Além disso, ficou evidenciado, pelo depoimento do Sr. […] e de outras provas colhidas que a referida empresa de alimentação também serviu de apoio para que ré VERACEL CELULOSE S.A lavasse dinheiro, em atuação típica de crime organizado”.
O conjunto de ilegalidades que tem a Ação Civil enumera em seu conteúdo “(…) repercute na credibilidade que deveria merecer os citados órgãos ambientais, e resulta na necessidade de um exame mais apurado por parte do Poder Judiciário, já que, supostamente, as autorizações excedentes têm origem ilícita – o que não é de se estranhar em face de tantos outros atos ilegais que já foram praticados em favor da VERACEL”.
O próprio promotor é atento ao pontuar que no passado outras medidas jurídicas já haviam sido tomadas diante das ilicitudes do poder público na fiscalização da empresa. A Justiça Federal autuou no caso anulando as Resoluções do CEPRAM no. 703/93, 708/93, 1.115/95 e 1.239/96 favoráveis à Veracel em um processo de desmatamento da floresta nativa por ela promovido. Tal medida judicial anulou os licenciamentos ambientais concedidos entre 1993 e 1996 e obrigou a empresa a restituir a mata das áreas devastadas. O caso ainda se agravou com a participação de funcionários do CRA (antigo IMA) e do CEPRAM na defesa da empresa e ainda de maneira escusa. Diz a Ação Civil:
“A referida sentença de S. Exª o Juiz Federal Dr. MÁRCIO FLAVIO MAFRA LEAL chegou a identificar a cumplicidade de alguns dos prepostos do CRA e do CEPRAM naqueles danos ambientais, e até a situação singular de representantes daqueles órgãos se travestindo em procuradores particulares da VERACRUZ FLORESTAL LTDA, e de sua sucessora VERACEL CELULOSE S.A, para defenderem, no transcurso daquela ação civil pública, as licenças ilícitas que permitiram imensuráveis danos ambientais”.
Dentre outras infrações arroladas no processo citado está o excedente de plantio de eucalipto autorizado em Eunápolis. O CEPRAM foi negligente ao desconsiderar que a área permitida era 20% da área agricultável – e não da área total – do município. De fato, sabe-se que o eucalipto em muito excedeu os limites legais impostos. O que essa Ação Civil acentua é que as ilicitudes foram cometidas com a cumplicidade dos órgãos legisladores da questão, o que por si só configura crime gravíssimo contra a sociedade. Em uma parte do texto, o Ministério Público tenta dar conta da dimensão das infrações para configurar a nova concentração de terras na região:
“Foi com a inobservância dos limites legais, e contando com a omissão dos demais réus, que a silvicultura de eucalipto se expandiu neste município e região, a ponto da VERACEL se sentir à vontade para se apropriar até de áreas devolutas – as quais deveriam se destinar a projetos de reforma agrária – e , também, de terras indígenas, fato que ocorreu na região de Barra Velha, nas proximidades do município de Porto Seguro-BA”.
De fato, o IMA e o CEPRAM sabiam das irregularidades que cometeram ao conceder licenças ambientais para a Veracel. Isto ficou cristalizado em um estudo realizado conjuntamente pela SEMA (Secretaria Estadual de Meio Ambiente) e o IMA no ano de 20074. De acordo com o promotor, “a maior surpresa do Ministério Público não foi o teor daquele diagnóstico, mas constatar que, apesar de conhecer diretamente todas aquelas mazelas ambientais, os três primeiros réus [Governo, CEPRAM e IMA], numa atitude de completo descaso, não tinham adotado qualquer providência séria para efeito de anular os licenciamentos ambientais que estavam dando origem às mencionadas ilegalidades”.
A Ação Civil movida pelo Ministério Público considera que toda terra de plantio, inclusive por fomento, deve estar incluída entre os 20% da área legalizada. Neste cenário, os programas de fomento florestal são percebidos como uma estratégia para burlar a restrição ao plantio, já que ela isenta a empresa da responsabilidade sobre o terreno do fomentado:
“Deve ser lembrado que quando a VERACRUZ FLORESTAL LTDA. protocolou o seu pedido de licenciamento para a implantação da silvicultura fez referência que a sua matéria prima seria originada, exclusivamente, das plantações de eucaliptos em terras próprias e arrendadas. Posteriormente, quando a VERACEL assumiu as atividades de produção de celulose, para fugir aos limites de 20% que fora imposto pelo CEPRAM, engendrou a figura do “fomento”, como meio de burlar aquela condicionante. E o que é o tal “fomento florestal privado”, senão uma modalidade esdrúxula do fomento mercantil que é denominado “factoring”?”
A Ação Civil registra casos de financiamentos de campanhas políticas de deputados, vereadores, prefeitos e até mesmo de candidatos ao cargo de governo do Estado. O depoimento do ex-vereador Júnior Bahia revela que a Veracel apresenta um claro sistema coletivo de corrupção envolvendo alguns de seus colegas. Segundo ele, por ocasião da votação da lei que restringia as plantações de eucalipto no território de Eunápolis (lei no. 14/2008), a empresa propôs financiar sua campanha política a cargo de Prefeito, o que se replica com outros vereadores em exercício no período.
Estas questões justificam uma investigação mais atenta do poder judiciário às práticas da Veracel e dos órgãos de fiscalização. O que agrava o fato é a postura do governador do Estado, Sr. Jacques Wagner. A despeito das ilegalidades que marcam a trajetória da empresa na região em suas relações com os órgãos públicos e a sociedade local, o referido governante anunciou em meios de comunicação a prévia aprovação perante o licenciamento da ampliação da indústria. Conclui o redator da Ação que “se por um lado o Estado da Bahia se apresenta com a sua tradicional negligência quando lhe é cobrada a proteção ao meio ambiente, demonstra uma eficiência e uma celeridade digna de “reconhecimento” quando se trata de cumprir “acordos comerciais” com as empresas de celulose”.
O anúncio público do governador de que já está autorizada a ampliação da Veracel revela a condição de barganha que envolve o poder público e a esfera privada. Neste caso, configura-se entre eles “um execrável balcão de negócios” que deixa de fora os interesses da sociedade e do meio ambiente.
Como resposta às violações cometidas pelos quatro réus circunscritos da Ação (Governo do Estado, CEPRAM, IMA e Veracel), o texto conclui que o governo e suas instituições devem restringir a concessão de novas licenças de plantio em Eunápolis (seja em terras próprias ou fomentadas) até que se dimensione o excedente à lei e este seja corrigido pela empresa.
A decisão preliminar sobre a referida Ação Civil, julgada em 29 de setembro de 2009, concorda com as sugestões que o texto inicial apresenta. Foram interditadas novas plantações na cidade de Eunápolis até que sejam realizados pelo Governo o Zoneamento Econômico Ecológico e pelo IMA a Avaliação Ambiental Estratégica, respeitando a Resolução 1.239/96 do CEPRAM que limita o plantio nas terras agricultáveis do município.
Além disso, é definido que o IMA exija da empresa que comunique com 30 dias de antecedência os cortes de madeira que realizará, assim é possível ter controle sobre os plantios sob os marcos regulatórios. Ao CEPRAM, o documento exige que estipule à Veracel uma indenização monetária com o fito de apoiar as unidades de conservação, haja vista os danos ambientais causados por ela.
A decisão preliminar também exige que, após o levantamento das licenças erigidas sob os marcos da lei, o excedente de plantios seja substituído pela revegetação da mata nativa. Além disso, todos os réus estão obrigados a se comprometer com uma política de reparação dos danos ambientais e, em casos onde o reflorestamento não for possível, as ilegalidades cometidas serão compensadas por uma indenização monetária cobrada da empresa para apoio e implementação de unidades de conservação.
A Veracel e os órgãos públicos considerados réus do processo estão sujeitos às determinações jurídicas sob pena de multa diária de 100 mil reais. Atualmente, os processos de licenciamento de plantio de eucalipto no município de Eunápolis estão paralisados mediante a demanda não atendida por ZEE e AEE. O IMA e o CEPRAM, contudo, não tem de fato se dedicado a estes levantamentos e, assim, novas autorizações não estão sendo mais expedidas na cidade. Ao contrário, a empresa e os representantes do estado tem investido o seu tempo no prosseguimento do processo de licenciamento da expansão da Veracel II, realizando agora em junho as primeiras oficinas públicas de apresentação do projeto.
Dessa forma costumam responder empresa e estado no tocante às investidas do Poder Judiciário. Desviando-se das obrigações e objetivando menores prejuízos, arquitetam estratégias de ação pouco efetivas rumo à condições mais justas e positivas nas relações com a sociedade.
O último passo dado pelo Ministério Público Estadual para o encaminhamento efetivo deste imbróglio é a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que agrega as questões já comentadas e ainda outras, como os problemas judiciais na esfera das relações de trabalho. Atualmente este Termo está em negociação, mas promete ser um instrumento de maior resolutibilidade diante de tantos problemas causados pela empresa – e a sua associação criminosa com as instâncias do governo. Ocorre que nem mesmo este TAC está sendo levado adiante, já que a empresa tem protelado para a assinatura do documento.
A história da Veracel em Eunápolis retrata um padrão típico de interação entre Estado, Empresa e Cidade no Brasil contemporâneo. A tônica do desenvolvimento está na pauta da atualidade, o que implica no fomento incessante e a qualquer custo por políticas de geração de renda e lucro. Com isso, firma-se uma parceria perigosa entre esfera pública e privada, onde os interesses da população ficam em segundo (ou seria último?) plano.
Contudo, neste contexto se revela um exemplo de resistência positiva frente a perigosa parceria Estado-Empresa. A sociedade civil organizada local se associa com os meios jurídicos disponíveis para dar encaminhamento às questões sociais e ambientais silenciadas pelo discurso oficial. Com esse esforço, espera-se que cada vez mais se torne público o debate aumentando o número de pessoas e organizações conscientes do que se passa no Extremo Sul da Bahia e sobre a necessidade de um novo caminho que leve à geração de emprego e renda, construído pelo povo e com a sua participação.
*Texto baseado em Ações do Ministério Público Estadual – Comarca de Eunápolis – Bahia